Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

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Capítulo LXXXII

Dezembro - Um ressurrecto contrariado

Dezembro


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Extraído da viagem do Sr. Hugo à Zelândia

O episódio seguinte é tirado do relato publicado pelo jornal la Liberté, de uma viagem do Sr. Victor Hugo à Holanda, na província de Zelândia. O artigo se acha no número de 6 de novembro de 1867:

“Acabávamos de entrar na cidade. Eu tinha os olhos erguidos, e chamava a atenção de Stevens, meu vizinho de banco no carro, para o pitoresco recorte dentado de uma sucessão de telhados hispano-flamengos, quando, por sua vez, ele me tocou no ombro, e me fez sinal para olhar o que se passava no cais.

“Uma multidão barulhenta de homens, mulheres e crianças cercava Victor Hugo. Descendo da viatura, escoltado pelas autoridades da cidade, ele avançava, com um ar simplesmente emocionado, a cabeça descoberta, com dois ramalhetes nas mãos e duas meninas de vestido branco ao seu lado.

“Eram as duas meninas que acabavam de lhe oferecer as flores.

“Que dizeis, por esse tempo de visitas coroadas e de ovações artificiais ou oficiais, desta entrada singularmente triunfal de um homem universalmente popular que chega de improviso a uma região perdida, de cuja existência ele nem mesmo suspeitava, e que aí se encontra muito naturalmente em seus Estados? Quem teria podido fazer o poeta prever que essa cidadezinha desconhecida, cuja silhueta tinha considerado de longe e com curiosidade, era a sua boa cidade de Ziéricsée?

“Durante o jantar, o Sr. Van Maenen disse a Victor Hugo:

“─ Sabeis quem são as duas lindas meninas que vos ofereceram flores? “─ Não.

“─ São as filhas de um fantasma.

“Isto exigia uma explicação, e o capitão nos contou a seguinte aventura estranha:

“Isto fora há cerca de um mês. Uma tarde, ao crepúsculo, uma viatura onde estavam um homem e um menino entrava na cidade. É preciso dizer que pouco antes esse homem havia perdido a esposa e um dos filhos, com o que ficara muito triste. Embora ainda tivesse duas meninas e o menino que estava com ele nesse momento, ele não se havia consolado e vivia melancólico.

“Naquela tarde sua viatura seguia por um desses caminhos aterrados e abruptos que são, à direita e à esquerda, ladeadas por um fosso de água estagnada e às vezes profunda. De súbito o cavalo, sem dúvida mal dirigido através da bruma da tarde, bruscamente perdeu o equilíbrio e rolou ladeira abaixo para o fosso, arrastando consigo o carro, o homem e a criança.

“Houve nesse grupo de seres precipitados um momento de angústia atroz, de que ninguém foi testemunha, e um esforço obscuro e desesperado para a salvação. Mas o mergulho se fez com a confusão da queda, e tudo desapareceu na cloaca, que se fechou com a espessa lentidão da lama.

“Só o menino, que como por milagre ficou fora do fosso, gritava e chamava lamentoso, agitando os bracinhos. Dois camponeses que atravessavam um campo de garança, a alguma distância, ouviram os gritos e acorreram. Retiraram o menino.

“O menino gritava: ‘Meu papai! meu papai! eu quero o meu papai!’ “─ E onde está o teu papai?

“─ Ali, dizia o menino, mostrando o fosso.

“Os dois camponeses compreenderam e puseram-se ao trabalho. Ao cabo de um quarto de hora retiraram a viatura quebrada; depois de meia hora tiraram o cavalo morto. O pequeno continuava gritando e pedia seu pai.

“Enfim, após novos esforços, do mesmo buraco do fosso que o carro e o cavalo, pescaram e trouxeram para fora da água algo inerte e fétido que estava inteiramente negro e coberto de lodo: era o cadáver do pai.

“Tudo isto tinha levado cerca de uma hora. O desespero do menino redobrava; ele não queria que seu pai estivesse morto. Entretanto os camponeses o julgavam bem morto. Mas como o menino lhes suplicasse e se agarrasse a eles e eles fossem pessoas dispostas, tentaram, para acalmar o menino, o que se faz sempre em tais casos na região, e se puseram a rolar o afogado no campo de garança.

“Rolaram-no assim um bom quarto de hora. Nada mudou. Rolaram-no ainda mais. A mesma imobilidade. O pequeno acompanhava, chorando. Recomeçaram uma terceira vez, e iam renunciar, enfim, quando lhes pareceu que o cadáver movia o braço. Continuaram. O outro braço se agitou. Eles se obstinaram. O corpo inteiro deu vagos sinais de vida e o morto começou a ressuscitar lentamente.

