Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

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Capítulo I

Janeiro - Aos nossos correspondentes

Janeiro
Aos nossos correspondentes

A época de renovação das assinaturas, a 1º de janeiro, como todos os anos, é para a maioria dos nossos correspondentes da França e do estrangeiro, ocasião para nos dar novos testemunhos de simpatia, com o que ficamos profundamente tocado.

Na impossibilidade em que estamos de responder a todos, rogamo-lhes recebam aqui a expressão de nossos sinceros agradecimentos e da reciprocidade de nossos votos, rogando-lhes se persuadam de que não esquecemos, em nossas preces, nenhum daqueles, encarnados ou desencarnados, que se nos recomendam.

Os testemunhos que têm a bondade de nos dar nos são poderoso encorajamento e muito suaves compensações que facilmente nos fazem esquecer as penas e fadigas do caminho. E como não as esqueceríamos, quando vemos a Doutrina crescer incessantemente, vencer todos os obstáculos e que cada dia nos traz novas provas dos benefícios que ela espalha! Agradecemos a Deus o insigne favor que ele nos concede, de testemunhar seus primeiros sucessos e entrever o seu futuro. Nós lhe pedimos nos dê as forças físicas e morais necessárias para realizar o que nos resta a fazer, antes de voltar ao mundo dos Espíritos.

Aos que têm a bondade de fazer votos pelo prolongamento de nossa demora aqui em baixo, no interesse do Espiritismo, diremos que ninguém é indispensável para a execução dos desígnios de Deus; que o que fizemos, outros poderiam ter feito, e que o que não pudermos fazer, outros farão. Então, quando lhe aprouver chamar-nos, ele saberá prover à continuação de sua obra. Aquele que for chamado a lhe tomar as rédeas cresce na sombra e revelar-se-á oportunamente, não por sua pretensão a uma supremacia qualquer, mas por seus atos, que chamarão a atenção de todos. A esta hora ele ignora a si mesmo, e é útil, neste momento, que ainda se mantenha à margem.

O Cristo disse: “Aquele que se exaltar será rebaixado.” É, pois, entre os humildes de coração que ele será escolhido, e não entre os que quiserem elevar-se por sua própria autoridade e contra a vontade de Deus; esses apenas colherão vergonha e humilhação, porque os orgulhosos e os presunçosos serão confundidos. Que cada um traga a sua pedra ao edifício e se contente com o papel de simples obreiro. Deus, que lê no fundo dos corações, saberá dar a cada um o justo salário de seu trabalho.

A todos os nossos irmãos em crença diremos: “Coragem e perseverança, porque se aproxima o momento das grandes provas. Fortalecei-vos nos princípios da Doutrina e deles penetrai-vos cada vez mais; alargai as vossas vistas; elevai-vos pelo pensamento acima do círculo limitado do presente, de maneira a abarcar o horizonte do infinito; considerai o futuro, e então a vida presente, com seu cortejo de misérias e decepções, vos parecerá um ponto imperceptível, como um minuto doloroso que em breve não deixará mais traços na lembrança; as preocupações materiais parecerão mesquinhas e pueris, ao lado dos esplendores da imensidade.

Felizes os que colherem na sinceridade de sua fé a força de que necessitarão. Esses bendirão a Deus por lhes ter dado a luz; reconhecerão sua sabedoria nas suas vistas insondáveis e nos meios, sejam quais forem, que ele emprega para sua realização. Eles marcharão através dos escolhos com a serenidade, a firmeza é a confiança que dá a certeza de atingir o porto, sem se deter nas pedras que ferem os pés.

É nas grandes provas que se revelam as grandes almas; é também então que se revelam os corações verdadeiramente espíritas, pela coragem, pela resignação, pelo devotamente, pela abnegação e pela caridade sob todas as suas formas, de que dão exemplo. (Vide o artigo de outubro de 1866: Os tempos são chegados).


Abril 4 GALILEU

Abril


Temas Relacionados:

1. — O acontecimento literário do dia é a representação de Galileu - Google Books, drama em versos do Sr. Ponsard. Embora nele não se cogite de Espiritismo, a ele se liga por um lado essencial: o da pluralidade dos mundos habitados e, sob tal ponto de vista, podemos considerá-lo como uma das obras chamadas a favorecer o desenvolvimento da Doutrina, popularizando um de seus princípios fundamentais.

O destino da Humanidade está ligado à organização do Universo, como o do habitante o está à sua habitação. Na ignorância desta organização, o homem deve ter feito sobre o seu passado e o seu futuro ideias em conformidade com o estado de seus conhecimentos. Se tivesse sempre conhecido a estrutura da Terra, jamais teria pensado em situar o inferno em suas entranhas; se tivesse conhecido o infinito do espaço e a multidão de astros que aí se movem, não teria localizado o céu acima do céu das estrelas; não teria feito da Terra o ponto central do Universo, a única habitação dos seres vivos; não teria condenado a crença nos antípodas como uma heresia; se tivesse conhecido a Geologia, jamais teria acreditado na formação da Terra em seis dias e em sua existência desde seis mil anos.

A ideia mesquinha que o homem fazia da Criação devia dar-lhe uma ideia mesquinha da Divindade. Não pôde compreender a grandeza, o poder e a sabedoria infinitos do Criador senão quando seu pensamento pôde abarcar a imensidade do Universo e a sabedoria das leis que o regem, como se julga o gênio de um mecânico pelo conjunto, a harmonia e a precisão de um mecanismo, e não à vista de uma simples engrenagem. Só então suas ideias puderam crescer e elevar-se acima de seu horizonte limitado. Em todos os tempos suas crenças religiosas foram calcadas na ideia que fazia de Deus e de sua obra. O erro de suas crenças sobre a origem e o destino da Humanidade tinha por causa sua ignorância das verdadeiras leis da Natureza; se, desde a origem, tivesse conhecido essas leis, outros teriam sido seus dogmas.

Galileu, um dos primeiros a revelar as leis do mecanismo do Universo, não por hipóteses, mas por uma demonstração irrecusável, abriu caminho a novos progressos. Por isto mesmo devia produzir uma revolução nas crenças, destruindo os fundamentos científicos errôneos sobre os quais elas se apoiavam.

A cada um a sua missão. Nem Moisés, nem o Cristo tinham a de ensinar aos homens as leis da Ciência; o conhecimento dessas leis devia ser o resultado do trabalho e das pesquisas do homem, da atividade e do desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber sem esforço. Eles não deviam nem podiam lhes ter falado senão numa linguagem apropriada ao seu estado intelectual, sem o que não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua missão moralizadora; a gênios de uma outra ordem são deferidas missões científicas. Ora, como as leis morais e as leis da Ciência são leis divinas, a religião e a filosofia só podem ser verdadeiras pela aliança destas leis.


2. — O Espiritismo baseia-se na existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo; repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre seu progresso indefinido, através dos mundos e das gerações; sobre a pluralidade das existências corporais, necessárias ao seu progresso individual; sobre sua cooperação relativa, como encarnados ou desencarnados, na obra geral, na medida do progresso realizado; sobre a solidariedade que une todos os seres de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e desencarnados, cada um tem sua missão, seu papel, deveres a cumprir, desde o mais ínfimo até os anjos, que nada mais são que Espíritos humanos chegados ao estado de Espíritos puros, e aos quais são confiadas as grandes missões, o governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos adquiridos; em toda parte o desejo de progredir ainda e de aumentar a soma de felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para sempre de sua sorte futura, impõe limite ao seu progresso e torna estéril, para o futuro, o trabalho a que se entrega para instruir-se, o homem tem por domínio o Universo; nada do que sabe ou do que faz fica perdido: o futuro lhe pertence; em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em lugar do nada, segundo alguns, a vida eterna; em lugar da beatitude contemplativa perpétua, segundo outros, que a tornaria de uma inutilidade perpétua, um papel ativo, proporcionado ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas temporárias, a posição que cada um conquista por sua perseverança no bem ou no mal; em vez de uma mancha original, que o torna passível de faltas que não cometeu, a consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em conta todo arrependimento e toda boa vontade.

Tal é, em resumo, o quadro que apresenta o Espiritismo, e que ressalta da situação mesma dos Espíritos que se manifestam; não é mais uma simples teoria, mas resultado da observação. O homem que encara as coisas deste ponto de vista, sente-se crescer; ergue-se aos seus próprios olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo para os seus trabalhos, para os seus esforços em se melhorar.

Mas, para compreender o Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele abarca, para compreender o objetivo e o destino do homem, não era preciso relegar a Humanidade a um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos, rebaixar o Criador e a criatura. Para que o homem pudesse fazer uma ideia justa de seu papel no Universo, era preciso que compreendesse, pela pluralidade dos mundos, o campo aberto às suas explorações futuras e a atividade de seu espírito; para recuar indefinidamente os limites da Criação, para destruir os preconceitos sobre os lugares especiais de recompensa e de punição, sobre os diferentes estágios dos céus, era preciso que penetrasse as profundezas do espaço; que em lugar do cristalino e do empíreo, aí visse circular, em majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis, semelhantes ao seu; que em toda parte seu pensamento encontrasse a criatura inteligente.


3. — A história da Terra se liga à da Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas mesquinhas e falsas opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do nosso globo, de suas crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem; para que consentisse em desalojar do seio da terra o inferno e o império de Satã, era preciso que pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua formação e de suas revoluções físicas. A Astronomia e a Geologia, secundadas pelas descobertas da Física e da Química, apoiadas sobre as leis da Mecânica, são as duas poderosas alavancas que atacarão os seus preconceitos sobre a sua origem e o seu destino.

A matéria e o espírito são os dois princípios constitutivos do Universo. Mas o conhecimento das leis que regem a matéria devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só as primeiras poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência dos fatos. O Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do elemento espiritual, só podia vir depois; para que pudesse tomar o seu impulso e dar frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso que encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano liberto dos preconceitos e das ideias falsas, se não na totalidade, ao menos em grande parte, sem o que só se teria tido um Espiritismo acanhado, bastardo, incompleto e misturado a crenças e práticas absurdas, como ainda hoje o é nos povos atrasados. Se se considerar a situação das nações adiantadas, reconhecer-se-á que ele veio em tempo oportuno, para preencher os vazios que se fazem nas crenças.

Galileu abriu o caminho. Rasgando o véu que ocultava o infinito, alargou o domínio da inteligência e desferiu um golpe fatal nas crenças errôneas; destruiu mais superstições e ideias falsas do que todas as filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade. O Espiritismo deve colocá-lo na classe dos grandes gênios que rasgaram a via, diminuindo as barreiras opostas pela ignorância. As perseguições de que foi objeto, e que são o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos, fizeram-no grande aos olhos da posteridade, ao mesmo tempo que rebaixaram os perseguidores. Quem é hoje maior: ele ou eles?

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita citar alguns fragmentos do belo drama do Sr. Ponsard. Fá-lo-emos no próximo número.


[2.° Artigo. Revista de maio.]

4 GALILEU.


FRAGMENTOS DO DRAMA DO SR. PONSARD.

(Ver o número precedente.)

Um século antes de Galileu, Copérnico tinha concebido o sistema astronômico que traz o seu nome. Com o auxílio do telescópio que havia inventado, e juntando a observação direta à teoria, Galileu completou as ideias de Copérnico e demonstrou sua verdade pelo cálculo. Com seu instrumento, pôde estudar a natureza dos planetas e, de sua similitude com a Terra, concluiu pela sua habitabilidade. Igualmente tinha reconhecido que as estrelas são outros tantos sóis, disseminados nos espaços sem limites, e pensou que cada um devia ser o centro do movimento de um sistema planetário. Acabava de descobrir os quatro satélites de Júpiter e este acontecimento abalou o mundo científico e o mundo religioso. O poeta se dedica a pintar, no seu drama, a diversidade dos sentimentos que excitou, conforme o caráter e os preconceitos dos indivíduos.

Dois estudantes da Universidade se entretêm com a descoberta de Galileu, e como não estão de acordo, buscam a opinião de um professor de renome.


Albert: Nós num ponto, doutor, em desacordo estamos,

Queríamos, pois, saber o que pensais.


Pompeu: Ele aceita pedir conselhos bons, reais – De que se trata, então?


Vivian: Dos satélites vistos.

De Júpiter ao redor nos orbitais previstos.


Pompeu: Não existem, não.


Vivian: Mas…


Pompeu: Não podem existir.


Vivian: Podemos, entretanto, os ver e conferir.


Pompeu: Não, nem mesmo os contar que inexistentes são.


Albert: Tu o ouves, Vivian?


Vivian: E por que mestre, então?


Pompeu:

E porque sustentar que Deus pode ter feito

Quatro globos além dos sete, com efeito

É propósito mau, um tema em fantasia,

Antireligioso e sem filosofia.

(E vendo Galileu seguido por muitos estudantes)

Basbaques, tolos, são! e infame charlatão!


Albert a Vivian: Vês que o doutor Pompeu contra ti se revela.


