Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1869

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Capítulo I
Ilustração tribal

Janeiro - Aos nossos correspondentes

Janeiro


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Decisão do Círculo da Moral Espírita de Toulouse, a propósito do projeto de constituição.

Por ocasião do projeto de constituição que publicamos no último número da Revista, recebemos numerosas cartas de felicitações e testemunhos de simpatia que nos tocaram profundamente. Na impossibilidade de responder a cada um em particular, rogamos aos nossos honrados correspondentes a bondade de aceitar coletivamente os agradecimentos que lhes dirigimos através da Revista.

Sentimo-nos feliz, sobretudo por ver que o objetivo e o alcance desse projeto foram compreendidos e que nossas intenções não foram desprezadas. Todos viram nele a realização daquilo que desejávamos há muito tempo: uma garantia de estabilidade para o futuro, assim como as primeiras balizas de uma união entre os espíritas, união que lhes faltou até hoje, apoiada numa organização que, prevendo as dificuldades eventuais, assegure a unidade dos princípios sem imobilizar a Doutrina.

De todas as adesões que recebemos, citaremos apenas uma, porque é a expressão de um pensamento coletivo, e porque a fonte de onde ela emana lhe dá, de certo modo, um caráter oficial. É a decisão do conselho do Círculo da Moral Espírita de Toulouse, regularmente e legalmente constituído. Publicamo-la como testemunho de nossa gratidão aos membros do Círculo, movido nesta circunstância por um impulso espontâneo de devotamento à causa e, além disso, para responder aos votos que a respeito nos expressaram.

Resumo da ata do conselho administrativo do Círculo da Moral Espírita de Toulouse

A respeito da exposição feita por seu presidente, da constituição transitória dada ao Espiritismo por seu fundador e definida pelos preliminares publicados no número da Revista Espírita de 1º de dezembro corrente, o conselho vota, por unanimidade, agradecimentos ao Sr. Allan Kardec, como expressão de seu profundo reconhecimento por essa nova prova de devotamento à Doutrina da qual ele é fundador, e faz votos pela realização desse sublime projeto, que considera como o digno coroamento da obra do mestre, do mesmo modo que vê na instituição da comissão central a cúpula do edifício chamada a dirigir permanentemente os benefícios do Espiritismo para a Humanidade inteira.

Considerando que é dever de todo adepto sincero concorrer, na medida de seus recursos, para a criação do capital necessário a essa constituição, e desejando facilitar a cada membro do Círculo da Moral Espírita o meio de contribuir para isso, decide:

Que a subscrição ficará aberta no secretariado do Círculo até 15 de março próximo, e que a soma apurada nesse período será enviada ao Sr. Allan Kardec para ser depositada na Caixa Geral do Espiritismo.

Conferida e certificada conforme a minuta, por nós, secretário abaixo assinado,

CHÊNE, secretário adjunto.


Dezembro

Dezembro


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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Agosto I

Agosto


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Será a beleza coisa convencional e relativa a cada tipo? O que, para certos povos, constitui a beleza, não será, para outros, horrenda fealdade? Os negros se consideram mais belos que os brancos e vice-versa. Nesse conflito de gostos, haverá uma beleza absoluta? Em que consiste ela? Somos, realmente, mais belos do que os hotentotes e os cafres? Por quê?

Esta questão que, à primeira vista, parece estranha ao objeto dos nossos estudos, a eles, no entanto, se prende de modo direto e entende com o futuro mesmo da Humanidade. Ela nos foi sugerida, assim como a sua solução, pela seguinte passagem de um livro muito interessante e muito instrutivo, intitulado: As Revoluções Inevitáveis no Globo e na Humanidade, de Charles Richard.

O autor combate a opinião dos que sustentam a degenerescência física do homem, desde os tempos primitivos; refuta vitoriosamente a crença na existência de uma primitiva raça de gigantes e empreende provar que, do ponto de vista físico e do talhe, os homens de hoje valem os antigos, se é que não os ultrapassam.


Tratando da beleza das formas, exprime-se ele assim, nas páginas 41 e seguintes:

“Pelo que toca à beleza do rosto, à graça da fisionomia, ao conjunto que constitui a estética do corpo, ainda é mais fácil de comprovar-se a melhoria operada.

“Basta, para isso, que se lance um olhar sobre os tipos que as medalhas e as estátuas antigas nos transmitiram intactas através dos séculos.

“A iconografia de Visconti e o museu do Conde de Clarol são, entre muitas outras, duas fontes donde com facilidade se podem tirar variados elementos para este interessante estudo.

“O que mais solicita a atenção nesse conjunto de figuras é a rudeza dos traços, a animalidade da expressão, a crueza do olhar. O observador sente, com involuntário frêmito, que tem diante de si gente que o cortaria em pedaços, para dá-los de comer às suas moreias, como o fazia Polion, rico apreciador de boas iguarias, cidadão de Roma e familiar de Augusto.

“O primeiro Brutus (Lucius Junius), o que mandou cortar a cabeça a seus filhos e assistiu a sangue-frio ao suplício de ambos, assemelha-se a uma fera. Seu perfil sinistro tem da águia e do mocho o que esses dois carniceiros do ar apresentam de mais feroz. Vendo-o, ninguém pode duvidar de que haja merecido a ignominiosa honra que a História lhe conferiu. Assim como matou os dois filhos, também teria estrangulado a própria mãe, pelo mesmo motivo.

“O segundo Brutus (Marcus), que apunhalou César, seu pai adotivo, precisamente na hora em que este mais contava com o seu reconhecimento e o seu amor, lembra, pelos traços, um asno fanático; não mostra, sequer, a beleza sinistra que o artista descobre muitas vezes, essa energia extremada que impele ao crime.

“Cícero, o orador brilhante, escritor espiritual profundo, que deixou tão grande recordação da sua passagem por este mundo, tem um rosto acachapado e vulgar, que certamente tornava muito menos agradável vê-lo, do que ouvi-lo.

“Júlio César, o grande, o incomparável vencedor, o herói dos massacres, que deu entrada no reino das sombras com um cortejo de dois milhões de almas por ele previamente despachadas para lá, era tão feio como o seu predecessor, mas de outro gênero. Seu rosto magro e ossudo, posto sobre um pescoço comprido e enfeado por um “gogó” saliente, parecia-se mais com um grande Gilles do que com um grande guerreiro.

“Galba, Vespasiano, Nerva, Caracala, Alexandre Severo, Balbino, não eram apenas feios, mas horrendos. É com dificuldade que, nesse museu dos antigos tipos da nossa espécie, o observador logra descobrir, aqui ou ali, algumas figuras que possam merecer um olhar de simpatia.

“As de Cipião o Africano, de Pompeu, de Cômodo, de Heliogábulo, de Antinoo o pequeno de Adriano, são desse reduzido número. Sem serem belos, no sentido moderno da palavra, essas figuras são, entretanto, regulares e de agradável aspecto.

“As mulheres não são melhor tratadas do que os homens e dão ensejo às mesmas notas Lívia, filha de Augusto, tem o perfil pontudo de uma fuinha; Agripina faz medo e Messalina, como que para desconcertar a Cabanis e Lavater, parece uma gordanchuda serviçal, mais amante de sopas suculentas, do que de outra coisa.

“Os gregos, é preciso dizê-lo, são, em geral, menos mal talhados que os romanos. As figuras de Temístocles e de Milcíades, entre outros, podem comparar-se aos mais belos tipos modernos. Mas Alcebíades, o avô longínquo dos nossos Richilieu e dos nossos Lauzun, cujas façanhas galantes, por si sós, enchem a crônica de Atenas, tinha, como Messalina, muito pouco do físico que corresponderia às suas atividades. Ao ver-lhe os traços solenes e a fronte grave, quem quer que seja o tomaria antes por um jurisconsulto agarrado a um texto de lei, do que pelo audacioso conquistador, que foi, de mulheres, que se fazia exilar em Esparta, unicamente para enganar o pobre rei Agis e, depois, vangloriar-se de ter sido amante de uma rainha.