“Isto é extraordinário, não é? Pois bem! Eis o que é ainda mais inusitado. O homem suspirou lentamente, voltando à vida e gritou com desespero: “Ah! Meu Deus! Que foi que fizestes? Eu estava tão bem onde estava! Estava com minha mulher, com meu filho. Eles tinham vindo a mim e eu tinha ido a eles. Eu os via, estava no Céu, estava na luz. Ah! Meu Deus! Que foi que fizestes? Não estou mais morto!”

“O homem que assim falava acabara de passar uma hora no lodo. Tinha o braço quebrado e contusões graves.

“Levaram-no para a cidade, e apenas acaba de se curar, acrescentou o Sr. Van Maenen, acabando de nos contar esta história. É o Sr. D..., uma das mais altas inteligências, não só da Zelândia, mas da Holanda. É um dos nossos melhores advogados. Aqui todo mundo o estima e o honra. Quando ele soube, Sr. Victor Hugo, que íeis passar pela cidade, quis a qualquer custo sair da cama, que ainda não havia deixado há um mês, e hoje fez a sua primeira saída para apresentar-se diante de vós e vos apresentar suas duas filhinhas, às quais tinha dado flores para vós.

“Houve um grito unânime em toda a mesa.

“Estas são coisas que só acontecem na Zelândia! Os viajantes aqui não vêm, mas os habitantes revivem.

“Deveriam tê-lo convidado para o jantar, aventurou a parte feminina da mesa.

“─ Convidá-lo! exclamei. Mas já éramos doze! Este não seria bem o momento de convidar um fantasma. Senhoras, gostaríeis de ter um morto como décimo terceiro?

“─ Há dois enigmas nesta história, disse Victor Hugo, que tinha ficado silencioso: o enigma do corpo e o da alma. Não me encarrego de explicar o primeiro, nem de dizer como pode um homem ficar submerso durante uma hora inteira numa cloaca sem que se siga a morte. A asfixia, cremos, ainda é um fenômeno mal conhecido. Mas o que compreendo admiravelmente é a lamentação dessa alma. Pois quê! Ela já tinha saído da vida terrena, desta sombra, deste corpo sujo, destes lábios negros, deste fosso negro! Ela tinha começado a evasão encantadora. Através da lama, ela havia chegado à superfície da cloaca e ali, ligada ainda apenas por uma última pena de sua asa a este horrível último suspiro estrangulado no pântano, ela já respirava silenciosamente a fresca inefável de fora da vida. Ela já podia voar para os seus amores perdidos e atingir a mulher e erguer-se até a criança. De repente, a semi fugida se arrepia; ela sente que o laço terrestre, em vez de se romper inteiramente, se reata; que em vez de subir na luz, ela desce bruscamente na noite, e que ela, a alma, teve que entrar violentamente no cadáver. Então ela solta um grito terrível.

“O que disto resulta para mim, acrescentou Victor Hugo, é que a alma pode ficar um certo tempo acima do corpo, em estado flutuante, já não sendo mais prisioneira e ainda não estando liberta. Esse estado flutuante é a agonia, é a letargia. O estertor é a alma que se lança fora da boca aberta e que aí recai por instantes, e que se sacode, arquejante, até que se quebre o fio vaporoso do último sopro. Parece-me que a vejo. Ela luta, escapa-se um pouco dos lábios, neles entra novamente, foge de novo, depois dá um grande golpe de asa, e ei-la que voa de um jacto e desaparece no azul imenso. Está livre. Mas algumas vezes também o agonizante volta à vida: então a alma desesperada volta ao agonizante. O sonho por vezes nos dá a sensação dessas estranhas idas e vindas da prisioneira. Os sonhos são alguns passos quotidianos da alma fora de nós. Até que tenha completado seu tempo no corpo, a alma faz, cada noite, no nosso sono, o giro no pátio do sonho.

“PAUL DE LA MILTIÈRE.”


O fato em si mesmo é eminentemente espírita, como se vê. Mas se existe algo de mais espírita ainda, é a explicação dada pelo Sr. Victor Hugo. Dir-se-ia tirada textualmente da Doutrina. Aliás, não é a primeira vez que ele se exprime neste sentido. Lembramo-nos do encantador discurso que ele pronunciou, há cerca de três anos, no túmulo da jovem Emily Putron (Revista Espírita de fevereiro de 1865). Certamente o mais convicto espírita não falaria de outro modo. A tais pensamentos não falta absolutamente senão a palavra, mas que importa a palavra se as ideias se impõem! Por seu nome autorizado, o Sr. Victor Hugo é um de seus vulgarizadores. Entretanto, aqueles que os aclamam ridicularizam o Espiritismo, nova prova de que não sabem em que este consiste. Se eles soubessem, não tratariam a mesma ideia de loucura em uns e de verdade sublime em outros.


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