Vivian: Bem melhor pra Doutrina em que creio e tão bela;

É de toda a verdade a marcha natural,

Contra ela amotinar-se os pedantes do mal.


[Observação de ALLAN KARDEC.] Aí bem está a força do raciocínio de certos negadores das ideias novas: isto não é porque não pode ser. Perguntava-se a um sábio: Que diríeis se vísseis uma mesa erguer-se sem ponto de apoio? – Não acreditaria, respondeu ele, porque sei que isto não pode ser.



UM MONGE,

pregando à multidão:

Escutai o que diz o Apóstolo: Nos céus

Vossos olhos passeais, por que, ó Galileus?

Que ele, assim, de antemão anátema lançava

Contra ti, Galileu, e teu plano atacava.

Nós mesmos vemos, hoje, e muito claramente,

Quanto horror tem o céu a este ensino inciente,

E o Arno transbordado e o gelo nos vinhais,

Do divino furor são dolentes sinais.

Meus irmãos, desdenhai as mentiras grosseiras;

Para a Terra marchar só com pés, sem canseiras?

Pois se a Lua se move é que há um anjo que a guia;

Porque a cada planeta um condutor vigia;

Mas da Terra, seu anjo, onde ele está, nos montes?

Seria visto aí. – No centro? O mal tem fontes.


Lívia, mulher de Galileu, é o tipo de pessoa de mente estreita,

mais preocupada com a vida material do que com a glória e a verdade.


LÍVIA, a Galileu.

…Por que a mente esquentar,

Novos ensinos tens em vão a divulgar?

Tais novidades são resumíveis num termo,

Invenção do diabo e o mal expresso em ermo.

Pelo modo por que vos olha cada qual,

Se não te guardas bem, isto acabará mal.

Oh! por que não seguir os dignos professores

Que isso dizem citando os seus predecessores?

Eis pessoas em quem reina sempre o bom-senso;

Ensinam sem questão no que esperam consenso,

E sem se desgastar em público abatido

Se a Aristóteles ou Copérnico haver crido,

Sustentam com saber que a certa opinião

Aquela deve ser por qual se paga então,

Se a Aristóteles cabe o cofre-forte abrir,

Aristóteles faz Copérnico sair.

Não se fazem assim dissentir com ninguém;

Mas embolsam em paz os florins que lhes vêm;

Prosperam; moram bem; e sempre bem nutridos;

As filhas dotes têm com que encontram maridos;

Seu auditório é suave e nunca atormentado;

Retornam sempre ao lar para o caldo esperado;

Mas vós, vós fazeis raiva, e alguém vos aplaudia

E nesse meio tempo, eis que o jantar esfria.


Fragmentos do monólogo de Galileu no começo do segundo ato:


Não mais o tempo em que, no reino solidão,

A Terra no seu trono era imóvel então;

Não, o carro veloz, levando o astro do dia

Do nascer até se pôr não mais seu rumo guia;

Pois já do firmamento a curva cristalina

Que, como um teto azul, de lustres se ilumina;

Não é só para nós que Deus fez Universo;

Mas antes de nos ter, fomos no orgulho imersos!

Pois se abdicamos nós uma realeza falsa,

Porquanto da verdade a Ciência nos exalça;

Faz-se o corpo menor, mais o Espírito cresce;

Nossa nobreza crê ou nossa fé decresce.

Para o homem é mais belo, ínfima criatura,

Os intricados véus ele abrir da Natura,

E de ousar abraçar em sua concepção

A lei universal da própria criação,

Como nos dias ser, de vaidosa mentira

Rei de certa ilusão que num sonho se mira,

Centro inculto de um todo e do qual crê-se autor,

E só por ter pensado, hoje acha-se senhor.

O Sol, globo de fogo, gigantesca fornalha,

Um caos incandescente e de onde a vida espalha,

Tempestivo oceano onde oscilam perdidos

Rochas que se diluem e alguns metais fundidos,

Batendo e misturando, as vagas inflamadas

São negras explosões de fumo carregadas,

Uma ilhota vermelha exsurge do crisol,

Tolda pela manhã, hoje a face do Sol;

Almeja em torno a ti, ó incêndio fecundo,

A Terra, nossa mãe, um resfriar profundo,

E, resfriados como ela, e, que vivem como ela;

Marte sempre sangrento e Vênus de luz bela;

Junto ao teu esplendor, Mercúrio vive assim,

E desse reino teu Saturno no confim,

E por Deus, para mim, e com venturas suas

A Júpiter coroa um quádruplo de luas.

Mas, astro soberano e centro desses mundos

Para além desse império os limites profundos,

Os milhares de sóis numerosos e densos,

Que ninguém contar pode em seus grupos imensos.

Prolongam, como tu, suas vastas crateras,

Movendo, como tu, planetárias esferas,

Que lhes giram em torno, o seu curso a compor,

E colhem de seu rei claridade e calor.

Oh! sim, sois vós melhor que as lâmpadas noturnas,

Que dariam mais luz que as chamas taciturnas,

Inúmeros clarões, estrelas que empoeirais,

De vossa areia de ouro as sendas azulais,

Em casa vos palpita a vida universal,

Mais não vemos senão uma centelha astral.


E em toda a parte ação, o movimento e a alma!

Rolando, aqui e ali, em seus centros sem calma,

Globos de habitação, cujos homens pressinto,

Viverem meu viver, sentirem como eu sinto,

Uns rebaixados mais, enquanto outros talvez

Em mais altos degraus na ordem de sua vez!

Quão grande! Como é belo! Em que culto profundo!

O Espírito em torpor, se perde em abismo fundo!

Copiosíssimo autor, que tua onipotência

Aí se mostra em glória e em tal magnificência!

Que a vida a se expandir em ondas no infinito,

Vastamente proclama o teu nome bendito!

Perseguidores, ide! Anátemas lançai!

Tenho mais fé que vós, sabendo pois ficai.

Deus, que vós invocais, melhor que vós imerso

Nele vejo: só lama, e pra vós é o Universo;

Para mim sobretudo a obra divina brilha;

Vós a fazeis estreita, e eu lhe redobro a trilha;

Como se dava aos reis carro triunfador,

Universos coloco aos pés do Criador.


Fragmentos do diálogo entre o inquisidor e Galileu:


O INQUISIDOR.

Verdadeiro não é qual o das Escrituras;

Erro é tudo o que resta, e visões, e imposturas;

Quem no contrário crê em seu ensinamento

Não é esclarecido, é um cego desatento.


GALILEU.

Sim, a fé do cristão tem a norma que a guia;

Seu único poder reina na teologia,

E deve a adoração curvar nossos esp’ritos

Aos dogmas divinais em que aí são inscritos;

Mas da matéria o mundo escapa à força insana;

Deus o entrega inteiro à discussão humana;

Por de coisas tratar que caem sob os sentidos,

Sentidos e razão se mostram combalidos;

A autoridade cala; e nula a ordem se faz

Bem no centro da esfera os raios desiguais,

De heresia se anula acusar-se o compasso,

Nem aos corpos impor que não girem no espaço.

Enfim, o olho é juiz do Universo visível.

Se o imutável dogma é na Bíblia intangível,

A Ciência repele essa imobilidade,

E nos ferros morrendo alcança a liberdade.


O INQUISIDOR.

Ora, não vês então que teu novo sistema

Turvando a astronomia à fé deixa em dilema?

O erro material em certo ponto aceito,

Em todo o Testamento o exame faz suspeito;

Quem uma vez falhou não é mais infalível;

A dúvida se aceita, o exame é ato possível,

E logo há conclusão, se alguém ousa julgar,

Da física inexata o dogma se enganar.


GALILEU.

Eu a fé destruir, quando engrandeço o culto!

Em sua obra ver Deus é Lhe fazer insulto?

Ah! senti-la melhor, é melhor adorá-la,

E entanto, honrá-la mal é que é desfigurá-la.

Os céus conforme a Bíblia em que devemos crer,

Os céus de seu Autor glória nos fazem ver;

Bem melhor que ninguém Lhe escuto a narração,

E tenho repetido o que a dizer estão.


….De uma.verdade nova há quem lhe barre o fio?

Uma gota deter, será deter um rio?

Crede-me, respeitai estas aspirações,

Elas têm muito impulso e muitas expansões

Pra deixar-se reter nas grades da prisão;

Deixai-lhes livre o campo ou morte ao barreirão!

- Ah! Roma ao ver um dia os teus cultos proscritos,

Dizias nada opor senão do gládio aos ritos;

Só triunfaste, então, ao mudar de papel

E opondo ao próprio gládio a palavra em laurel.


Antônia, filha de Galileu, vendo proscrito o pai, lhe diz:


Tua filha, eis-me aqui. Sim, meu piedoso amor

Seguirá o proscrito, e dos céus vencedor.

Levando, vale a vale, o teu bastão assim,

Direi: “De Galileu o pão trazei-mo a mim,

Para aquele que um lar negaram-lhe os cristãos,

E altar teria tido entre os povos pagãos.”


Galileu sondou as profundezas dos céus e revelou a pluralidade dos mundos materiais. Como dissemos, foi toda uma revelação nas ideias; um novo campo de exploração foi aberto à Ciência. O Espiritismo vem operar outra não menor, revelando a existência do mundo espiritual que nos rodeia; graças a ele o homem conhece seu passado e seu verdadeiro destino. Galileu derrubou as barreiras que circunscreviam o Universo: o Espiritismo o povoa e enche o vazio dos espaços infinitos. Embora mais de dois séculos nos separem das descobertas de Galileu, muitos preconceitos ainda estão vivos; a nova doutrina emancipadora encontra os mesmos obstáculos; atacam-na com as mesmas armas, opõem-lhe os mesmos argumentos. Lendo o drama do Sr. Ponsard, poder-se-ia dar nomes próprios modernos a cada um de seus personagens. Entretanto, a má vontade e a perseguição não impediram que a doutrina de Galileu triunfasse, porque era a verdade. Dar-se-á o mesmo com o Espiritismo, porque é, também, uma verdade. Seus detratores serão olhados pela geração futura com os mesmos olhos com que olhamos os de Galileu.




Abril

1. — O acontecimento literário do dia é a representação de Galileu - Google Books, drama em versos do Sr. Ponsard. Embora nele não se cogite de Espiritismo, a ele se liga por um lado essencial: o da pluralidade dos mundos habitados e, sob tal ponto de vista, podemos considerá-lo como uma das obras chamadas a favorecer o desenvolvimento da Doutrina, popularizando um de seus princípios fundamentais.

O destino da Humanidade está ligado à organização do Universo, como o do habitante o está à sua habitação. Na ignorância desta organização, o homem deve ter feito sobre o seu passado e o seu futuro ideias em conformidade com o estado de seus conhecimentos. Se tivesse sempre conhecido a estrutura da Terra, jamais teria pensado em situar o inferno em suas entranhas; se tivesse conhecido o infinito do espaço e a multidão de astros que aí se movem, não teria localizado o céu acima do céu das estrelas; não teria feito da Terra o ponto central do Universo, a única habitação dos seres vivos; não teria condenado a crença nos antípodas como uma heresia; se tivesse conhecido a Geologia, jamais teria acreditado na formação da Terra em seis dias e em sua existência desde seis mil anos.

A ideia mesquinha que o homem fazia da Criação devia dar-lhe uma ideia mesquinha da Divindade. Não pôde compreender a grandeza, o poder e a sabedoria infinitos do Criador senão quando seu pensamento pôde abarcar a imensidade do Universo e a sabedoria das leis que o regem, como se julga o gênio de um mecânico pelo conjunto, a harmonia e a precisão de um mecanismo, e não à vista de uma simples engrenagem. Só então suas ideias puderam crescer e elevar-se acima de seu horizonte limitado. Em todos os tempos suas crenças religiosas foram calcadas na ideia que fazia de Deus e de sua obra. O erro de suas crenças sobre a origem e o destino da Humanidade tinha por causa sua ignorância das verdadeiras leis da Natureza; se, desde a origem, tivesse conhecido essas leis, outros teriam sido seus dogmas.

Galileu, um dos primeiros a revelar as leis do mecanismo do Universo, não por hipóteses, mas por uma demonstração irrecusável, abriu caminho a novos progressos. Por isto mesmo devia produzir uma revolução nas crenças, destruindo os fundamentos científicos errôneos sobre os quais elas se apoiavam.

A cada um a sua missão. Nem Moisés, nem o Cristo tinham a de ensinar aos homens as leis da Ciência; o conhecimento dessas leis devia ser o resultado do trabalho e das pesquisas do homem, da atividade e do desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber sem esforço. Eles não deviam nem podiam lhes ter falado senão numa linguagem apropriada ao seu estado intelectual, sem o que não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua missão moralizadora; a gênios de uma outra ordem são deferidas missões científicas. Ora, como as leis morais e as leis da Ciência são leis divinas, a religião e a filosofia só podem ser verdadeiras pela aliança destas leis.