“Sem embargo da pequena vantagem que, quanto a esse ponto, se possa conceder aos gregos sobre os romanos, quem se der ao trabalho de comparar esses velhos tipos com os do nosso tempo, reconhecerá sem esforço que nesse sentido, como em todos os outros, houve progresso. Apenas, convém não esquecer, nessa comparação, que aqui se trata de classes privilegiadas, sempre mais belas do que as outras e que, por conseguinte, os tipos modernos que se hajam de contrapor aos antigos deverão ser escolhidos nos salões e não nas pocilgas. É que a pobreza, ah! em todos os tempos e sob todos os aspectos, jamais foi bela e não o é, precisamente, para nos envergonhar e forçar-nos a um dia nos libertarmos dela.

“Não quero, pois, dizer, longe disso, que a fealdade haja desaparecido inteiramente das nossas frontes e que a marca divina se acha afinal posta em todas as máscaras que velam uma alma. Longe de mim avançar uma afirmação que muito facilmente poderia ser contestada por toda gente. A minha pretensão se limita a verificar que, num período de dois mil anos, coisa tão pouca para uma humanidade que tanto tem de viver, a fisionomia da espécie melhorou de maneira já sensível.

“Creio, além disso, que as mais belas figuras da antiguidade são inferiores às que podemos diariamente admirar em nossas reuniões públicas, em nossas festas e até no trânsito das ruas. Se não fosse o receio de ofender certas modéstias e também o de excitar certos ciúmes, confirmaria a evidência do fato com algumas centenas de exemplos conhecidos de todos, no mundo contemporâneo.

“Os oradores do passado enchem constantemente a boca com a famosa Vênus de Médicis, que lhes parece o ideal da beleza feminina, sem se aperceberem de que essa mesma Vênus passeia todos os domingos pelas avenidas de Arles, em mais de cinquenta exemplares, e poucas serão as nossas cidades, sobretudo no Sul, que não possuam algumas…

“…Em tudo o que acabamos de dizer, limitamo-nos a comparar o nosso tipo atual com o dos povos que nos precederam de apenas alguns milhares de anos. Se, porém, remontarmos mais longe através das idades, penetrando nas camadas terrestres onde dormem os despojos das primeiras raças que habitaram o nosso globo, a vantagem a nosso favor se tornará de tal modo sensível que qualquer negação a esse propósito se desvanecerá por si mesma.

“Sob aquela influência teológica que deteve Copérnico e Tycho Brahe, que perseguiu Galileu e que, nestes tempos mais próximos, obscureceu por um instante o gênio do próprio Cuvier, a Ciência hesitava em sondar os mistérios das épocas antediluvianas. A narrativa bíblica, admitida ao pé da letra, no mais estreito sentido, parecia haver dito a última palavra acerca da nossa origem e dos séculos que nos separam dela. Mas, a verdade, impiedosa nos seus acréscimos, acabou rompendo a veste de ferro em que a queriam aprisionar para sempre e pondo a nu formas até então ocultas.

“O homem que vivia, antes do dilúvio, em companhia dos mastodontes, do urso das cavernas e de outros grandes mamíferos hoje desaparecidos, o homem fóssil, numa palavra, por tão longo tempo negado, foi encontrado afinal, ficando fora de dúvida a sua existência. Os recentes trabalhos dos geólogos, particularmente os de Boucher de Perthes, de Filippi e de Lyell, permitem se apreciem os caracteres físicos desse venerável avô do gênero humano. Ora, a despeito dos contos imaginados pelos poetas sobre a beleza originária; malgrado o respeito que lhe é devido, como chefe antigo da nossa raça, a Ciência é obrigada a atestar que ele era de prodigiosa fealdade.

“Seu ângulo facial não passava de 70°; suas mandíbulas, de considerável volume, eram armadas de dentes longos e salientes; tinha fugidia a fronte e as têmporas achatadas, o nariz esborrachado, largas as narinas. Em resumo, esse venerável pai devia assemelhar-se bem mais a um orangotango, do que aos seus afastados filhos de hoje; a tal ponto que, se não lhe houvessem achado ao lado as achas de sílex que fabricara e, em alguns casos, animais que ainda apresentavam traços das feridas causadas por essas armas informes, fora de duvidar-se do papel que ele desempenhava na nossa filiação terrestre. Não somente sabia fabricar achas de sílex, como também clavas e pontas de dardos, da mesma matéria.

“A galantaria antidiluviana chegava mesmo a confeccionar braceletes e colares de pedrinhas arredondadas para adorno, naqueles tempos longínquos, dos braços e pescoços do sexo encantador, que depois se tornou muito mais exigente, como todos podem testemunhar.

“Não sei o que a respeito pensarão as elegantes dos nossos dias, cujas espáduas cintilam de diamantes; quanto a mim, confesso-o, não me posso forrar a uma emoção profunda, ao pensar nesse primeiro esforço que o homem, mal diferenciado do bruto, fez para agradar à sua companheira, pobre e nua como ele, no seio de uma natureza inóspita, sobre a qual a sua raça há de reinar um dia. Oh! distanciados avós! se já sabíeis amar, com as vossas faces rudimentares, como poderíamos nós duvidar da vossa paternidade, ante esse sinal divino da nossa espécie?

“É, pois, manifesto que aqueles humanos informes são nossos pais, uma vez que nos deixaram traços da sua inteligência e do seu amor, atributos essenciais que nos separam da besta. Podemos, então, examinando-os atentamente, despojados das aluviões que os cobrem, medir, como a compasso, o progresso físico que a nossa espécie realizou, desde o seu aparecimento na Terra. Ora, esse progresso, que, faz pouco, podia ser contestado pelo espírito de sistema e pelos prejuízos de educação, assume tal evidência que não há mais como deixar de o reconhecer e proclamar.

“Alguns milhares de anos podiam permitir dúvidas, algumas centenas de séculos as dissipam irrevogavelmente…

“…Quão jovens e recentes somos em todas as coisas! Ainda ignoramos o nosso lugar e o nosso caminho na imensidade do Universo e ousamos negar progressos que, por falta de tempo, ainda não puderam ser reconhecidos. Crianças que somos, tenhamos um pouco de paciência e os séculos, aproximando-nos da meta, nos revelarão esplendores que, no seu afastamento, escapam aos nossos olhos apenas entreabertos.

“Mas, desde já, proclamemos em altas vozes, pois que a Ciência no-lo permite, o fato capital e consolador do progresso lento, mas seguro, do nosso tipo físico, rumo a esse ideal que os grandes artistas entreviram, graças às inspirações que o céu lhes envia, revelando-lhes seus segredos. O ideal não é produto ilusório da imaginação, um sonho fugitivo destinado a dar, de tempos a tempos, compensação às nossas misérias. É um fim assinado por Deus aos nossos aperfeiçoamentos, fim infinito, porque só o infinito, em todos os casos, pode satisfazer ao nosso espírito e oferecer-lhe uma carreira digna dele.”


Destas judiciosas observações, resulta que a forma dos corpos se modificou em sentido determinado e segundo uma lei, à medida que o ser moral se desenvolveu; que a forma exterior está em relação constante com o instinto e os apetites do ser moral; que, quanto mais seus instintos se aproximam da animalidade, tanto mais a forma igualmente dela se aproxima; enfim, que, à medida que os instintos materiais se depuram e dão lugar a sentimentos morais, o envoltório material, que já não se destina à satisfação de necessidades grosseiras, toma formas cada vez menos pesadas, mais delicadas, de harmonia com a elevação e a delicadeza das ideias. A perfeição da forma é, assim, consequência da perfeição do Espírito: donde se pode concluir que o ideal da forma há de ser a que revestem os Espíritos em estado de pureza, a com que sonham os poetas e os verdadeiros artistas, porque penetram, pelo pensamento, nos mundos superiores.