2. — O Espiritismo baseia-se na existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo; repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre seu progresso indefinido, através dos mundos e das gerações; sobre a pluralidade das existências corporais, necessárias ao seu progresso individual; sobre sua cooperação relativa, como encarnados ou desencarnados, na obra geral, na medida do progresso realizado; sobre a solidariedade que une todos os seres de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e desencarnados, cada um tem sua missão, seu papel, deveres a cumprir, desde o mais ínfimo até os anjos, que nada mais são que Espíritos humanos chegados ao estado de Espíritos puros, e aos quais são confiadas as grandes missões, o governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos adquiridos; em toda parte o desejo de progredir ainda e de aumentar a soma de felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para sempre de sua sorte futura, impõe limite ao seu progresso e torna estéril, para o futuro, o trabalho a que se entrega para instruir-se, o homem tem por domínio o Universo; nada do que sabe ou do que faz fica perdido: o futuro lhe pertence; em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em lugar do nada, segundo alguns, a vida eterna; em lugar da beatitude contemplativa perpétua, segundo outros, que a tornaria de uma inutilidade perpétua, um papel ativo, proporcionado ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas temporárias, a posição que cada um conquista por sua perseverança no bem ou no mal; em vez de uma mancha original, que o torna passível de faltas que não cometeu, a consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em conta todo arrependimento e toda boa vontade.

Tal é, em resumo, o quadro que apresenta o Espiritismo, e que ressalta da situação mesma dos Espíritos que se manifestam; não é mais uma simples teoria, mas resultado da observação. O homem que encara as coisas deste ponto de vista, sente-se crescer; ergue-se aos seus próprios olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo para os seus trabalhos, para os seus esforços em se melhorar.

Mas, para compreender o Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele abarca, para compreender o objetivo e o destino do homem, não era preciso relegar a Humanidade a um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos, rebaixar o Criador e a criatura. Para que o homem pudesse fazer uma ideia justa de seu papel no Universo, era preciso que compreendesse, pela pluralidade dos mundos, o campo aberto às suas explorações futuras e a atividade de seu espírito; para recuar indefinidamente os limites da Criação, para destruir os preconceitos sobre os lugares especiais de recompensa e de punição, sobre os diferentes estágios dos céus, era preciso que penetrasse as profundezas do espaço; que em lugar do cristalino e do empíreo, aí visse circular, em majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis, semelhantes ao seu; que em toda parte seu pensamento encontrasse a criatura inteligente.


3. — A história da Terra se liga à da Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas mesquinhas e falsas opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do nosso globo, de suas crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem; para que consentisse em desalojar do seio da terra o inferno e o império de Satã, era preciso que pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua formação e de suas revoluções físicas. A Astronomia e a Geologia, secundadas pelas descobertas da Física e da Química, apoiadas sobre as leis da Mecânica, são as duas poderosas alavancas que atacarão os seus preconceitos sobre a sua origem e o seu destino.

A matéria e o espírito são os dois princípios constitutivos do Universo. Mas o conhecimento das leis que regem a matéria devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só as primeiras poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência dos fatos. O Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do elemento espiritual, só podia vir depois; para que pudesse tomar o seu impulso e dar frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso que encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano liberto dos preconceitos e das ideias falsas, se não na totalidade, ao menos em grande parte, sem o que só se teria tido um Espiritismo acanhado, bastardo, incompleto e misturado a crenças e práticas absurdas, como ainda hoje o é nos povos atrasados. Se se considerar a situação das nações adiantadas, reconhecer-se-á que ele veio em tempo oportuno, para preencher os vazios que se fazem nas crenças.

Galileu abriu o caminho. Rasgando o véu que ocultava o infinito, alargou o domínio da inteligência e desferiu um golpe fatal nas crenças errôneas; destruiu mais superstições e ideias falsas do que todas as filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade. O Espiritismo deve colocá-lo na classe dos grandes gênios que rasgaram a via, diminuindo as barreiras opostas pela ignorância. As perseguições de que foi objeto, e que são o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos, fizeram-no grande aos olhos da posteridade, ao mesmo tempo que rebaixaram os perseguidores. Quem é hoje maior: ele ou eles?

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita citar alguns fragmentos do belo drama do Sr. Ponsard. Fá-lo-emos no próximo número.


[2.° Artigo. Revista de maio.]

4 GALILEU.


FRAGMENTOS DO DRAMA DO SR. PONSARD.

(Ver o número precedente.)

Um século antes de Galileu, Copérnico tinha concebido o sistema astronômico que traz o seu nome. Com o auxílio do telescópio que havia inventado, e juntando a observação direta à teoria, Galileu completou as ideias de Copérnico e demonstrou sua verdade pelo cálculo. Com seu instrumento, pôde estudar a natureza dos planetas e, de sua similitude com a Terra, concluiu pela sua habitabilidade. Igualmente tinha reconhecido que as estrelas são outros tantos sóis, disseminados nos espaços sem limites, e pensou que cada um devia ser o centro do movimento de um sistema planetário. Acabava de descobrir os quatro satélites de Júpiter e este acontecimento abalou o mundo científico e o mundo religioso. O poeta se dedica a pintar, no seu drama, a diversidade dos sentimentos que excitou, conforme o caráter e os preconceitos dos indivíduos.

Dois estudantes da Universidade se entretêm com a descoberta de Galileu, e como não estão de acordo, buscam a opinião de um professor de renome.


Albert: Nós num ponto, doutor, em desacordo estamos,

Queríamos, pois, saber o que pensais.


Pompeu: Ele aceita pedir conselhos bons, reais – De que se trata, então?


Vivian: Dos satélites vistos.

De Júpiter ao redor nos orbitais previstos.


Pompeu: Não existem, não.


Vivian: Mas…


Pompeu: Não podem existir.


Vivian: Podemos, entretanto, os ver e conferir.


Pompeu: Não, nem mesmo os contar que inexistentes são.


Albert: Tu o ouves, Vivian?


Vivian: E por que mestre, então?


Pompeu:

E porque sustentar que Deus pode ter feito

Quatro globos além dos sete, com efeito

É propósito mau, um tema em fantasia,

Antireligioso e sem filosofia.

(E vendo Galileu seguido por muitos estudantes)

Basbaques, tolos, são! e infame charlatão!


Albert a Vivian: Vês que o doutor Pompeu contra ti se revela.


Vivian: Bem melhor pra Doutrina em que creio e tão bela;

É de toda a verdade a marcha natural,

Contra ela amotinar-se os pedantes do mal.


[Observação de ALLAN KARDEC.] Aí bem está a força do raciocínio de certos negadores das ideias novas: isto não é porque não pode ser. Perguntava-se a um sábio: Que diríeis se vísseis uma mesa erguer-se sem ponto de apoio? – Não acreditaria, respondeu ele, porque sei que isto não pode ser.



UM MONGE,

pregando à multidão:

Escutai o que diz o Apóstolo: Nos céus

Vossos olhos passeais, por que, ó Galileus?

Que ele, assim, de antemão anátema lançava

Contra ti, Galileu, e teu plano atacava.

Nós mesmos vemos, hoje, e muito claramente,

Quanto horror tem o céu a este ensino inciente,

E o Arno transbordado e o gelo nos vinhais,

Do divino furor são dolentes sinais.

Meus irmãos, desdenhai as mentiras grosseiras;

Para a Terra marchar só com pés, sem canseiras?

Pois se a Lua se move é que há um anjo que a guia;

Porque a cada planeta um condutor vigia;

Mas da Terra, seu anjo, onde ele está, nos montes?

Seria visto aí. – No centro? O mal tem fontes.


Lívia, mulher de Galileu, é o tipo de pessoa de mente estreita,

mais preocupada com a vida material do que com a glória e a verdade.


LÍVIA, a Galileu.

…Por que a mente esquentar,

Novos ensinos tens em vão a divulgar?

Tais novidades são resumíveis num termo,

Invenção do diabo e o mal expresso em ermo.

Pelo modo por que vos olha cada qual,

Se não te guardas bem, isto acabará mal.

Oh! por que não seguir os dignos professores

Que isso dizem citando os seus predecessores?

Eis pessoas em quem reina sempre o bom-senso;

Ensinam sem questão no que esperam consenso,

E sem se desgastar em público abatido

Se a Aristóteles ou Copérnico haver crido,

Sustentam com saber que a certa opinião

Aquela deve ser por qual se paga então,

Se a Aristóteles cabe o cofre-forte abrir,

Aristóteles faz Copérnico sair.

Não se fazem assim dissentir com ninguém;

Mas embolsam em paz os florins que lhes vêm;

Prosperam; moram bem; e sempre bem nutridos;

As filhas dotes têm com que encontram maridos;

Seu auditório é suave e nunca atormentado;

Retornam sempre ao lar para o caldo esperado;

Mas vós, vós fazeis raiva, e alguém vos aplaudia

E nesse meio tempo, eis que o jantar esfria.


Fragmentos do monólogo de Galileu no começo do segundo ato:


Não mais o tempo em que, no reino solidão,

A Terra no seu trono era imóvel então;

Não, o carro veloz, levando o astro do dia

Do nascer até se pôr não mais seu rumo guia;

Pois já do firmamento a curva cristalina

Que, como um teto azul, de lustres se ilumina;

Não é só para nós que Deus fez Universo;

Mas antes de nos ter, fomos no orgulho imersos!

Pois se abdicamos nós uma realeza falsa,

Porquanto da verdade a Ciência nos exalça;

Faz-se o corpo menor, mais o Espírito cresce;

Nossa nobreza crê ou nossa fé decresce.

Para o homem é mais belo, ínfima criatura,

Os intricados véus ele abrir da Natura,

E de ousar abraçar em sua concepção

A lei universal da própria criação,

Como nos dias ser, de vaidosa mentira

Rei de certa ilusão que num sonho se mira,

Centro inculto de um todo e do qual crê-se autor,

E só por ter pensado, hoje acha-se senhor.

O Sol, globo de fogo, gigantesca fornalha,

Um caos incandescente e de onde a vida espalha,

Tempestivo oceano onde oscilam perdidos

Rochas que se diluem e alguns metais fundidos,

Batendo e misturando, as vagas inflamadas

São negras explosões de fumo carregadas,

Uma ilhota vermelha exsurge do crisol,

Tolda pela manhã, hoje a face do Sol;

Almeja em torno a ti, ó incêndio fecundo,

A Terra, nossa mãe, um resfriar profundo,

E, resfriados como ela, e, que vivem como ela;

Marte sempre sangrento e Vênus de luz bela;

Junto ao teu esplendor, Mercúrio vive assim,

E desse reino teu Saturno no confim,

E por Deus, para mim, e com venturas suas

A Júpiter coroa um quádruplo de luas.

Mas, astro soberano e centro desses mundos

Para além desse império os limites profundos,

Os milhares de sóis numerosos e densos,

Que ninguém contar pode em seus grupos imensos.

Prolongam, como tu, suas vastas crateras,

Movendo, como tu, planetárias esferas,

Que lhes giram em torno, o seu curso a compor,

E colhem de seu rei claridade e calor.

Oh! sim, sois vós melhor que as lâmpadas noturnas,

Que dariam mais luz que as chamas taciturnas,

Inúmeros clarões, estrelas que empoeirais,

De vossa areia de ouro as sendas azulais,

Em casa vos palpita a vida universal,

Mais não vemos senão uma centelha astral.


E em toda a parte ação, o movimento e a alma!

Rolando, aqui e ali, em seus centros sem calma,

Globos de habitação, cujos homens pressinto,

Viverem meu viver, sentirem como eu sinto,

Uns rebaixados mais, enquanto outros talvez

Em mais altos degraus na ordem de sua vez!

Quão grande! Como é belo! Em que culto profundo!

O Espírito em torpor, se perde em abismo fundo!

Copiosíssimo autor, que tua onipotência

Aí se mostra em glória e em tal magnificência!

Que a vida a se expandir em ondas no infinito,

Vastamente proclama o teu nome bendito!

Perseguidores, ide! Anátemas lançai!

Tenho mais fé que vós, sabendo pois ficai.

Deus, que vós invocais, melhor que vós imerso

Nele vejo: só lama, e pra vós é o Universo;

Para mim sobretudo a obra divina brilha;

Vós a fazeis estreita, e eu lhe redobro a trilha;

Como se dava aos reis carro triunfador,

Universos coloco aos pés do Criador.


Fragmentos do diálogo entre o inquisidor e Galileu:


O INQUISIDOR.

Verdadeiro não é qual o das Escrituras;

Erro é tudo o que resta, e visões, e imposturas;

Quem no contrário crê em seu ensinamento

Não é esclarecido, é um cego desatento.


GALILEU.

Sim, a fé do cristão tem a norma que a guia;

Seu único poder reina na teologia,

E deve a adoração curvar nossos esp’ritos

Aos dogmas divinais em que aí são inscritos;

Mas da matéria o mundo escapa à força insana;

Deus o entrega inteiro à discussão humana;

Por de coisas tratar que caem sob os sentidos,

Sentidos e razão se mostram combalidos;

A autoridade cala; e nula a ordem se faz

Bem no centro da esfera os raios desiguais,

De heresia se anula acusar-se o compasso,

Nem aos corpos impor que não girem no espaço.

Enfim, o olho é juiz do Universo visível.

Se o imutável dogma é na Bíblia intangível,

A Ciência repele essa imobilidade,

E nos ferros morrendo alcança a liberdade.


O INQUISIDOR.

Ora, não vês então que teu novo sistema

Turvando a astronomia à fé deixa em dilema?

O erro material em certo ponto aceito,

Em todo o Testamento o exame faz suspeito;

Quem uma vez falhou não é mais infalível;

A dúvida se aceita, o exame é ato possível,

E logo há conclusão, se alguém ousa julgar,

Da física inexata o dogma se enganar.


GALILEU.

Eu a fé destruir, quando engrandeço o culto!

Em sua obra ver Deus é Lhe fazer insulto?

Ah! senti-la melhor, é melhor adorá-la,

E entanto, honrá-la mal é que é desfigurá-la.

Os céus conforme a Bíblia em que devemos crer,

Os céus de seu Autor glória nos fazem ver;

Bem melhor que ninguém Lhe escuto a narração,

E tenho repetido o que a dizer estão.


….De uma.verdade nova há quem lhe barre o fio?

Uma gota deter, será deter um rio?

Crede-me, respeitai estas aspirações,

Elas têm muito impulso e muitas expansões

Pra deixar-se reter nas grades da prisão;

Deixai-lhes livre o campo ou morte ao barreirão!

- Ah! Roma ao ver um dia os teus cultos proscritos,

Dizias nada opor senão do gládio aos ritos;

Só triunfaste, então, ao mudar de papel

E opondo ao próprio gládio a palavra em laurel.


Antônia, filha de Galileu, vendo proscrito o pai, lhe diz:


Tua filha, eis-me aqui. Sim, meu piedoso amor

Seguirá o proscrito, e dos céus vencedor.

Levando, vale a vale, o teu bastão assim,

Direi: “De Galileu o pão trazei-mo a mim,

Para aquele que um lar negaram-lhe os cristãos,

E altar teria tido entre os povos pagãos.”


Galileu sondou as profundezas dos céus e revelou a pluralidade dos mundos materiais. Como dissemos, foi toda uma revelação nas ideias; um novo campo de exploração foi aberto à Ciência. O Espiritismo vem operar outra não menor, revelando a existência do mundo espiritual que nos rodeia; graças a ele o homem conhece seu passado e seu verdadeiro destino. Galileu derrubou as barreiras que circunscreviam o Universo: o Espiritismo o povoa e enche o vazio dos espaços infinitos. Embora mais de dois séculos nos separem das descobertas de Galileu, muitos preconceitos ainda estão vivos; a nova doutrina emancipadora encontra os mesmos obstáculos; atacam-na com as mesmas armas, opõem-lhe os mesmos argumentos. Lendo o drama do Sr. Ponsard, poder-se-ia dar nomes próprios modernos a cada um de seus personagens. Entretanto, a má vontade e a perseguição não impediram que a doutrina de Galileu triunfasse, porque era a verdade. Dar-se-á o mesmo com o Espiritismo, porque é, também, uma verdade. Seus detratores serão olhados pela geração futura com os mesmos olhos com que olhamos os de Galileu.




Abril

1. — O acontecimento literário do dia é a representação de Galileu - Google Books, drama em versos do Sr. Ponsard. Embora nele não se cogite de Espiritismo, a ele se liga por um lado essencial: o da pluralidade dos mundos habitados e, sob tal ponto de vista, podemos considerá-lo como uma das obras chamadas a favorecer o desenvolvimento da Doutrina, popularizando um de seus princípios fundamentais.

O destino da Humanidade está ligado à organização do Universo, como o do habitante o está à sua habitação. Na ignorância desta organização, o homem deve ter feito sobre o seu passado e o seu futuro ideias em conformidade com o estado de seus conhecimentos. Se tivesse sempre conhecido a estrutura da Terra, jamais teria pensado em situar o inferno em suas entranhas; se tivesse conhecido o infinito do espaço e a multidão de astros que aí se movem, não teria localizado o céu acima do céu das estrelas; não teria feito da Terra o ponto central do Universo, a única habitação dos seres vivos; não teria condenado a crença nos antípodas como uma heresia; se tivesse conhecido a Geologia, jamais teria acreditado na formação da Terra em seis dias e em sua existência desde seis mil anos.

A ideia mesquinha que o homem fazia da Criação devia dar-lhe uma ideia mesquinha da Divindade. Não pôde compreender a grandeza, o poder e a sabedoria infinitos do Criador senão quando seu pensamento pôde abarcar a imensidade do Universo e a sabedoria das leis que o regem, como se julga o gênio de um mecânico pelo conjunto, a harmonia e a precisão de um mecanismo, e não à vista de uma simples engrenagem. Só então suas ideias puderam crescer e elevar-se acima de seu horizonte limitado. Em todos os tempos suas crenças religiosas foram calcadas na ideia que fazia de Deus e de sua obra. O erro de suas crenças sobre a origem e o destino da Humanidade tinha por causa sua ignorância das verdadeiras leis da Natureza; se, desde a origem, tivesse conhecido essas leis, outros teriam sido seus dogmas.

Galileu, um dos primeiros a revelar as leis do mecanismo do Universo, não por hipóteses, mas por uma demonstração irrecusável, abriu caminho a novos progressos. Por isto mesmo devia produzir uma revolução nas crenças, destruindo os fundamentos científicos errôneos sobre os quais elas se apoiavam.

A cada um a sua missão. Nem Moisés, nem o Cristo tinham a de ensinar aos homens as leis da Ciência; o conhecimento dessas leis devia ser o resultado do trabalho e das pesquisas do homem, da atividade e do desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber sem esforço. Eles não deviam nem podiam lhes ter falado senão numa linguagem apropriada ao seu estado intelectual, sem o que não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua missão moralizadora; a gênios de uma outra ordem são deferidas missões científicas. Ora, como as leis morais e as leis da Ciência são leis divinas, a religião e a filosofia só podem ser verdadeiras pela aliança destas leis.


2. — O Espiritismo baseia-se na existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo; repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre seu progresso indefinido, através dos mundos e das gerações; sobre a pluralidade das existências corporais, necessárias ao seu progresso individual; sobre sua cooperação relativa, como encarnados ou desencarnados, na obra geral, na medida do progresso realizado; sobre a solidariedade que une todos os seres de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e desencarnados, cada um tem sua missão, seu papel, deveres a cumprir, desde o mais ínfimo até os anjos, que nada mais são que Espíritos humanos chegados ao estado de Espíritos puros, e aos quais são confiadas as grandes missões, o governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos adquiridos; em toda parte o desejo de progredir ainda e de aumentar a soma de felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para sempre de sua sorte futura, impõe limite ao seu progresso e torna estéril, para o futuro, o trabalho a que se entrega para instruir-se, o homem tem por domínio o Universo; nada do que sabe ou do que faz fica perdido: o futuro lhe pertence; em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em lugar do nada, segundo alguns, a vida eterna; em lugar da beatitude contemplativa perpétua, segundo outros, que a tornaria de uma inutilidade perpétua, um papel ativo, proporcionado ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas temporárias, a posição que cada um conquista por sua perseverança no bem ou no mal; em vez de uma mancha original, que o torna passível de faltas que não cometeu, a consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em conta todo arrependimento e toda boa vontade.

Tal é, em resumo, o quadro que apresenta o Espiritismo, e que ressalta da situação mesma dos Espíritos que se manifestam; não é mais uma simples teoria, mas resultado da observação. O homem que encara as coisas deste ponto de vista, sente-se crescer; ergue-se aos seus próprios olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo para os seus trabalhos, para os seus esforços em se melhorar.

Mas, para compreender o Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele abarca, para compreender o objetivo e o destino do homem, não era preciso relegar a Humanidade a um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos, rebaixar o Criador e a criatura. Para que o homem pudesse fazer uma ideia justa de seu papel no Universo, era preciso que compreendesse, pela pluralidade dos mundos, o campo aberto às suas explorações futuras e a atividade de seu espírito; para recuar indefinidamente os limites da Criação, para destruir os preconceitos sobre os lugares especiais de recompensa e de punição, sobre os diferentes estágios dos céus, era preciso que penetrasse as profundezas do espaço; que em lugar do cristalino e do empíreo, aí visse circular, em majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis, semelhantes ao seu; que em toda parte seu pensamento encontrasse a criatura inteligente.


3. — A história da Terra se liga à da Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas mesquinhas e falsas opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do nosso globo, de suas crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem; para que consentisse em desalojar do seio da terra o inferno e o império de Satã, era preciso que pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua formação e de suas revoluções físicas. A Astronomia e a Geologia, secundadas pelas descobertas da Física e da Química, apoiadas sobre as leis da Mecânica, são as duas poderosas alavancas que atacarão os seus preconceitos sobre a sua origem e o seu destino.

A matéria e o espírito são os dois princípios constitutivos do Universo. Mas o conhecimento das leis que regem a matéria devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só as primeiras poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência dos fatos. O Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do elemento espiritual, só podia vir depois; para que pudesse tomar o seu impulso e dar frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso que encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano liberto dos preconceitos e das ideias falsas, se não na totalidade, ao menos em grande parte, sem o que só se teria tido um Espiritismo acanhado, bastardo, incompleto e misturado a crenças e práticas absurdas, como ainda hoje o é nos povos atrasados. Se se considerar a situação das nações adiantadas, reconhecer-se-á que ele veio em tempo oportuno, para preencher os vazios que se fazem nas crenças.

Galileu abriu o caminho. Rasgando o véu que ocultava o infinito, alargou o domínio da inteligência e desferiu um golpe fatal nas crenças errôneas; destruiu mais superstições e ideias falsas do que todas as filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade. O Espiritismo deve colocá-lo na classe dos grandes gênios que rasgaram a via, diminuindo as barreiras opostas pela ignorância. As perseguições de que foi objeto, e que são o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos, fizeram-no grande aos olhos da posteridade, ao mesmo tempo que rebaixaram os perseguidores. Quem é hoje maior: ele ou eles?

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita citar alguns fragmentos do belo drama do Sr. Ponsard. Fá-lo-emos no próximo número.


[2.° Artigo. Revista de maio.]

4 GALILEU.


FRAGMENTOS DO DRAMA DO SR. PONSARD.

(Ver o número precedente.)

Um século antes de Galileu, Copérnico tinha concebido o sistema astronômico que traz o seu nome. Com o auxílio do telescópio que havia inventado, e juntando a observação direta à teoria, Galileu completou as ideias de Copérnico e demonstrou sua verdade pelo cálculo. Com seu instrumento, pôde estudar a natureza dos planetas e, de sua similitude com a Terra, concluiu pela sua habitabilidade. Igualmente tinha reconhecido que as estrelas são outros tantos sóis, disseminados nos espaços sem limites, e pensou que cada um devia ser o centro do movimento de um sistema planetário. Acabava de descobrir os quatro satélites de Júpiter e este acontecimento abalou o mundo científico e o mundo religioso. O poeta se dedica a pintar, no seu drama, a diversidade dos sentimentos que excitou, conforme o caráter e os preconceitos dos indivíduos.

Dois estudantes da Universidade se entretêm com a descoberta de Galileu, e como não estão de acordo, buscam a opinião de um professor de renome.


Albert: Nós num ponto, doutor, em desacordo estamos,

Queríamos, pois, saber o que pensais.


Pompeu: Ele aceita pedir conselhos bons, reais – De que se trata, então?


Vivian: Dos satélites vistos.

De Júpiter ao redor nos orbitais previstos.


Pompeu: Não existem, não.


Vivian: Mas…


Pompeu: Não podem existir.


Vivian: Podemos, entretanto, os ver e conferir.


Pompeu: Não, nem mesmo os contar que inexistentes são.


Albert: Tu o ouves, Vivian?


Vivian: E por que mestre, então?


Pompeu:

E porque sustentar que Deus pode ter feito

Quatro globos além dos sete, com efeito

É propósito mau, um tema em fantasia,

Antireligioso e sem filosofia.

(E vendo Galileu seguido por muitos estudantes)

Basbaques, tolos, são! e infame charlatão!


Albert a Vivian: Vês que o doutor Pompeu contra ti se revela.


Vivian: Bem melhor pra Doutrina em que creio e tão bela;

É de toda a verdade a marcha natural,

Contra ela amotinar-se os pedantes do mal.


[Observação de ALLAN KARDEC.] Aí bem está a força do raciocínio de certos negadores das ideias novas: isto não é porque não pode ser. Perguntava-se a um sábio: Que diríeis se vísseis uma mesa erguer-se sem ponto de apoio? – Não acreditaria, respondeu ele, porque sei que isto não pode ser.



UM MONGE,

pregando à multidão:

Escutai o que diz o Apóstolo: Nos céus

Vossos olhos passeais, por que, ó Galileus?

Que ele, assim, de antemão anátema lançava

Contra ti, Galileu, e teu plano atacava.