Diz-se, de há muito, que o semblante é o espelho da alma. Esta verdade, que se tornou axioma, explica o fato vulgar de desaparecerem certas fealdades sob o reflexo das qualidades morais do Espírito e o de, muito amiúde, se preferir uma pessoa feia, dotada de eminentes qualidades, a outra que apenas possui a beleza plástica. É que semelhante fealdade consiste unicamente em irregularidades de forma, mas sem excluir a finura dos traços, necessária à expressão dos sentimentos delicados.

Do que precede se pode concluir que a beleza real consiste na forma que mais afastada se apresenta da animalidade e que melhor reflete a superioridade intelectual e moral do Espírito, que é o ser principal. Influindo o moral, como influi, sobre o físico, que ele apropria às suas necessidades físicas e morais, segue-se: 1º que o tipo da beleza consiste na forma mais própria à expressão das mais altas qualidades morais e intelectuais; 2º que, à medida que o homem se elevar moralmente, seu envoltório se irá avizinhando do ideal da beleza, que é a beleza angélica.

O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino.

Daí o podermos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas, também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hotentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, elas não os tomarão pelos de alguma espécie de animais.

Lido que foi na Sociedade de Paris, este artigo se tornou objeto de grande número de comunicações, apresentando todas as mesmas conclusões. Transcreveremos apenas as duas seguintes, por serem as mais desenvolvidas:


I.


(Paris, 4 de fevereiro de 1869. – Médium: Sra. Malet.)

Ponderastes com acerto que a fonte primária de toda bondade e de toda inteligência é também a fonte de toda beleza. – O amor gera a beleza de todas as coisas, sendo, ele próprio, a perfeição. – O Espírito tem por dever adquirir essa perfeição, que é a sua essência e o seu destino. Ele tem que se aproximar, por seu trabalho, da inteligência soberana e da bondade infinita; tem, pois, também que revestir a forma cada vez mais perfeita, que caracteriza os seres perfeitos.

Se, nas vossas sociedades infelizes, no vosso globo ainda mal equilibrado, a espécie humana está tão longe dessa beleza física, é porque a beleza moral ainda está em começo de desenvolvimento. A conexão entre essas duas belezas é fato certo, lógico e do qual já neste mundo a alma tem a intuição. Com efeito, sabeis todos quão penoso é o aspecto de uma encantadora fisionomia, cujo encanto, porém, o caráter desmente. Se ouvis falar de uma pessoa de mérito comprovado, logo lhe atribuís os mais simpáticos traços e ficais dolorosamente impressionados, quando verificais que a realidade desmente as vossas previsões.

Que concluir daí, senão que, como todas as coisas que o futuro guarda de reserva, a alma tem a presciência da beleza, à medida que a Humanidade progride e se aproxima do seu tipo divino. Não busqueis tirar, da aparente decadência em que se acha a raça mais adiantada deste globo, argumentos contrários a essa afirmação. Sim, é verdade que a espécie parece degenerar, abastardar-se; sobre vós se abatem as enfermidades antes da velhice; mesmo a infância sofre as moléstias que habitualmente só se manifestam noutra idade da vida. É isso, no entanto, simples transição. A vossa época é má; ela acaba e gera: acaba um período doloroso e gera uma época de regeneração física, de adiantamento moral, de progresso intelectual. A nova raça, de que já falei, terá mais faculdades, mais recursos para os serviços do espírito; será maior, mais forte, mais bela. Desde o princípio, por-se-á de harmonia com as riquezas da Criação que a vossa raça, descuidosa e fatigada, desdenha ou ignora. Ter-lhes-eis feito grandes coisas, das quais ela aproveitará, avançando pela estrada das descobertas e dos aperfeiçoamentos, com um ardor febril cujo poder desconheceis.

Mais adiantados também em bondade, os vossos descendentes farão desta infeliz terra o que não haveis sabido fazer: um mundo ditoso, onde o pobre não será repelido, nem desprezado, mas socorrido por vastas e liberais instituições. Já desponta a aurora dessas ideias; chega-nos, por momentos, a claridade delas.

Amigos, eis afinal o dia em que a luz brilhará na Terra obscura e miserável, em que a raça será boa e bela, de acordo com o grau de adiantamento que haja alcançado, em que o sinal posto na fronte do homem já não será o da reprovação, mas um sinal de alegria e de esperança. Então, os Espíritos adiantados virão, em multidões, tomar lugar entre os colonos deste globo; estarão em maioria e tudo lhes cederá ao passo. Far-se-á a renovação e a face do globo será mudada, porquanto essa raça será grande e poderosa e o momento em que ela vier assinalará o começo dos tempos venturosos.


Pamphile.


II.


(Paris, 4 de fevereiro de 1869.)

A beleza, do ponto de vista puramente humano, é uma questão muito discutível e muito discutida. Para a apreciarmos bem, precisamos estudá-la como amador desinteressado. Aquele que estiver sob o encantamento não pode ter voz no capítulo. Também entra em linha de conta o gosto de cada um, nas apreciações que se fazem.

Belo, realmente belo só é o que o é sempre e para todos; e essa beleza eterna, infinita, é a manifestação divina em seus aspectos incessantemente variados; é Deus em suas obras e nas suas leis! Eis aí a única beleza absoluta. É a harmonia das harmonias e tem direito ao título de absoluta, porque nada de mais belo se pode conceber.

Quanto ao que se convencionou chamar belo e que é verdadeiramente digno desse título, não deve ser considerado senão como coisa essencialmente relativa, porquanto sempre se pode conceber alguma coisa mais bela, mais perfeita. Somente uma beleza existe e uma única perfeição: Deus. Fora dele, tudo o que adornarmos com esses atributos não passa de pálido reflexo do belo único, de um aspecto harmonioso das mil e uma harmonias da Criação.

Há tantas harmonias, quantos objetos criados, quantas belezas típicas, por conseguinte, determinando o ponto culminante da perfeição que qualquer das subdivisões do elemento animado pode alcançar. – A pedra é bela e bela de modos diversos. – Cada espécie mineral tem suas harmonias e o elemento que reúne todas as harmonias da espécie possui a maior soma de beleza que a espécie possa alcançar.

A flor tem suas harmonias; também ela pode possuí-las todas ou insuladamente e ser diferentemente bela, mas somente será bela quando as harmonias que concorrem para a sua criação se acharem harmonicamente fusionadas. – Dois tipos de beleza podem produzir, por fusão, um ser híbrido, informe, de aspecto repulsivo. – Há então cacofonia! Todas as vibrações, insuladamente, eram harmônicas, mas a diferença de tonalidade entre elas produziu um desacordo, ao encontrarem-se as ondas vibrantes; daí o monstro!

Descendo a escala criada, cada tipo animal dá lugar às mesmas observações e a ferocidade, a manha, até a inveja poderão dar origem a belezas especiais, se estiver sem mistura o princípio que determina a forma. A harmonia, mesmo no mal, produz o belo. Há o belo satânico e o belo angélico; a beleza enérgica e a beleza resignada.

Cada sentimento, cada feixe de sentimentos, contanto que seja harmônico, produz um particular tipo de beleza, cujos aspectos humanos são todos, não degenerescências, mas esboços. É, pois, certo dizermos, não que somos mais belos, porém que nos aproximamos cada vez mais da beleza real, à medida que nos elevamos para a perfeição.

Todos os tipos se unem harmonicamente no perfeito. Daí o ser este o belo absoluto. – Nós que progredimos possuímos apenas uma beleza relativa, debilitada e combatida pelos elementos desarmônicos da nossa natureza.


Lavater.


Allan Kardec.








Dezembro

Dezembro


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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Outubro

Outubro


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1. Questão. – O Espiritismo explica perfeitamente a causa dos sofrimentos individuais, como consequências imediatas das faltas cometidas na existência precedente, ou como expiação do passado; mas, uma vez que cada um só é responsável pelas suas próprias faltas, não se explicam satisfatoriamente as desgraças coletivas que atingem as aglomerações de indivíduos, às vezes, uma família inteira, toda uma cidade, toda uma nação, toda uma raça, e que se abatem tanto sobre os bons, como sobre os maus, assim sobre os inocentes, como sobre os culpados.


Resposta. – Todas as leis que regem o Universo, sejam físicas ou morais, materiais ou intelectuais, foram descobertas, estudadas, compreendidas, partindo-se do estudo da individualidade e do da família para o de todo o conjunto, generalizando-as gradualmente e comprovando-se-lhes a universalidade dos resultados.

Outro tanto se verifica hoje com relação às leis que o estudo do Espiritismo dá a conhecer. Podem aplicar-se, sem medo de errar, as leis que regem o indivíduo à família, à nação, às raças, ao conjunto dos habitantes dos mundos, os quais formam individualidades coletivas. Há as faltas do indivíduo, as da família, as da nação; e cada uma, qualquer que seja o seu caráter, se expia em virtude da mesma lei. O algoz, relativamente à sua vítima, quer indo a encontrar-se em sua presença no espaço, quer vivendo em contacto com ela numa ou em muitas existências sucessivas, até à reparação do mal praticado. O mesmo sucede quando se trata de crimes cometidos solidariamente por um certo número de pessoas. As expiações também são solidárias, o que não suprime a expiação simultânea das faltas individuais.

Três caracteres há em todo homem: o do indivíduo, do ser em si mesmo; o do membro da família e, finalmente, o de cidadão. Sob cada uma dessas três faces pode ele ser criminoso e virtuoso, isto é, pode ser virtuoso como pai de família, ao mesmo tempo que criminoso como cidadão e reciprocamente. Daí as situações especiais que para si cria nas suas sucessivas existências.

Salvo alguma exceção, pode-se admitir como regra geral que todos aqueles que numa existência vêm a estar reunidos por uma tarefa comum já viveram juntos para trabalhar com o mesmo objetivo e ainda reunidos se acharão no futuro, até que hajam atingido a meta, isto é, expiado o passado, ou desempenhado a missão que aceitaram.

Graças ao Espiritismo, compreendeis agora a justiça das provações que não decorrem dos atos da vida presente, porque reconheceis que elas são o resgate das dívidas do passado. Por que não haveria de ser assim com relação às provas coletivas? Dizeis que os infortúnios de ordem geral alcançam assim o inocente, como o culpado; mas, não sabeis que o inocente de hoje pode ser o culpado de ontem? Quer ele seja atingido individualmente, quer coletivamente, é que o mereceu. Depois, como já o dissemos, há as faltas do indivíduo e as do cidadão; a expiação de umas não isenta da expiação das outras, pois que toda dívida tem que ser paga até à última moeda. As virtudes da vida privada diferem das da vida pública. Um, que é excelente cidadão, pode ser péssimo pai de família; outro, que é bom pai de família, probo e honesto em seus negócios, pode ser mau cidadão, ter soprado o fogo da discórdia, oprimido o fraco, manchado as mãos em crimes de lesa-sociedade. Essas faltas coletivas é que são expiadas coletivamente pelos indivíduos que para elas concorreram, os quais se encontram de novo reunidos, para sofrerem juntos a pena de talião, ou para terem ensejo de reparar o mal que praticaram, demonstrando devotamento à causa pública, socorrendo e assistindo aqueles a quem outrora maltrataram. Assim, o que é incompreensível, inconciliável com a justiça de Deus, se torna claro e lógico mediante o conhecimento dessa lei.

A solidariedade, portanto, que é o verdadeiro laço social, não o é apenas para o presente; estende-se ao passado e ao futuro, pois que as mesmas individualidades se reuniram, reúnem e reunirão, para subir juntas a escala do progresso, auxiliando-se mutuamente. Eis aí o que o Espiritismo faz compreensível, por meio da equitativa lei da reencarnação e da continuidade das relações entre os mesmos seres.


Clélie Duplantier.


2. Observação. – Conquanto se subordine aos conhecidos princípios de responsabilidade pelo passado e da continuidade das relações entre os Espíritos, esta comunicação encerra uma ideia de certo modo nova e de grande importância. A distinção que estabelece entre a responsabilidade decorrente das faltas individuais ou coletivas, das da vida privada e da vida pública, explica certos fatos ainda mal conhecidos e mostra de maneira mais precisa a solidariedade existente entre os seres e entre as gerações.

Assim, muitas vezes um indivíduo renasce na mesma família, ou, pelo menos, os membros de uma família renascem juntos para constituir uma família nova noutra posição social, a fim de apertarem os laços de afeição entre si, ou reparar agravos recíprocos. Por considerações de ordem mais geral, a criatura renasce no mesmo meio, na mesma nação, na mesma raça, quer por simpatia, quer para continuar, com os elementos já elaborados, estudos começados, para se aperfeiçoar, prosseguir trabalhos encetados e que a brevidade da vida não lhe permitiu acabar. A reencarnação no mesmo meio é a causa determinante do caráter distintivo dos povos e das raças. Embora se melhorando, os indivíduos conservam o matiz primário, até que o progresso os haja completamente transformado.

Os franceses de hoje são, pois, os do século passado, os da Idade Média, os dos tempos druídicos; são os exatores e as vítimas do feudalismo; os que submeteram outros povos e os que trabalharam pela emancipação deles, que se encontram na França transformada, onde uns expiam, na humilhação, o seu orgulho de raça e onde outros gozam o fruto de seus labores. Quando se consideram todos os crimes desses tempos em que a vida dos homens e a honra das famílias em nenhuma conta eram tidas, em que o fanatismo acendia fogueiras em honra da divindade; quando se pensa em todos os abusos de poder, em todas as injustiças que se cometiam com desprezo dos mais sagrados direitos, quem pode estar certo de não haver participado mais ou menos de tudo isso e admirar-se de assistir a grandes e terríveis expiações coletivas?

Mas, dessas convulsões sociais, uma melhora sempre resulta; os Espíritos se esclarecem pela experiência; o infortúnio é estimulante que os impele a procurar um remédio para o mal; na erraticidade, refletem, tomam novas resoluções, e quando voltam, fazem coisa melhor. É assim que, de geração em geração, o progresso se efetua.

Não se pode duvidar de que haja famílias, cidades, nações, raças culpadas, porque, dominadas por instintos de orgulho, de egoísmo, de ambição, de cupidez, enveredam por mau caminho e fazem coletivamente o que um indivíduo faz insuladamente. Uma família se enriquece à custa de outra; um povo subjuga outro povo, levando-lhe a desolação e a ruína; uma raça se esforça por aniquilar outra raça. Essa a razão por que há famílias, povos e raças sobre os quais desce a pena de talião.

“Quem matou com a espada perecerá pela espada”, são palavras do Cristo, palavras que se podem traduzir assim: Aquele que fez correr sangue verá o seu também derramado; aquele que levou o facho do incêndio ao que era de outrem, verá o incêndio ateado no que lhe pertence; aquele que despojou será despojado; aquele que escraviza e maltrata o fraco será a seu turno escravizado e maltratado, quer se trate de um indivíduo, quer de uma nação, ou de uma raça, porque os membros de uma individualidade coletiva são solidários assim no bem como no mal que em comum praticaram.