Nós mesmos vemos, hoje, e muito claramente,

Quanto horror tem o céu a este ensino inciente,

E o Arno transbordado e o gelo nos vinhais,

Do divino furor são dolentes sinais.

Meus irmãos, desdenhai as mentiras grosseiras;

Para a Terra marchar só com pés, sem canseiras?

Pois se a Lua se move é que há um anjo que a guia;

Porque a cada planeta um condutor vigia;

Mas da Terra, seu anjo, onde ele está, nos montes?

Seria visto aí. – No centro? O mal tem fontes.


Lívia, mulher de Galileu, é o tipo de pessoa de mente estreita,

mais preocupada com a vida material do que com a glória e a verdade.


LÍVIA, a Galileu.

…Por que a mente esquentar,

Novos ensinos tens em vão a divulgar?

Tais novidades são resumíveis num termo,

Invenção do diabo e o mal expresso em ermo.

Pelo modo por que vos olha cada qual,

Se não te guardas bem, isto acabará mal.

Oh! por que não seguir os dignos professores

Que isso dizem citando os seus predecessores?

Eis pessoas em quem reina sempre o bom-senso;

Ensinam sem questão no que esperam consenso,

E sem se desgastar em público abatido

Se a Aristóteles ou Copérnico haver crido,

Sustentam com saber que a certa opinião

Aquela deve ser por qual se paga então,

Se a Aristóteles cabe o cofre-forte abrir,

Aristóteles faz Copérnico sair.

Não se fazem assim dissentir com ninguém;

Mas embolsam em paz os florins que lhes vêm;

Prosperam; moram bem; e sempre bem nutridos;

As filhas dotes têm com que encontram maridos;

Seu auditório é suave e nunca atormentado;

Retornam sempre ao lar para o caldo esperado;

Mas vós, vós fazeis raiva, e alguém vos aplaudia

E nesse meio tempo, eis que o jantar esfria.


Fragmentos do monólogo de Galileu no começo do segundo ato:


Não mais o tempo em que, no reino solidão,

A Terra no seu trono era imóvel então;

Não, o carro veloz, levando o astro do dia

Do nascer até se pôr não mais seu rumo guia;

Pois já do firmamento a curva cristalina

Que, como um teto azul, de lustres se ilumina;

Não é só para nós que Deus fez Universo;

Mas antes de nos ter, fomos no orgulho imersos!

Pois se abdicamos nós uma realeza falsa,

Porquanto da verdade a Ciência nos exalça;

Faz-se o corpo menor, mais o Espírito cresce;

Nossa nobreza crê ou nossa fé decresce.

Para o homem é mais belo, ínfima criatura,

Os intricados véus ele abrir da Natura,

E de ousar abraçar em sua concepção

A lei universal da própria criação,

Como nos dias ser, de vaidosa mentira

Rei de certa ilusão que num sonho se mira,

Centro inculto de um todo e do qual crê-se autor,

E só por ter pensado, hoje acha-se senhor.

O Sol, globo de fogo, gigantesca fornalha,

Um caos incandescente e de onde a vida espalha,

Tempestivo oceano onde oscilam perdidos

Rochas que se diluem e alguns metais fundidos,

Batendo e misturando, as vagas inflamadas

São negras explosões de fumo carregadas,

Uma ilhota vermelha exsurge do crisol,

Tolda pela manhã, hoje a face do Sol;

Almeja em torno a ti, ó incêndio fecundo,

A Terra, nossa mãe, um resfriar profundo,

E, resfriados como ela, e, que vivem como ela;

Marte sempre sangrento e Vênus de luz bela;

Junto ao teu esplendor, Mercúrio vive assim,

E desse reino teu Saturno no confim,

E por Deus, para mim, e com venturas suas

A Júpiter coroa um quádruplo de luas.

Mas, astro soberano e centro desses mundos

Para além desse império os limites profundos,

Os milhares de sóis numerosos e densos,

Que ninguém contar pode em seus grupos imensos.

Prolongam, como tu, suas vastas crateras,

Movendo, como tu, planetárias esferas,

Que lhes giram em torno, o seu curso a compor,

E colhem de seu rei claridade e calor.

Oh! sim, sois vós melhor que as lâmpadas noturnas,

Que dariam mais luz que as chamas taciturnas,

Inúmeros clarões, estrelas que empoeirais,

De vossa areia de ouro as sendas azulais,

Em casa vos palpita a vida universal,

Mais não vemos senão uma centelha astral.


E em toda a parte ação, o movimento e a alma!

Rolando, aqui e ali, em seus centros sem calma,

Globos de habitação, cujos homens pressinto,

Viverem meu viver, sentirem como eu sinto,

Uns rebaixados mais, enquanto outros talvez

Em mais altos degraus na ordem de sua vez!

Quão grande! Como é belo! Em que culto profundo!

O Espírito em torpor, se perde em abismo fundo!

Copiosíssimo autor, que tua onipotência

Aí se mostra em glória e em tal magnificência!

Que a vida a se expandir em ondas no infinito,

Vastamente proclama o teu nome bendito!

Perseguidores, ide! Anátemas lançai!

Tenho mais fé que vós, sabendo pois ficai.

Deus, que vós invocais, melhor que vós imerso

Nele vejo: só lama, e pra vós é o Universo;

Para mim sobretudo a obra divina brilha;

Vós a fazeis estreita, e eu lhe redobro a trilha;

Como se dava aos reis carro triunfador,

Universos coloco aos pés do Criador.


Fragmentos do diálogo entre o inquisidor e Galileu:


O INQUISIDOR.

Verdadeiro não é qual o das Escrituras;

Erro é tudo o que resta, e visões, e imposturas;

Quem no contrário crê em seu ensinamento

Não é esclarecido, é um cego desatento.


GALILEU.

Sim, a fé do cristão tem a norma que a guia;

Seu único poder reina na teologia,

E deve a adoração curvar nossos esp’ritos

Aos dogmas divinais em que aí são inscritos;

Mas da matéria o mundo escapa à força insana;

Deus o entrega inteiro à discussão humana;

Por de coisas tratar que caem sob os sentidos,

Sentidos e razão se mostram combalidos;

A autoridade cala; e nula a ordem se faz

Bem no centro da esfera os raios desiguais,

De heresia se anula acusar-se o compasso,

Nem aos corpos impor que não girem no espaço.

Enfim, o olho é juiz do Universo visível.

Se o imutável dogma é na Bíblia intangível,

A Ciência repele essa imobilidade,

E nos ferros morrendo alcança a liberdade.


O INQUISIDOR.

Ora, não vês então que teu novo sistema

Turvando a astronomia à fé deixa em dilema?

O erro material em certo ponto aceito,

Em todo o Testamento o exame faz suspeito;

Quem uma vez falhou não é mais infalível;

A dúvida se aceita, o exame é ato possível,

E logo há conclusão, se alguém ousa julgar,

Da física inexata o dogma se enganar.


GALILEU.

Eu a fé destruir, quando engrandeço o culto!

Em sua obra ver Deus é Lhe fazer insulto?

Ah! senti-la melhor, é melhor adorá-la,

E entanto, honrá-la mal é que é desfigurá-la.

Os céus conforme a Bíblia em que devemos crer,

Os céus de seu Autor glória nos fazem ver;

Bem melhor que ninguém Lhe escuto a narração,

E tenho repetido o que a dizer estão.


….De uma.verdade nova há quem lhe barre o fio?

Uma gota deter, será deter um rio?

Crede-me, respeitai estas aspirações,

Elas têm muito impulso e muitas expansões

Pra deixar-se reter nas grades da prisão;

Deixai-lhes livre o campo ou morte ao barreirão!

- Ah! Roma ao ver um dia os teus cultos proscritos,

Dizias nada opor senão do gládio aos ritos;

Só triunfaste, então, ao mudar de papel

E opondo ao próprio gládio a palavra em laurel.


Antônia, filha de Galileu, vendo proscrito o pai, lhe diz:


Tua filha, eis-me aqui. Sim, meu piedoso amor

Seguirá o proscrito, e dos céus vencedor.

Levando, vale a vale, o teu bastão assim,

Direi: “De Galileu o pão trazei-mo a mim,

Para aquele que um lar negaram-lhe os cristãos,

E altar teria tido entre os povos pagãos.”


Galileu sondou as profundezas dos céus e revelou a pluralidade dos mundos materiais. Como dissemos, foi toda uma revelação nas ideias; um novo campo de exploração foi aberto à Ciência. O Espiritismo vem operar outra não menor, revelando a existência do mundo espiritual que nos rodeia; graças a ele o homem conhece seu passado e seu verdadeiro destino. Galileu derrubou as barreiras que circunscreviam o Universo: o Espiritismo o povoa e enche o vazio dos espaços infinitos. Embora mais de dois séculos nos separem das descobertas de Galileu, muitos preconceitos ainda estão vivos; a nova doutrina emancipadora encontra os mesmos obstáculos; atacam-na com as mesmas armas, opõem-lhe os mesmos argumentos. Lendo o drama do Sr. Ponsard, poder-se-ia dar nomes próprios modernos a cada um de seus personagens. Entretanto, a má vontade e a perseguição não impediram que a doutrina de Galileu triunfasse, porque era a verdade. Dar-se-á o mesmo com o Espiritismo, porque é, também, uma verdade. Seus detratores serão olhados pela geração futura com os mesmos olhos com que olhamos os de Galileu.




Março 2 A homeopatia no tratamento das doenças morais

Março


Temas Relacionados:

1. — Pode a homeopatia modificar as disposições morais? Tal é a pergunta que se fazem alguns médicos homeopatas e à qual não hesitam em responder afirmativamente, apoiando-se em fatos. Levando-se em conta a sua extrema gravidade, vamos examiná-la com cuidado, de um ponto de vista que nos parece ter sido negligenciado por aqueles senhores, por mais espiritualistas e mesmo espíritas que sem dúvida o sejam, porque há pouquíssimos médicos homeopatas que não sejam uma ou outra coisa. Mas, para a compreensão de nossas conclusões, algumas explicações preliminares sobre as modificações dos órgãos cerebrais são necessárias, sobretudo para as pessoas estranhas à fisiologia.

Um princípio que a simples razão faz admitir, que a Ciência constata diariamente, é que nada há de inútil na Natureza, que, até nos mais imperceptíveis detalhes, tudo tem um fim, uma razão de ser, uma destinação. Este princípio é particularmente evidente no que respeita ao organismo dos seres vivos.

Em todos os tempos o cérebro foi considerado como o órgão da transmissão do pensamento e a sede das faculdades intelectuais e morais. Hoje é reconhecido que certas partes do cérebro têm funções especiais e são afetadas por uma ordem particular de pensamentos e de sentimentos, pelo menos no que concerne à generalidade; é assim que se colocam, instintivamente, na parte anterior, as faculdades do domínio da inteligência, e que uma fronte fortemente deprimida e estreitada, é, para todo o mundo, um sinal de inferioridade intelectual. As faculdades afetivas, os sentimentos e as paixões se acham, por isto mesmo, como tendo sua sede em outras partes do cérebro.

Ora, se se considera que os pensamentos e os sentimentos são excessivamente múltiplos, e partindo do princípio de que tudo tem sua destinação e sua utilidade, é permitido concluir que cada feixe fibroso do cérebro não só corresponde a uma faculdade geral distinta, mas que cada fibra corresponde à manifestação de uma das nuanças desta faculdade, como cada corda de um instrumento corresponde a um som particular. É uma hipótese, sem dúvida, mas que tem todos os caracteres da probabilidade, e cuja negação não infirmaria as consequências que deduziremos do princípio geral; ela nos ajudará em nossa explicação.

O pensamento é independente do organismo. Não há por que discutir aqui esta questão, nem refutar a opinião materialista, segundo a qual o pensamento é secretado pelo cérebro, como a bile o é pelo fígado, nasce e morre com esse órgão; além de suas funestas consequências morais, esta doutrina tem contra si o fato de nada explicar.

Segundo as doutrinas espiritualistas, que são as da imensa maioria dos homens, não podendo a matéria produzir o pensamento, este é um atributo do Espírito, do ser inteligente, que, quando unido ao corpo, serve-se dos órgãos especialmente destinados à sua transmissão, como se serve dos olhos para ver, dos pés para andar. Sobrevivendo o Espírito ao corpo, o pensamento também lhe sobrevive.

Segundo a Doutrina Espírita, não só o Espírito sobrevive, mas preexiste ao corpo; não é um ser novo; traz, ao nascer, as ideias, as qualidades e as imperfeições que possuía; assim se explicam as ideias, as aptidões e os pendores inatos. O pensamento é, pois, preexistente e sobrevivente ao organismo. Este ponto é capital e é por não o terem reconhecido que tantas questões ficaram insolúveis.