Ao passo que o Espiritismo dilata o campo da solidariedade, o materialismo o restringe às mesquinhas proporções da existência do homem, fazendo da mesma solidariedade um dever social sem raízes, sem outra sanção além da boa vontade e do interesse pessoal do momento. É uma simples teoria, simples máxima filosófica, cuja prática nada há que a imponha. Para o Espiritismo, a solidariedade é um fato que assenta numa lei universal da Natureza, que liga todos os seres do passado, do presente e do futuro e a cujas consequências ninguém pode subtrair-se. É esta uma coisa que todo homem pode compreender, por menos instruído que seja.

Quando todos os homens compreenderem o Espiritismo, compreenderão também a verdadeira solidariedade e, conseguintemente, a verdadeira fraternidade. Uma e outra então deixarão de ser simples deveres circunstanciais, que cada um prega as mais das vezes no seu próprio interesse e não no de outrem. O reinado da solidariedade e da fraternidade será forçosamente o da justiça para todos e o da justiça será o da paz e da harmonia entre os indivíduos, as famílias, os povos e as raças. Virá esse reinado? Duvidar do seu advento seria negar o progresso. Se compararmos a sociedade atual, nas nações civilizadas, com o que era na 1dade Média, reconheceremos grande a diferença. Ora, se os homens avançaram até aqui, por que haveriam de parar? Observando-se o percurso que eles hão feito apenas de um século para cá, poder-se-á avaliar o que farão daqui a mais outro século.

As convulsões sociais são revoltas dos Espíritos encarnados contra o mal que os acicata, índice de suas aspirações a esse reino de justiça pelo qual anseiam, sem, todavia, se aperceberem claramente do que querem e dos meios de consegui-lo. Por isso é que se movimentam, agitam, tudo subvertem a torto e a direito, criam sistemas, propõem remédios mais ou menos utópicos, cometem mesmo injustiças sem conta, por espírito, ao que dizem, de justiça, esperando que desse movimento saia, porventura, alguma coisa. Mais tarde, definirão melhor suas aspirações e o caminho se lhes aclarará.

Quem quer que desça ao âmago dos princípios do Espiritismo filosófico, que considere os horizontes que ele desvenda, as ideias a que dá origem e os sentimentos que desenvolve, não duvidará da parte preponderante que há de ter na regeneração, pois que, precisamente e pela força das coisas, ele conduz ao objetivo a que a Humanidade aspira: ao reino da justiça, pela extinção dos abusos que lhe hão obstado ao progresso e pela moralização das massas. Se os que sonham com a restauração do passado não entendessem assim, não se aferrariam tanto a esse sonho; deixá-lo-iam morrer tranquilamente, como há sucedido a muitas utopias. Isto, por si só, deverá dar que pensar a certos zombadores, fazendo-os ponderar que talvez haja aí alguma coisa mais séria do que imaginam. Mas, há pessoas que de tudo riem, que ririam mesmo de Deus, se o vissem na Terra. Também há os que têm medo de que aos seus olhos se apresente a alma que se obstinam em negar.

Qualquer que seja a influência que um dia o Espiritismo chegue a exercer sobre as sociedades, não se suponha que ele venha a substituir uma aristocracia por outra, nem a impor leis; primeiramente, porque, proclamando o direito absoluto à liberdade de consciência e do livre exame em matéria de fé, quer, como crença, ser livremente aceito, por convicção e não por meio de constrangimento. Pela sua natureza, não pode, nem deve exercer nenhuma pressão. Proscrevendo a fé cega, quer ser compreendido. Para ele, absolutamente não há mistérios, mas uma fé racional, que se baseia em fatos e que deseja a luz. Não repudia nenhuma descoberta da Ciência, dado que a Ciência é a coletânea das leis da Natureza e que, sendo de Deus essas leis, repudiar a Ciência fora repudiar a obra de Deus.

Em segundo lugar, estando a ação do Espiritismo no seu poder moralizador, não pode ele assumir nenhuma forma autocrática, porque então faria o que condena. Sua influência será preponderante, pelas modificações que trará às ideias, às opiniões, aos caracteres, aos costumes dos homens e às relações sociais. E maior será essa influência, pela circunstância de não ser imposta. Forte como filosofia, o Espiritismo só teria que perder, neste século de raciocínio, se se transformasse em poder temporal. Não será ele, portanto, que fará as instituições do mundo regenerado; os homens é que as farão, sob o império das ideias de justiça, de caridade, de fraternidade e de solidariedade, mas bem compreendidas, graças ao Espiritismo.

Essencialmente positivo em suas crenças, ele repele todo misticismo, desde que não se estenda esta denominação, como o fazem os que em nada creem, à crença em Deus, na alma e na vida futura. Induz, é certo, os homens a se ocuparem seriamente com a vida espiritual, mas porque essa é a vida normal, sendo nela que se têm de cumprir os nossos destinos, pois que a vida terrestre é transitória, passageira. Pelas provas que apresenta da realidade da vida espiritual, ensina aos homens a não atribuírem mais que relativa importância às coisas deste mundo, dando-lhes assim força e coragem para suportar com paciência as vicissitudes da vida terrena. Ensina-lhes que, morrendo, não deixam para sempre este mundo; que podem a ele voltar, a fim de aperfeiçoarem sua educação intelectual e moral, a menos que já estejam bastante adiantados para merecerem passar a um mundo melhor; que os trabalhos e progressos que realizem, ou para cuja realização contribuam, lhes aproveitarão, concorrendo para que melhorada se lhes torne a posição futura. Mostra-lhes dessa forma que é de todo o interesse deles não o desprezarem. Se lhes repugna voltar aqui, uma vez que possuem o livre-arbítrio, deles depende o fazerem o que é necessário a se tornarem habitantes de outros orbes; mas, que não se iludam sobre as condições que devem preencher para merecerem uma mudança de residência! Não será por meio de algumas fórmulas, expressas em palavras ou atos, que o conseguirão, sim por efeito de uma reforma séria e radical de suas imperfeições, modificando-se, despojando-se das paixões más, adquirindo dia a dia novas qualidades, ensinando a todos, pelo exemplo, a linha de proceder que levará solidariamente todos os homens à ventura, pela fraternidade, pela tolerância, pelo amor.

A Humanidade se compõe de personalidades, que constituem as existências individuais, e das gerações, que constituem as existências coletivas. Umas e outras avançam na senda do progresso, por variadas fases de provações que, portanto, são individuais para as pessoas e coletivas para as gerações. Do mesmo modo que, para o encarnado, cada existência é um passo à frente, cada geração marca um grau de progresso para o conjunto. É irresistível esse progresso do conjunto e arrasta as massas, ao mesmo tempo que modifica e transforma em instrumento de regeneração os erros e prejuízos de um passado que tem de desaparecer. Ora, como as gerações se compõem dos indivíduos que já viveram nas gerações precedentes, segue-se que o progresso delas é a resultante do progresso dos indivíduos.

Mas, quem demonstrará, poderão dizer, a existência de solidariedade entre a geração atual e as que a precederam, ou entre ela e as que lhe sucederão? Como se poderia provar que eu já vivi na 1dade Média, por exemplo, e que voltarei a tomar parte nos acontecimentos que se produzirão na sucessão dos tempos?

Nas obras fundamentais da Doutrina e na Revista, o princípio da pluralidade das existências já foi exaustivamente demonstrado, para que ainda nos detivéssemos aqui a demonstrá-lo. Nos fatos da vida cotidiana fervilham provas e uma demonstração quase matemática. Limitam-nos, pois, a concitar os pensadores a que atentem nas provas morais que decorrem do raciocínio e da indução.

Será, porventura, necessário vejamos uma coisa, para que nela acreditemos? Observando efeitos, não se pode adquirir a certeza material da causa?

Afora a da experiência, a única senda legítima que se abre para a investigação consiste em remontar do efeito à causa. A justiça nos oferece notabilíssimo exemplo desse princípio, quando empreende descobrir os indícios dos meios que serviram à perpetração de um crime, as intenções que se agregam à culpabilidade do malfeitor. Este não foi apanhado em flagrante e, contudo, é condenado por esses indícios.

A Ciência, que pretende caminhar tão só pela via da experiência, afirma todos os dias princípios que mais não são do que induções das causas por meio unicamente da observação dos efeitos.

Em geologia determina-se a idade das montanhas. Porventura assistiram os geólogos ao surto delas? Viram formar-se as camadas de sedimento que lhes determinam a idade?

Os conhecimentos astronômicos, físicos e químicos permitem se avaliem o peso dos planetas, suas densidades, seus volumes, a velocidade que os anima, a natureza dos elementos que os compõem; entretanto, os sábios não fizeram experiências diretas e é à analogia e à indução que devemos tão belas e preciosas descobertas.

Os homens de antanho, baseados nos testemunhos de seus sentidos, afirmavam ser o Sol que gira em torno da Terra. No entanto, esse testemunho os enganava e prevaleceu o raciocínio.

O mesmo se dará com os princípios que o Espiritismo sustenta, desde que se disponham a estudá-los, sem prevenções, e, então, a Humanidade entrará, real e rapidamente, numa era de progresso e de regeneração, porque, já não se sentindo isolados entre dois abismos, o desconhecido do passado e a incerteza do porvir, os indivíduos trabalharão com energia por aperfeiçoar e multiplicar os elementos da felicidade que tem de ser obra deles, porque reconhecerão que não é devida ao acaso a posição que ocupam no mundo e que eles próprios gozarão, no futuro e em melhores condições, do fruto de seus labores e de suas vigílias. É que o Espiritismo lhes ensinará que, se as faltas coletivamente cometidas são expiadas solidariamente, os progressos realizados em comum são igualmente solidários, princípio em virtude do qual desaparecerão as dissensões de raças, de famílias e de indivíduos e a Humanidade, livre das faixas da infância, avançará, célere e virilmente, para a conquista de seus verdadeiros destinos.


Allan Kardec.




Dezembro

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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Dezembro


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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Dezembro


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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Julho

Julho


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É bem sabido que a maior parte das misérias da vida tem origem no egoísmo dos homens. Desde que cada um pensa em si antes de pensar nos outros e cogita antes de tudo de satisfazer aos seus desejos, cada um naturalmente cuida de proporcionar a si mesmo essa satisfação, a todo custo, e sacrifica sem escrúpulo os interesses alheios, assim nas mais insignificantes coisas, como nas maiores, tanto de ordem moral, quanto de ordem material. Daí todos os antagonismos sociais, todas as lutas, todos os conflitos e todas as misérias, visto que cada um só trata de despojar o seu próximo.

O egoísmo se origina do orgulho. A exaltação da personalidade leva o homem a considerar-se acima dos outros. Julgando-se com direitos superiores, melindra-se com o que quer que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos. A importância que, por orgulho, atribui à sua pessoa, naturalmente o torna egoísta.

O egoísmo e o orgulho nascem de um sentimento natural: o instinto de conservação. Todos os instintos têm sua razão de ser e sua utilidade, porquanto Deus nada pode ter feito de inútil. Ele não criou o mal; o homem é quem o produz, abusando dos dons de Deus, em virtude do seu livre-arbítrio. Contido em justos limites, aquele sentimento é bom em si mesmo. A exageração é o que o torna mau e pernicioso. O mesmo acontece com todas as paixões que o homem frequentemente desvia do seu objetivo providencial. Ele não foi criado egoísta, nem orgulhoso por Deus, que o criou simples e ignorante; o homem é que se fez egoísta e orgulhoso, exagerando o instinto que Deus lhe outorgou para sua conservação.

Não podem os homens ser felizes, se não viverem em paz, isto é, se não os animar um sentimento de benevolência, de indulgência e de condescendência recíprocas; numa palavra: enquanto procurarem esmagar-se uns aos outros. A caridade e a fraternidade resumem todas as condições e todos os deveres sociais; uma e outra, porém, pressupõem a abnegação. Ora, a abnegação é incompatível com o egoísmo e o orgulho; logo, com esses vícios não é possível a verdadeira fraternidade, nem, por conseguinte, igualdade, nem liberdade, dado que o egoísta e o orgulhoso querem tudo para si.

Eles serão sempre os vermes roedores de todas as instituições progressistas; enquanto dominarem, ruirão aos seus golpes os mais generosos sistemas sociais, os mais sabiamente combinados. É belo, sem dúvida, proclamar-se o reinado da fraternidade, mas, para que fazê-lo, se uma causa destrutiva existe? É edificar em terreno movediço; o mesmo fora decretar a saúde numa região malsã. Em tal região, para que os homens passem bem, não bastará se mandem médicos, pois que estes morrerão como os outros; insta destruir as causas da insalubridade. Para que os homens vivam na Terra como irmãos, não basta se lhes deem lições de moral; importa destruir as causas de antagonismo, atacar a raiz do mal: o orgulho e o egoísmo.

Essa a chaga sobre a qual deve concentrar-se toda a atenção dos que desejem seriamente o bem da Humanidade Enquanto subsistir semelhante obstáculo, eles verão paralisados todos os seus esforços, não só por uma resistência de inércia, como também por uma força ativa que trabalhará incessantemente no sentido de destruir a obra que empreendam, por isso que toda ideia grande, generosa e emancipadora arruína as pretensões pessoais.

Impossível, dir-se-á, destruir o orgulho e o egoísmo, porque são vícios inerentes à espécie humana. Se fosse assim, houvéramos de desesperar de todo o progresso moral; entretanto, desde que se considere o homem nas diferentes épocas transcorridas, não há negar que evidente progresso se efetuou. Ora, se ele progrediu, ainda naturalmente progredirá. Por outro lado, não se encontrará homem nenhum sem orgulho, nem egoísmo? Não se veem, ao contrário, criaturas de índole generosa, em quem parecem inatos os sentimentos do amor ao próximo, da humildade, do devotamento e da abnegação? O número delas, positivamente, é menor do que o dos egoístas; se assim não fosse, não seriam estes últimos os fautores da lei. Há muito mais criaturas dessas do que se pensa e, se parecem tão pouco numerosas, é porque o orgulho se põe em evidência, ao passo que a virtude modesta se conserva na obscuridade.

Se, portanto, o orgulho e o egoísmo se contassem entre as condições necessárias da Humanidade, como a da alimentação para sustento da vida, não haveria exceções. O ponto essencial, pois, é conseguir que a exceção passe a constituir regra; para isso, trata-se, antes de tudo, de destruir as causas que produzem e entretêm o mal.

Dessas causas, a principal reside evidentemente na ideia falsa que o homem faz da sua natureza, do seu passado e do seu futuro. Por não saber donde vem, ele se crê mais do que é; e não sabendo para onde vai, concentra na vida terrena todo o seu pensar; acha-a tão agradável, quanto possível; anseia por todas as satisfações, por todos os gozos; essa a razão por que atropela sem escrúpulo o seu semelhante, se este lhe opõe alguma dificuldade. Mas, para isso, é preciso que ele predomine; a igualdade daria, a outros, direitos que ele só quer para si; a fraternidade lhe imporia sacrifícios em detrimento do seu bem-estar a liberdade também ele só a quer para si e somente a concede aos outros quando não lhe fira de modo algum as prerrogativas. Alimentando todos as mesmas pretensões, têm resultado os perpétuos conflitos que os levam a pagar bem caro os raros gozos que logram obter.

Identifique-se o homem com a vida futura e completamente mudará a sua maneira de ver, como a do indivíduo que apenas por poucas horas haja de permanecer numa habitação má e que sabe que, ao sair, terá outra, magnífica, para o resto de seus dias.