Estando na Natureza todas as faculdades e aptidões, o cérebro encerra os órgãos, ou, pelo menos, o germe dos órgãos necessários à manifestação de todos os pensamentos. A atividade do pensamento do Espírito sobre um ponto determinado impele ao desenvolvimento da fibra ou, se se quiser, do órgão correspondente; se uma faculdade não existir no Espírito, ou se, existindo, deve ficar em estado latente, o órgão correspondente, estando inativo, não se desenvolve ou se atrofia. Se o órgão for atrofiado congenitamente, não podendo manifestar-se a faculdade, o Espírito parece dele privado, embora de fato o possua, desde que lhe é inerente. Enfim, se o órgão, primitivamente em seu estado normal, se deteriora no curso da vida, a faculdade, de brilhante que era, vai perdendo a cor, depois se apaga, mas não se destrói; é apenas um véu que a obscurece.

Conforme os indivíduos, há faculdades, aptidões, tendências que se manifestam desde o começo da vida, enquanto outras se revelam em épocas mais tardias e produzem as mudanças de caráter e de disposições que se notam em certas pessoas. Neste último caso, geralmente não são disposições novas, mas aptidões preexistentes, que dormitam até que uma circunstância as venha estimular e despertar. Pode-se estar certo de que as disposições viciosas, que por vezes se manifestam subitamente e tardiamente, tinham seu germe preexistente nas imperfeições do Espírito, porque este, marchando sempre para o progresso, se for essencialmente bom não pode tornar-se mau, ao passo que de mau pode tornar-se bom.

O desenvolvimento ou o enfraquecimento dos órgãos cerebrais acompanha o movimento que se opera no Espírito. Essas modificações são favorecidas em todas as idades, mas, sobretudo, na juventude, pelo trabalho íntimo de renovação que se opera incessantemente no organismo, da seguinte maneira:

Como se sabe, os principais elementos do organismo são o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono que, por suas múltiplas combinações, formam o sangue, os nervos, os músculos, os humores e as diferentes variedades de substâncias. Pela atividade das funções vitais, as moléculas orgânicas são incessantemente expelidas do corpo pela transpiração, pela exalação e por todas as secreções, de sorte que se não fossem substituídas, o corpo se reduziria e acabaria por definhar. O alimento e a aspiração incessantemente trazem novas moléculas, destinadas a substituir as que se vão, de onde se segue que, num dado tempo, todas as moléculas orgânicas são inteiramente renovadas e, numa certa idade, não existe mais uma só das que formavam o corpo em sua origem. É o caso de uma habitação, da qual se arrancassem as pedras uma a uma, substituindo-as à medida por uma nova pedra da mesma forma e tamanho, e assim por diante, até a última. Ter-se-ia sempre a mesma casa, mas formada de pedras diferentes.

Dá-se o mesmo com o corpo, cujos elementos constitutivos são, conforme os fisiologistas, totalmente renovados de sete em sete anos. As diversas partes do organismo sempre subsistem, mas os materiais são mudados. Dessas mudanças gerais ou parciais nascem as modificações que sobrevêm, com a idade, no estado sanitário de certos órgãos, as variações que sofrem os temperamentos, os gostos, os desejos que influem sobre o caráter.

Nem sempre as aquisições e as perdas estão em perfeito equilíbrio. Se as aquisições superam as perdas, o corpo cresce, aumenta; se se dá o contrário, o corpo diminui. Assim se explicam o crescimento, a obesidade, o emagrecimento, a decrepitude.

A mesma causa produz a expansão ou a interrupção do desenvolvimento dos órgãos cerebrais, conforme as modificações que se operam nas preocupações habituais, nas ideias e no caráter. Se as circunstâncias e as causas que agem diretamente sobre o Espírito, provocando o exercício de uma aptidão ou de uma paixão, forem mantidas em estado de inércia, a atividade que se produz no órgão correspondente aí faz afluir o sangue e, com ele, as moléculas constituintes do órgão, que cresce e toma força em proporção desta atividade. Pela mesma razão, a inatividade da faculdade produz o enfraquecimento do órgão, do mesmo modo que uma atividade muito intensa e persistente também pode levar à sua desorganização ou enfraquecimento, por uma espécie de gasto, tal como acontece com uma corda muito esticada.

As aptidões do Espírito são, pois, sempre uma causa, e o estado dos órgãos um efeito. Pode suceder, entretanto, que o estado dos órgãos seja modificado por uma causa estranha ao Espírito, tal como doença acidental, influência atmosférica ou climática; então são os órgãos que reagem sobre o Espírito, não alterando as suas faculdades, mas perturbando a sua manifestação.

Um efeito semelhante pode resultar das substâncias ingeridas no estômago, como alimentos ou medicamentos. Essas substâncias aí se decompõem, e os princípios essenciais que encerram, misturados ao sangue, são levados, pela corrente da circulação, a todas as partes do corpo. É reconhecido pela experiência que os princípios ativos de certas substâncias são levados mais particularmente a tal ou qual víscera: o coração, o fígado, os pulmões, etc., e aí produzem efeitos reparadores ou deletérios, conforme sua natureza e propriedades especiais. Algumas, agindo desta maneira sobre o cérebro, podem exercer sobre o conjunto, ou sobre partes determinadas, uma ação estimulante ou estupefaciente, conforme a dose e o temperamento, por exemplo, as bebidas alcoólicas, o ópio e outras.

Nós nos estendemos um pouco sobre os detalhes que precedem, a fim de dar a compreender o princípio sobre o qual pode apoiar-se, com aparência de lógica, a teoria das modificações do estado moral por meios terapêuticos. Esse princípio é o da ação direta de uma substância sobre uma parte do organismo cerebral, tendo por função especial servir à manifestação de uma faculdade, de um sentimento ou de uma paixão, porque não pode vir ao pensamento de ninguém que tal substância possa agir sobre o Espírito.

Admitido, pois, que o princípio das faculdades esteja no Espírito, e não na matéria, suponhamos que se reconheça numa substância a propriedade de modificar as disposições morais, neutralizar uma inclinação má: isto só poderia ser por sua ação sobre o órgão correspondente a essa inclinação, ação que teria por efeito interromper o desenvolvimento desse órgão, atrofiá-lo ou paralisá-lo, se for desenvolvido. Torna-se evidente que, neste caso, não se suprime a inclinação, mas a sua manifestação, absolutamente como se ao músico se tirasse o seu instrumento.

Provavelmente são efeitos desta natureza que certos homeopatas observaram, e que os levaram a crer na possibilidade de corrigir, com o auxílio de medicamentos apropriados, vícios tais como o ciúme, o ódio, o orgulho, a cólera, etc. Uma tal doutrina, se verdadeira, seria a negação de toda responsabilidade moral, a sanção do materialismo, porque, então, a causa de nossas imperfeições estaria só na matéria; a educação moral se reduziria a um tratamento médico; o pior homem poderia tornar-se bom sem grandes esforços, e a Humanidade poderia ser regenerada com o auxílio de algumas pílulas. Se, ao contrário, como não padece dúvida, as imperfeições forem inerentes à própria inferioridade do Espírito, não se o melhorará pela modificação de seu invólucro carnal, como não se endireitaria um corcunda, dissimulando sua deformidade sob os tecidos de suas roupas.

Contudo, não duvidamos que tais resultados sejam obtidos em alguns casos particulares, porquanto, para afirmar um fato tão grave, é preciso ter observado; mas estamos convictos de que se enganaram com a causa e o efeito. Por sua natureza etérea os medicamentos homeopáticos têm uma ação de certa forma molecular; sem dúvida podem agir, mais que outros, sobre certas partes elementares e fluídicas dos órgãos e lhes modificar a constituição íntima. Se, pois, como é racional admitir, todos os sentimentos da alma têm sua fibra cerebral correspondente para a sua manifestação, um medicamento que agisse sobre essa fibra, quer para a paralisar, quer para exaltar sua sensibilidade, paralisaria ou exaltaria, por isso mesmo, a expressão do sentimento, do qual fosse instrumento, mas o sentimento não deixaria de subsistir. O indivíduo estaria na posição de um assassino a quem se tirasse a possibilidade de cometer homicídios, cortando-lhe os braços, mas que conservasse o desejo de matar. Seria, pois, um paliativo, mas não um remédio curativo. Não se pode agir sobre o ser espiritual senão por meios espirituais; a utilidade dos meios materiais, se fosse constatado o efeito acima, talvez fosse de dominar mais facilmente o Espírito, de o tornar mais flexível, mais dócil e mais acessível às influências morais; mas nos embalaríamos em ilusões se esperássemos de uma medicação qualquer um resultado definitivo e duradouro.

Seria completamente diferente se se tratasse de ajudar a manifestação de uma faculdade existente. Suponhamos um Espírito inteligente encarnado, não tendo ao seu serviço senão um cérebro atrofiado e não podendo, por conseguinte, manifestar suas ideias: será para nós um idiota. Admitindo, o que julgamos possível à homeopatia, mais do que a qualquer outro gênero de medicação, que se possa dar mais flexibilidade e sensibilidade às fibras cerebrais, o Espírito manifestaria seu pensamento, como um mudo, ao qual se tivesse desatado a língua. Mas se o Espírito fosse idiota por si mesmo, ainda que tivesse ao seu serviço o cérebro do maior gênio, nem por isso seria menos idiota. Não podendo um medicamento qualquer agir sobre o Espírito, não lhe poderia dar o que não tem, nem tirar o que tem; mas agindo sobre o órgão da transmissão do pensamento, pode facilitar essa transmissão sem que, por isto, nada seja mudado no estado do Espírito. O que é difícil, o mais das vezes mesmo impossível no idiota de nascença, porque há interrupção completa e quase sempre geral do desenvolvimento nos órgãos, torna-se possível quando a alteração é acidental e parcial. Neste caso, não é o Espírito que se aperfeiçoa, são os meios de comunicação.


[Revista de junho.]

2. A homeopatia no tratamento das doenças morais.

(2º artigo. — Vide o número de março de 1867.)

O artigo que publicamos no número de março sobre a ação da homeopatia nas doenças morais, nos valeu, de um dos mais ardentes partidários deste sistema e, ao mesmo tempo, um dos mais fervorosos adeptos do Espiritismo, o doutor Charles Grégory, a seguinte carta, que julgamos por bem publicar, em razão da luz que a discussão pode trazer à questão.

“Caro e venerado mestre,

“Vou tentar explicar-vos como compreendo a ação da homeopatia sobre o desenvolvimento das faculdades morais.

“Como eu, admitis que todo homem saudável possui rudimentos de todas as faculdades e de todos os órgãos cerebrais necessários à sua manifestação. Também admitis que certas faculdades vão se desenvolvendo sempre, enquanto outras, as que sem dúvida são apenas rudimentares, depois de mal terem dado alguns lampejos, parecem extinguir-se completamente. No primeiro caso, em vossa opinião, os órgãos cerebrais que dizem respeito às faculdades em pleno desenvolvimento teriam sua livre manifestação, ao passo que os rudimentares, que a maior parte das vezes se relacionam, também, com aptidões rudimentares, se atrofiam completamente com o avançar da idade, por falta de atividade vital.

“Se, pois, por meio de medicamentos apropriados, eu agir sobre os órgãos imperfeitos, se aí desenvolver um acréscimo de atividade vital, se para aí requisito uma nutrição mais poderosa, é bem claro que, aumentando o volume, eles permitirão que a faculdade rudimentar melhor se manifeste, e que, pela transmissão das ideias e dos sentimentos que tiverem colhido, pelos sentidos, no mundo exterior, imprimirão à faculdade correspondente uma influência salutar e, por sua vez, a desenvolverão, porque tudo se liga e se mantém no homem; a alma influi sobre o físico, como o corpo influi sobre a alma. Esta já é, portanto, uma primeira influência dos medicamentos através do aumento dos órgãos sobre as faculdades correspondentes da alma; uma possibilidade de o homem crescer em potencialidades e em aptidões, por meio de forças tiradas do mundo material.

“Agora, para mim não está provado de modo algum que nossas pequenas doses, chegadas a um estado de sublimação e de sutileza que ultrapassam todos os limites, de certo modo não tenham em si algo de espiritual, que por sua vez age sobre o Espírito. Nossos medicamentos, dados no estado de divisão que a arte os faz sofrer, não são mais substâncias materiais, mas, em minha opinião, forças que, necessariamente, devem agir sobre as faculdades da alma que, também elas, são forças.

“E, depois, como creio que o Espírito do homem, antes de encarnar-se na Humanidade, sobe todos os degraus da escala e passa pelo mineral, a planta e o animal e na maior parte dos tipos de cada espécie, onde preludia para seu completo desenvolvimento como ser humano, quem me diz que, dando medicamento que nem é mineral, nem planta, nem animal, mas o que poderia chamar sua essência e, de certo modo, seu espírito, não se age sobre a alma humana composta dos mesmos elementos? Porque, digam o que disserem, o espírito é bem alguma coisa e, desde que se desenvolveu e se desenvolve incessantemente, deve ter tomado seus elementos em alguma parte.

“Tudo quanto posso dizer é que não agimos sobre a alma com as nossas 200ª e 600ª diluições, materialmente, mas virtualmente e, de certo modo, espiritualmente.