A importância da vida presente, tão triste, tão curta, tão efêmera, se apaga, para ele, ante o esplendor do futuro infinito que se lhe desdobra às vistas. A consequência natural e lógica dessa certeza é sacrificar o homem um presente fugidio a um porvir duradouro, ao passo que antes ele tudo sacrificava ao presente. Tomando por objetivo a vida futura, pouco lhe importa estar um pouco mais ou um pouco menos nesta outra; os interesses mundanos passam a ser o acessório, em vez de ser o principal; ele trabalha no presente com o fito de assegurar a sua posição no futuro, tanto mais quando sabe em que condições poderá ser feliz.

Pelo que toca aos interesses terrenos, podem os humanos criar-lhe obstáculos: ele tem que os afastar e se torna egoísta pela força mesma das coisas. Se lançar os olhos para o alto, para uma felicidade a que ninguém pode obstar, interesse nenhum se lhe deparará em oprimir a quem quer que seja e o egoísmo se lhe torna carente de objeto. Todavia, restará o estimulante do orgulho.

A causa do orgulho está na crença, em que o homem se firma, da sua superioridade individual. Ainda aí se faz sentir a influência da concentração dos pensamentos sobre a vida corpórea. Naquele que nada vê adiante de si, atrás de si, nem acima de si, o sentimento de personalidade sobrepuja e o orgulho fica sem contrapeso.

A incredulidade não só carece de meios para combater o orgulho, como o estimula e lhe dá razão, negando a existência de um poder superior à Humanidade. O incrédulo apenas crê em si mesmo; é, pois, natural que tenha orgulho. Enquanto que, nos golpes que o atingem, unicamente vê uma obra do acaso e se ergue para combatê-la, aquele que tem fé percebe a mão de Deus e se submete. Crer em Deus e na vida futura é, conseguintemente, a primeira condição para moderar o orgulho; porém, não basta. Juntamente com o futuro, é necessário ver o passado, para fazer ideia exata do presente.

Para que o orgulhoso deixe de crer na sua superioridade, cumpre se lhe prove que ele não é mais do que os outros e que estes são tanto quanto ele; que a igualdade é um fato e não apenas uma bela teoria filosófica; que estas verdades ressaltam da preexistência da alma e da reencarnação.

Sem a preexistência da alma, o homem é induzido a acreditar que Deus, dado creia em Deus, lhe conferiu vantagens excepcionais; quando não crê em Deus, rende graças ao acaso e ao seu próprio mérito. Iniciando-o na vida anterior da alma, a preexistência lhe ensina a distinguir, da vida corporal, transitória, a vida espiritual, infinita; ele fica sabendo que as almas saem todas iguais das mãos do Criador; que todas têm o mesmo ponto de partida e a mesma finalidade, que todas hão de alcançar, em mais ou menos tempo, conforme os esforços que empreguem; que ele próprio não chegou a ser o que é, senão depois de haver, por longo tempo e penosamente, vegetado, como os outros, nos degraus inferiores da evolução; que, entre os mais atrasados e os mais adiantados, não há senão uma questão de tempo; que as vantagens do nascimento são puramente corpóreas e independem do Espírito; que o simples proletário pode, noutra existência, nascer num trono e o maior potentado renascer proletário.

Se levar em conta unicamente a vida planetária, ele vê apenas as desigualdades sociais do momento, que são as que o impressionam; se, porém, deitar os olhos sobre o conjunto da vida do Espírito, sobre o passado e o futuro, desde o ponto de partida até o de chegada, aquelas desigualdades se somem e ele reconhece que Deus nenhuma vantagem concedeu a qualquer de seus filhos em prejuízo dos outros; que deu parte igual a todos e não aplanou o caminho mais para uns do que para outros; que o que se apresenta menos adiantado do que ele na Terra pode tomar-lhe a dianteira, se trabalhar mais do que ele por aperfeiçoar-se; reconhecerá, finalmente, que, nenhum chegando ao termo senão por seus esforços, o princípio da igualdade é um princípio de justiça e uma lei da Natureza, perante a qual cai o orgulho do privilégio.

Provando que os Espíritos podem renascer em diferentes condições sociais, quer por expiação, quer por provação, a reencarnação ensina que, naquele a quem tratamos com desdém, pode estar um que foi nosso superior ou nosso igual noutra existência, um amigo ou um parente. Se o soubesse, o que com ele se defronta o trataria com atenções, mas, nesse caso, nenhum mérito teria; por outro lado, se soubesse que o seu amigo atual foi seu inimigo, seu servo ou seu escravo, sem dúvida o repeliria. Ora, não quis Deus que fosse assim, pelo que lançou um véu sobre o passado. Deste modo, o homem é levado a ver em todos, irmãos seus e seus iguais, donde uma base natural para a fraternidade; sabendo que pode ser tratado como haja tratado os outros, a caridade se lhe torna um dever e uma necessidade fundados na própria Natureza.

Jesus assentou o princípio da caridade, da igualdade e da fraternidade, fazendo dele uma condição expressa para a salvação; mas, estava reservado à terceira manifestação da vontade Deus, ao Espiritismo, pelo conhecimento que faculta da vida espiritual, pelos novos horizontes que desvenda e pelas leis que revela, sancionar esse princípio, provando que ele não encerra uma simples doutrina moral, mas uma lei da Natureza que o homem tem o máximo interesse em praticar. Ora, ele a praticará desde que, deixando de encarar o presente como o começo e o fim, compreenda a solidariedade que existe entre o presente, o passado e o futuro. No campo imenso do infinito, que o Espiritismo lhe faz entrever, anula-se a sua importância capital e ele percebe que, por si só, nada vale e nada é; que todos têm necessidade uns dos outros e que uns não são mais do que os outros: duplo golpe, no seu egoísmo e no seu orgulho.

Mas, para isso, é-lhe necessária a fé, sem a qual permanecerá na rotina do presente, não a fé cega, que foge à luz, restringe as ideias e, em consequência, alimenta o egoísmo. É-lhe necessária a fé inteligente, racional, que procura a claridade e não as trevas, que ousadamente rasga o véu dos mistérios e alarga o horizonte. Essa fé, elemento básico de todo progresso, é que o Espiritismo lhe proporciona, fé robusta, porque assente na experiência e nos fatos, porque lhe fornece provas palpáveis da imortalidade da sua alma, lhe mostra de onde ele vem, para onde vai e por que está na Terra e, finalmente, lhe firma as ideias, ainda incertas, sobre o seu passado e sobre o seu futuro.

Uma vez que haja entrado decisivamente por esse caminho, já não tendo o que os incite, o egoísmo e o orgulho se extinguirão pouco a pouco, por falta de objetivo e de alimento, e todas as relações sociais se modificarão sob o influxo da caridade e da fraternidade bem compreendidas.

Poderá isso dar-se por efeito de brusca mudança? Não, fora impossível: nada se opera bruscamente em a Natureza; jamais a saúde volta de súbito a um enfermo; entre a enfermidade e a saúde, há sempre a convalescença. Não pode o homem mudar instantaneamente o seu ponto de vista e volver da Terra para o céu o olhar; o infinito o confunde e deslumbra; ele precisa de tempo para assimilar as novas ideias.

O Espiritismo é, sem contradita, o mais poderoso elemento de moralização, porque mina pela base o egoísmo e o orgulho, facultando um ponto de apoio à moral. Há feito milagres de conversão; é certo que ainda são apenas curas individuais e não raro parciais. O que, porém, ele há produzido com relação a indivíduos constitui penhor do que produzirá um dia sobre as massas. Não lhe é possível arrancar de um só golpe as ervas daninhas. Ele dá a fé e a fé é a boa semente, mas mister se faz que ela tenha tempo de germinar e de frutificar, razão por que nem todos os espíritas já são perfeitos. Ele tomou o homem em meio da vida, no fogo das paixões, em plena força dos preconceitos e se, em tais circunstâncias, operou prodígios, que não será quando o tomar ao nascer, ainda virgem de todas as impressões malsãs; quando a criatura sugar com o leite a caridade e tiver a fraternidade a embalá-lo; quando, enfim, toda uma geração for educada e alimentada com ideias que a razão, desenvolvendo-se, fortalecerá, em vez de falsear? Sob o domínio destas ideias, que se tornarão a fé comum de todos, não mais esbarrando o progresso no egoísmo e no orgulho, as instituições se reformarão por si mesmas e a Humanidade avançará rapidamente para os destinos que lhe estão prometidos na Terra, aguardando os do céu.