“Os fatos estão aí, fatos numerosos, bem observados, e que bem poderiam demonstrar que não estou completamente errado. Para citar a mim mesmo, embora não goste muito de questões pessoais, direi que, experimentando em mim mesmo, há trinta anos, remédios homeopáticos, de certo modo criei em mim novas faculdades, sem dúvida rudimentares, mas que na minha mais exuberante juventude jamais tinha conhecido quando ignorava a homeopatia, e que hoje, aos cinquenta e dois anos, encontro bem desenvolvidas: o sentimento da cor e das formas.

“Acrescentarei ainda que, sob a influência de nossos meios, vi caracteres mudarem completamente; à leviandade sucederam a reflexão e a solidez do raciocínio; à lubricidade, a continência; à maldade, a benevolência; ao ódio, a bondade e o perdão das injúrias. Evidentemente não é coisa para alguns dias; são mesmo precisos alguns anos de cuidados, mas se chega a esses belos resultados por meios tão cômodos, que não há nenhuma dificuldade em decidir os clientes que vos são devotados, e um médico os tem sempre. Eu mesmo observei que os resultados obtidos por nossos meios eram adquiridos para sempre, ao passo que os dados pela educação, os bons conselhos, as exortações seguidas, os livros de moral quase não resistiam ante a possibilidade de satisfazer uma paixão ardente, e as tentações em relação com nossas fraquezas, antes adormecidas e entorpecidas do que curadas. Se, neste último caso, surgiam triunfos, não era sem lutas violentas, que não convinha prolongar por muito tempo.

“Eis, caro mestre, as observações que desejava submeter-vos sobre esta questão tão grave da influência da homeopatia sobre o moral humano.

“Para concluir: quer seja pelo cérebro que o medicamento age sobre as faculdades, quer aja ao mesmo tempo sobre a fibra cerebral e sobre a faculdade correspondente, não está menos demonstrado para mim, por centenas de fatos, que a ação sutil e profunda de nossas doses sobre o moral humano é bem real. Além disso, é-me demonstrado que a homeopatia deprime certas faculdades, certos sentimentos ou certas paixões muito exaltadas, para realçar outras muito enfraquecidas, e como que paralisadas, conduzindo, por isto mesmo, ao equilíbrio e à harmonia e, por conseguinte, à melhora real e ao progresso do homem em todas as suas aptidões, e facilidade de vencer-se a si mesmo.

“Não julgueis que tal resultado anule a responsabilidade humana, e que se chegue a esse progresso tão desejado sem sofrimentos e sem lutas. Não basta tomar um medicamento e dizer: “Vou vencer a minha inclinação para a cólera, o ciúme e a luxúria.” Oh! não! O remédio apropriado, uma vez introduzido no organismo, aí não traz uma modificação profunda senão ao preço de violentos sofrimentos morais e físicos e, muitas vezes, de longa, muito longa duração; sofrimentos que devem ser repetidos várias vezes, variando os medicamentos e as doses, e isto durante meses e, às vezes, anos, se se quiser chegar a resultados concludentes. É este o preço a pagar por seu melhoramento moral; é esta a prova e a expiação pelas quais tudo se paga neste mundo inferior, e vos confesso que não é coisa fácil de se corrigir, mesmo pela Homeopatia. Não sei se, pelas angústias interiores que se sofre, não se paga mais caro esse progresso do que pela modificação mais lenta, é verdade, mas sem dúvida mais suave e mais suportável da ação puramente moral de todos os dias, pela observação de si mesmo e o ardente desejo de vencer-se.

“Termino aqui. Mais tarde eu vos contarei inúmeros fatos que bem vos poderão convencer.

“Recebei, etc.”


3. — Esta carta em nada modifica a opinião que emitimos sobre a ação da Homeopatia no tratamento das doenças morais, e que, ao contrário, vem confirmar os próprios argumentos do Dr. Grégory Insistimos, pois, em dizer que, se os medicamentos homeopáticos podem ter uma ação sobre o moral, é agindo sobre os órgãos das manifestações, o que pode ter sua utilidade em certos casos, mas não sobre o Espírito; que as qualidades boas ou más e as aptidões são inerentes ao grau de adiantamento ou de inferioridade do Espírito, e que não é com um medicamento qualquer que se pode fazê-lo avançar mais depressa, nem lhe dar qualidades que não pode adquirir senão sucessivamente e pelo trabalho; que uma tal doutrina, fazendo depender as disposições morais do organismo, tira do homem toda responsabilidade, a despeito do que diz o Sr. Grégory, e o dispensa de todo trabalho sobre si mesmo para se melhorar, desde que se poderia torná-lo bom à sua revelia, administrando-lhe tal ou qual remédio; que se, com a ajuda de meios materiais, podem modificar-se os órgãos das manifestações, o que admitimos perfeitamente, esses meios não podem mudar as tendências instintivas do Espírito, do mesmo modo que, cortando a língua de um falador, não se lhe tira a vontade de falar. Um costume do Oriente vem confirmar nossa asserção por um fato material bem conhecido.

Evidentemente o estado patológico influi sobre o moral em certos aspectos, mas as disposições que têm esta fonte são acidentais e não constituem o fundo do caráter do Espírito; são estas, sobretudo, que uma medicação apropriada pode modificar. Há pessoas que só são benevolentes depois de ter jantado bem e às quais nada se deve pedir quando estão em jejum; deve-se concluir, por isto, que um bom jantar seria um remédio contra o egoísmo? Não, porque essa benevolência, provocada pela plenitude da satisfação sensual, é um efeito do próprio egoísmo; não passa de uma benevolência aparente, de um produto deste pensamento: “Agora que não mais preciso de nada, posso ocupar-me um pouco com os outros.”

Em resumo, não contestamos que certos medicamentos — e os homeopáticos mais que qualquer outros — produzem alguns dos efeitos indicados, mas contestamos enfaticamente seus resultados permanentes e, sobretudo, tão universais, como pretendem algumas pessoas. Um caso em que a Homeopatia nos parece particularmente aplicável com sucesso é o da loucura patológica, porque aqui a desordem moral é consequência da desordem física, e que agora é constatado pela observação dos fenômenos espíritas, que o Espírito não é louco. Não há por que o modificar, mas lhe dar os meios de manifestar-se livremente. A ação da Homeopatia pode ser aqui tanto mais eficaz, quanto age principalmente pela natureza espiritualizada de seus medicamentos, sobre o perispírito, que apresenta papel preponderante nesta afecção.

Teríamos mais de uma objeção a fazer sobre algumas das proposições contidas nesta carta, mas isto nos levaria muito longe. Contentamo-nos, pois, em considerar as duas opiniões. Como, em tudo, os fatos são mais concludentes que as teorias, e são eles, em última análise, que confirmam ou destroem as últimas, desejamos ardentemente que o Dr. Grégory publique um tratado especial prático de Homeopatia aplicado ao tratamento das doenças morais, a fim de que a experiência possa generalizar-se e decidir a questão. Mais que qualquer outro, ele nos parece capaz de fazer esse trabalho ex-professo.


[Vide: O sentido espiritual, 2ª carta do Dr. Grégory a Allan Kardec.]




Abril 4 GALILEU

Abril

1. — O acontecimento literário do dia é a representação de Galileu - Google Books, drama em versos do Sr. Ponsard. Embora nele não se cogite de Espiritismo, a ele se liga por um lado essencial: o da pluralidade dos mundos habitados e, sob tal ponto de vista, podemos considerá-lo como uma das obras chamadas a favorecer o desenvolvimento da Doutrina, popularizando um de seus princípios fundamentais.

O destino da Humanidade está ligado à organização do Universo, como o do habitante o está à sua habitação. Na ignorância desta organização, o homem deve ter feito sobre o seu passado e o seu futuro ideias em conformidade com o estado de seus conhecimentos. Se tivesse sempre conhecido a estrutura da Terra, jamais teria pensado em situar o inferno em suas entranhas; se tivesse conhecido o infinito do espaço e a multidão de astros que aí se movem, não teria localizado o céu acima do céu das estrelas; não teria feito da Terra o ponto central do Universo, a única habitação dos seres vivos; não teria condenado a crença nos antípodas como uma heresia; se tivesse conhecido a Geologia, jamais teria acreditado na formação da Terra em seis dias e em sua existência desde seis mil anos.

A ideia mesquinha que o homem fazia da Criação devia dar-lhe uma ideia mesquinha da Divindade. Não pôde compreender a grandeza, o poder e a sabedoria infinitos do Criador senão quando seu pensamento pôde abarcar a imensidade do Universo e a sabedoria das leis que o regem, como se julga o gênio de um mecânico pelo conjunto, a harmonia e a precisão de um mecanismo, e não à vista de uma simples engrenagem. Só então suas ideias puderam crescer e elevar-se acima de seu horizonte limitado. Em todos os tempos suas crenças religiosas foram calcadas na ideia que fazia de Deus e de sua obra. O erro de suas crenças sobre a origem e o destino da Humanidade tinha por causa sua ignorância das verdadeiras leis da Natureza; se, desde a origem, tivesse conhecido essas leis, outros teriam sido seus dogmas.

Galileu, um dos primeiros a revelar as leis do mecanismo do Universo, não por hipóteses, mas por uma demonstração irrecusável, abriu caminho a novos progressos. Por isto mesmo devia produzir uma revolução nas crenças, destruindo os fundamentos científicos errôneos sobre os quais elas se apoiavam.

A cada um a sua missão. Nem Moisés, nem o Cristo tinham a de ensinar aos homens as leis da Ciência; o conhecimento dessas leis devia ser o resultado do trabalho e das pesquisas do homem, da atividade e do desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber sem esforço. Eles não deviam nem podiam lhes ter falado senão numa linguagem apropriada ao seu estado intelectual, sem o que não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua missão moralizadora; a gênios de uma outra ordem são deferidas missões científicas. Ora, como as leis morais e as leis da Ciência são leis divinas, a religião e a filosofia só podem ser verdadeiras pela aliança destas leis.


2. — O Espiritismo baseia-se na existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo; repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre seu progresso indefinido, através dos mundos e das gerações; sobre a pluralidade das existências corporais, necessárias ao seu progresso individual; sobre sua cooperação relativa, como encarnados ou desencarnados, na obra geral, na medida do progresso realizado; sobre a solidariedade que une todos os seres de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e desencarnados, cada um tem sua missão, seu papel, deveres a cumprir, desde o mais ínfimo até os anjos, que nada mais são que Espíritos humanos chegados ao estado de Espíritos puros, e aos quais são confiadas as grandes missões, o governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos adquiridos; em toda parte o desejo de progredir ainda e de aumentar a soma de felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para sempre de sua sorte futura, impõe limite ao seu progresso e torna estéril, para o futuro, o trabalho a que se entrega para instruir-se, o homem tem por domínio o Universo; nada do que sabe ou do que faz fica perdido: o futuro lhe pertence; em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em lugar do nada, segundo alguns, a vida eterna; em lugar da beatitude contemplativa perpétua, segundo outros, que a tornaria de uma inutilidade perpétua, um papel ativo, proporcionado ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas temporárias, a posição que cada um conquista por sua perseverança no bem ou no mal; em vez de uma mancha original, que o torna passível de faltas que não cometeu, a consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em conta todo arrependimento e toda boa vontade.

Tal é, em resumo, o quadro que apresenta o Espiritismo, e que ressalta da situação mesma dos Espíritos que se manifestam; não é mais uma simples teoria, mas resultado da observação. O homem que encara as coisas deste ponto de vista, sente-se crescer; ergue-se aos seus próprios olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo para os seus trabalhos, para os seus esforços em se melhorar.

Mas, para compreender o Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele abarca, para compreender o objetivo e o destino do homem, não era preciso relegar a Humanidade a um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos, rebaixar o Criador e a criatura. Para que o homem pudesse fazer uma ideia justa de seu papel no Universo, era preciso que compreendesse, pela pluralidade dos mundos, o campo aberto às suas explorações futuras e a atividade de seu espírito; para recuar indefinidamente os limites da Criação, para destruir os preconceitos sobre os lugares especiais de recompensa e de punição, sobre os diferentes estágios dos céus, era preciso que penetrasse as profundezas do espaço; que em lugar do cristalino e do empíreo, aí visse circular, em majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis, semelhantes ao seu; que em toda parte seu pensamento encontrasse a criatura inteligente.


3. — A história da Terra se liga à da Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas mesquinhas e falsas opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do nosso globo, de suas crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem; para que consentisse em desalojar do seio da terra o inferno e o império de Satã, era preciso que pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua formação e de suas revoluções físicas. A Astronomia e a Geologia, secundadas pelas descobertas da Física e da Química, apoiadas sobre as leis da Mecânica, são as duas poderosas alavancas que atacarão os seus preconceitos sobre a sua origem e o seu destino.

A matéria e o espírito são os dois princípios constitutivos do Universo. Mas o conhecimento das leis que regem a matéria devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só as primeiras poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência dos fatos. O Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do elemento espiritual, só podia vir depois; para que pudesse tomar o seu impulso e dar frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso que encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano liberto dos preconceitos e das ideias falsas, se não na totalidade, ao menos em grande parte, sem o que só se teria tido um Espiritismo acanhado, bastardo, incompleto e misturado a crenças e práticas absurdas, como ainda hoje o é nos povos atrasados. Se se considerar a situação das nações adiantadas, reconhecer-se-á que ele veio em tempo oportuno, para preencher os vazios que se fazem nas crenças.

Galileu abriu o caminho. Rasgando o véu que ocultava o infinito, alargou o domínio da inteligência e desferiu um golpe fatal nas crenças errôneas; destruiu mais superstições e ideias falsas do que todas as filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade. O Espiritismo deve colocá-lo na classe dos grandes gênios que rasgaram a via, diminuindo as barreiras opostas pela ignorância. As perseguições de que foi objeto, e que são o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos, fizeram-no grande aos olhos da posteridade, ao mesmo tempo que rebaixaram os perseguidores. Quem é hoje maior: ele ou eles?

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita citar alguns fragmentos do belo drama do Sr. Ponsard. Fá-lo-emos no próximo número.


[2.° Artigo. Revista de maio.]

4 GALILEU.


FRAGMENTOS DO DRAMA DO SR. PONSARD.

(Ver o número precedente.)

Um século antes de Galileu, Copérnico tinha concebido o sistema astronômico que traz o seu nome. Com o auxílio do telescópio que havia inventado, e juntando a observação direta à teoria, Galileu completou as ideias de Copérnico e demonstrou sua verdade pelo cálculo. Com seu instrumento, pôde estudar a natureza dos planetas e, de sua similitude com a Terra, concluiu pela sua habitabilidade. Igualmente tinha reconhecido que as estrelas são outros tantos sóis, disseminados nos espaços sem limites, e pensou que cada um devia ser o centro do movimento de um sistema planetário. Acabava de descobrir os quatro satélites de Júpiter e este acontecimento abalou o mundo científico e o mundo religioso. O poeta se dedica a pintar, no seu drama, a diversidade dos sentimentos que excitou, conforme o caráter e os preconceitos dos indivíduos.

Dois estudantes da Universidade se entretêm com a descoberta de Galileu, e como não estão de acordo, buscam a opinião de um professor de renome.


Albert: Nós num ponto, doutor, em desacordo estamos,

Queríamos, pois, saber o que pensais.


Pompeu: Ele aceita pedir conselhos bons, reais – De que se trata, então?


Vivian: Dos satélites vistos.

De Júpiter ao redor nos orbitais previstos.


Pompeu: Não existem, não.


Vivian: Mas…


Pompeu: Não podem existir.


Vivian: Podemos, entretanto, os ver e conferir.


Pompeu: Não, nem mesmo os contar que inexistentes são.


Albert: Tu o ouves, Vivian?


Vivian: E por que mestre, então?


Pompeu:

E porque sustentar que Deus pode ter feito

Quatro globos além dos sete, com efeito

É propósito mau, um tema em fantasia,

Antireligioso e sem filosofia.

(E vendo Galileu seguido por muitos estudantes)

Basbaques, tolos, são! e infame charlatão!


Albert a Vivian: Vês que o doutor Pompeu contra ti se revela.


Vivian: Bem melhor pra Doutrina em que creio e tão bela;

É de toda a verdade a marcha natural,

Contra ela amotinar-se os pedantes do mal.


[Observação de ALLAN KARDEC.] Aí bem está a força do raciocínio de certos negadores das ideias novas: isto não é porque não pode ser. Perguntava-se a um sábio: Que diríeis se vísseis uma mesa erguer-se sem ponto de apoio? – Não acreditaria, respondeu ele, porque sei que isto não pode ser.



UM MONGE,

pregando à multidão:

Escutai o que diz o Apóstolo: Nos céus

Vossos olhos passeais, por que, ó Galileus?

Que ele, assim, de antemão anátema lançava

Contra ti, Galileu, e teu plano atacava.

Nós mesmos vemos, hoje, e muito claramente,

Quanto horror tem o céu a este ensino inciente,

E o Arno transbordado e o gelo nos vinhais,

Do divino furor são dolentes sinais.

Meus irmãos, desdenhai as mentiras grosseiras;

Para a Terra marchar só com pés, sem canseiras?

Pois se a Lua se move é que há um anjo que a guia;

Porque a cada planeta um condutor vigia;

Mas da Terra, seu anjo, onde ele está, nos montes?

Seria visto aí. – No centro? O mal tem fontes.


Lívia, mulher de Galileu, é o tipo de pessoa de mente estreita,

mais preocupada com a vida material do que com a glória e a verdade.


LÍVIA, a Galileu.

…Por que a mente esquentar,

Novos ensinos tens em vão a divulgar?

Tais novidades são resumíveis num termo,

Invenção do diabo e o mal expresso em ermo.

Pelo modo por que vos olha cada qual,

Se não te guardas bem, isto acabará mal.

Oh! por que não seguir os dignos professores

Que isso dizem citando os seus predecessores?

Eis pessoas em quem reina sempre o bom-senso;

Ensinam sem questão no que esperam consenso,

E sem se desgastar em público abatido

Se a Aristóteles ou Copérnico haver crido,

Sustentam com saber que a certa opinião

Aquela deve ser por qual se paga então,

Se a Aristóteles cabe o cofre-forte abrir,

Aristóteles faz Copérnico sair.

Não se fazem assim dissentir com ninguém;

Mas embolsam em paz os florins que lhes vêm;

Prosperam; moram bem; e sempre bem nutridos;

As filhas dotes têm com que encontram maridos;

Seu auditório é suave e nunca atormentado;

Retornam sempre ao lar para o caldo esperado;

Mas vós, vós fazeis raiva, e alguém vos aplaudia

E nesse meio tempo, eis que o jantar esfria.


Fragmentos do monólogo de Galileu no começo do segundo ato:


Não mais o tempo em que, no reino solidão,

A Terra no seu trono era imóvel então;

Não, o carro veloz, levando o astro do dia

Do nascer até se pôr não mais seu rumo guia;

Pois já do firmamento a curva cristalina

Que, como um teto azul, de lustres se ilumina;

Não é só para nós que Deus fez Universo;

Mas antes de nos ter, fomos no orgulho imersos!

Pois se abdicamos nós uma realeza falsa,

Porquanto da verdade a Ciência nos exalça;

Faz-se o corpo menor, mais o Espírito cresce;

Nossa nobreza crê ou nossa fé decresce.

Para o homem é mais belo, ínfima criatura,

Os intricados véus ele abrir da Natura,

E de ousar abraçar em sua concepção

A lei universal da própria criação,

Como nos dias ser, de vaidosa mentira

Rei de certa ilusão que num sonho se mira,

Centro inculto de um todo e do qual crê-se autor,

E só por ter pensado, hoje acha-se senhor.

O Sol, globo de fogo, gigantesca fornalha,

Um caos incandescente e de onde a vida espalha,

Tempestivo oceano onde oscilam perdidos

Rochas que se diluem e alguns metais fundidos,

Batendo e misturando, as vagas inflamadas

São negras explosões de fumo carregadas,

Uma ilhota vermelha exsurge do crisol,

Tolda pela manhã, hoje a face do Sol;

Almeja em torno a ti, ó incêndio fecundo,

A Terra, nossa mãe, um resfriar profundo,

E, resfriados como ela, e, que vivem como ela;

Marte sempre sangrento e Vênus de luz bela;

Junto ao teu esplendor, Mercúrio vive assim,

E desse reino teu Saturno no confim,

E por Deus, para mim, e com venturas suas

A Júpiter coroa um quádruplo de luas.

Mas, astro soberano e centro desses mundos

Para além desse império os limites profundos,

Os milhares de sóis numerosos e densos,

Que ninguém contar pode em seus grupos imensos.

Prolongam, como tu, suas vastas crateras,

Movendo, como tu, planetárias esferas,

Que lhes giram em torno, o seu curso a compor,

E colhem de seu rei claridade e calor.

Oh! sim, sois vós melhor que as lâmpadas noturnas,

Que dariam mais luz que as chamas taciturnas,

Inúmeros clarões, estrelas que empoeirais,

De vossa areia de ouro as sendas azulais,

Em casa vos palpita a vida universal,

Mais não vemos senão uma centelha astral.


E em toda a parte ação, o movimento e a alma!

Rolando, aqui e ali, em seus centros sem calma,

Globos de habitação, cujos homens pressinto,

Viverem meu viver, sentirem como eu sinto,

Uns rebaixados mais, enquanto outros talvez

Em mais altos degraus na ordem de sua vez!

Quão grande! Como é belo! Em que culto profundo!

O Espírito em torpor, se perde em abismo fundo!

Copiosíssimo autor, que tua onipotência

Aí se mostra em glória e em tal magnificência!

Que a vida a se expandir em ondas no infinito,

Vastamente proclama o teu nome bendito!

Perseguidores, ide! Anátemas lançai!

Tenho mais fé que vós, sabendo pois ficai.

Deus, que vós invocais, melhor que vós imerso

Nele vejo: só lama, e pra vós é o Universo;

Para mim sobretudo a obra divina brilha;

Vós a fazeis estreita, e eu lhe redobro a trilha;

Como se dava aos reis carro triunfador,

Universos coloco aos pés do Criador.


Fragmentos do diálogo entre o inquisidor e Galileu:


O INQUISIDOR.

Verdadeiro não é qual o das Escrituras;

Erro é tudo o que resta, e visões, e imposturas;

Quem no contrário crê em seu ensinamento

Não é esclarecido, é um cego desatento.


GALILEU.

Sim, a fé do cristão tem a norma que a guia;

Seu único poder reina na teologia,

E deve a adoração curvar nossos esp’ritos

Aos dogmas divinais em que aí são inscritos;

Mas da matéria o mundo escapa à força insana;

Deus o entrega inteiro à discussão humana;

Por de coisas tratar que caem sob os sentidos,

Sentidos e razão se mostram combalidos;

A autoridade cala; e nula a ordem se faz

Bem no centro da esfera os raios desiguais,

De heresia se anula acusar-se o compasso,

Nem aos corpos impor que não girem no espaço.

Enfim, o olho é juiz do Universo visível.

Se o imutável dogma é na Bíblia intangível,

A Ciência repele essa imobilidade,

E nos ferros morrendo alcança a liberdade.


O INQUISIDOR.

Ora, não vês então que teu novo sistema

Turvando a astronomia à fé deixa em dilema?

O erro material em certo ponto aceito,

Em todo o Testamento o exame faz suspeito;

Quem uma vez falhou não é mais infalível;

A dúvida se aceita, o exame é ato possível,

E logo há conclusão, se alguém ousa julgar,

Da física inexata o dogma se enganar.


GALILEU.

Eu a fé destruir, quando engrandeço o culto!

Em sua obra ver Deus é Lhe fazer insulto?

Ah! senti-la melhor, é melhor adorá-la,

E entanto, honrá-la mal é que é desfigurá-la.

Os céus conforme a Bíblia em que devemos crer,

Os céus de seu Autor glória nos fazem ver;

Bem melhor que ninguém Lhe escuto a narração,

E tenho repetido o que a dizer estão.


….De uma.verdade nova há quem lhe barre o fio?

Uma gota deter, será deter um rio?

Crede-me, respeitai estas aspirações,

Elas têm muito impulso e muitas expansões

Pra deixar-se reter nas grades da prisão;

Deixai-lhes livre o campo ou morte ao barreirão!

- Ah! Roma ao ver um dia os teus cultos proscritos,

Dizias nada opor senão do gládio aos ritos;

Só triunfaste, então, ao mudar de papel

E opondo ao próprio gládio a palavra em laurel.


Antônia, filha de Galileu, vendo proscrito o pai, lhe diz:


Tua filha, eis-me aqui. Sim, meu piedoso amor

Seguirá o proscrito, e dos céus vencedor.

Levando, vale a vale, o teu bastão assim,

Direi: “De Galileu o pão trazei-mo a mim,

Para aquele que um lar negaram-lhe os cristãos,

E altar teria tido entre os povos pagãos.”


Galileu sondou as profundezas dos céus e revelou a pluralidade dos mundos materiais. Como dissemos, foi toda uma revelação nas ideias; um novo campo de exploração foi aberto à Ciência. O Espiritismo vem operar outra não menor, revelando a existência do mundo espiritual que nos rodeia; graças a ele o homem conhece seu passado e seu verdadeiro destino. Galileu derrubou as barreiras que circunscreviam o Universo: o Espiritismo o povoa e enche o vazio dos espaços infinitos. Embora mais de dois séculos nos separem das descobertas de Galileu, muitos preconceitos ainda estão vivos; a nova doutrina emancipadora encontra os mesmos obstáculos; atacam-na com as mesmas armas, opõem-lhe os mesmos argumentos. Lendo o drama do Sr. Ponsard, poder-se-ia dar nomes próprios modernos a cada um de seus personagens. Entretanto, a má vontade e a perseguição não impediram que a doutrina de Galileu triunfasse, porque era a verdade. Dar-se-á o mesmo com o Espiritismo, porque é, também, uma verdade. Seus detratores serão olhados pela geração futura com os mesmos olhos com que olhamos os de Galileu.




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