Allan Kardec.




Julho


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É bem sabido que a maior parte das misérias da vida tem origem no egoísmo dos homens. Desde que cada um pensa em si antes de pensar nos outros e cogita antes de tudo de satisfazer aos seus desejos, cada um naturalmente cuida de proporcionar a si mesmo essa satisfação, a todo custo, e sacrifica sem escrúpulo os interesses alheios, assim nas mais insignificantes coisas, como nas maiores, tanto de ordem moral, quanto de ordem material. Daí todos os antagonismos sociais, todas as lutas, todos os conflitos e todas as misérias, visto que cada um só trata de despojar o seu próximo.

O egoísmo se origina do orgulho. A exaltação da personalidade leva o homem a considerar-se acima dos outros. Julgando-se com direitos superiores, melindra-se com o que quer que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos. A importância que, por orgulho, atribui à sua pessoa, naturalmente o torna egoísta.

O egoísmo e o orgulho nascem de um sentimento natural: o instinto de conservação. Todos os instintos têm sua razão de ser e sua utilidade, porquanto Deus nada pode ter feito de inútil. Ele não criou o mal; o homem é quem o produz, abusando dos dons de Deus, em virtude do seu livre-arbítrio. Contido em justos limites, aquele sentimento é bom em si mesmo. A exageração é o que o torna mau e pernicioso. O mesmo acontece com todas as paixões que o homem frequentemente desvia do seu objetivo providencial. Ele não foi criado egoísta, nem orgulhoso por Deus, que o criou simples e ignorante; o homem é que se fez egoísta e orgulhoso, exagerando o instinto que Deus lhe outorgou para sua conservação.

Não podem os homens ser felizes, se não viverem em paz, isto é, se não os animar um sentimento de benevolência, de indulgência e de condescendência recíprocas; numa palavra: enquanto procurarem esmagar-se uns aos outros. A caridade e a fraternidade resumem todas as condições e todos os deveres sociais; uma e outra, porém, pressupõem a abnegação. Ora, a abnegação é incompatível com o egoísmo e o orgulho; logo, com esses vícios não é possível a verdadeira fraternidade, nem, por conseguinte, igualdade, nem liberdade, dado que o egoísta e o orgulhoso querem tudo para si.

Eles serão sempre os vermes roedores de todas as instituições progressistas; enquanto dominarem, ruirão aos seus golpes os mais generosos sistemas sociais, os mais sabiamente combinados. É belo, sem dúvida, proclamar-se o reinado da fraternidade, mas, para que fazê-lo, se uma causa destrutiva existe? É edificar em terreno movediço; o mesmo fora decretar a saúde numa região malsã. Em tal região, para que os homens passem bem, não bastará se mandem médicos, pois que estes morrerão como os outros; insta destruir as causas da insalubridade. Para que os homens vivam na Terra como irmãos, não basta se lhes deem lições de moral; importa destruir as causas de antagonismo, atacar a raiz do mal: o orgulho e o egoísmo.

Essa a chaga sobre a qual deve concentrar-se toda a atenção dos que desejem seriamente o bem da Humanidade Enquanto subsistir semelhante obstáculo, eles verão paralisados todos os seus esforços, não só por uma resistência de inércia, como também por uma força ativa que trabalhará incessantemente no sentido de destruir a obra que empreendam, por isso que toda ideia grande, generosa e emancipadora arruína as pretensões pessoais.

Impossível, dir-se-á, destruir o orgulho e o egoísmo, porque são vícios inerentes à espécie humana. Se fosse assim, houvéramos de desesperar de todo o progresso moral; entretanto, desde que se considere o homem nas diferentes épocas transcorridas, não há negar que evidente progresso se efetuou. Ora, se ele progrediu, ainda naturalmente progredirá. Por outro lado, não se encontrará homem nenhum sem orgulho, nem egoísmo? Não se veem, ao contrário, criaturas de índole generosa, em quem parecem inatos os sentimentos do amor ao próximo, da humildade, do devotamento e da abnegação? O número delas, positivamente, é menor do que o dos egoístas; se assim não fosse, não seriam estes últimos os fautores da lei. Há muito mais criaturas dessas do que se pensa e, se parecem tão pouco numerosas, é porque o orgulho se põe em evidência, ao passo que a virtude modesta se conserva na obscuridade.

Se, portanto, o orgulho e o egoísmo se contassem entre as condições necessárias da Humanidade, como a da alimentação para sustento da vida, não haveria exceções. O ponto essencial, pois, é conseguir que a exceção passe a constituir regra; para isso, trata-se, antes de tudo, de destruir as causas que produzem e entretêm o mal.

Dessas causas, a principal reside evidentemente na ideia falsa que o homem faz da sua natureza, do seu passado e do seu futuro. Por não saber donde vem, ele se crê mais do que é; e não sabendo para onde vai, concentra na vida terrena todo o seu pensar; acha-a tão agradável, quanto possível; anseia por todas as satisfações, por todos os gozos; essa a razão por que atropela sem escrúpulo o seu semelhante, se este lhe opõe alguma dificuldade. Mas, para isso, é preciso que ele predomine; a igualdade daria, a outros, direitos que ele só quer para si; a fraternidade lhe imporia sacrifícios em detrimento do seu bem-estar a liberdade também ele só a quer para si e somente a concede aos outros quando não lhe fira de modo algum as prerrogativas. Alimentando todos as mesmas pretensões, têm resultado os perpétuos conflitos que os levam a pagar bem caro os raros gozos que logram obter.

Identifique-se o homem com a vida futura e completamente mudará a sua maneira de ver, como a do indivíduo que apenas por poucas horas haja de permanecer numa habitação má e que sabe que, ao sair, terá outra, magnífica, para o resto de seus dias.

A importância da vida presente, tão triste, tão curta, tão efêmera, se apaga, para ele, ante o esplendor do futuro infinito que se lhe desdobra às vistas. A consequência natural e lógica dessa certeza é sacrificar o homem um presente fugidio a um porvir duradouro, ao passo que antes ele tudo sacrificava ao presente. Tomando por objetivo a vida futura, pouco lhe importa estar um pouco mais ou um pouco menos nesta outra; os interesses mundanos passam a ser o acessório, em vez de ser o principal; ele trabalha no presente com o fito de assegurar a sua posição no futuro, tanto mais quando sabe em que condições poderá ser feliz.

Pelo que toca aos interesses terrenos, podem os humanos criar-lhe obstáculos: ele tem que os afastar e se torna egoísta pela força mesma das coisas. Se lançar os olhos para o alto, para uma felicidade a que ninguém pode obstar, interesse nenhum se lhe deparará em oprimir a quem quer que seja e o egoísmo se lhe torna carente de objeto. Todavia, restará o estimulante do orgulho.

A causa do orgulho está na crença, em que o homem se firma, da sua superioridade individual. Ainda aí se faz sentir a influência da concentração dos pensamentos sobre a vida corpórea. Naquele que nada vê adiante de si, atrás de si, nem acima de si, o sentimento de personalidade sobrepuja e o orgulho fica sem contrapeso.

A incredulidade não só carece de meios para combater o orgulho, como o estimula e lhe dá razão, negando a existência de um poder superior à Humanidade. O incrédulo apenas crê em si mesmo; é, pois, natural que tenha orgulho. Enquanto que, nos golpes que o atingem, unicamente vê uma obra do acaso e se ergue para combatê-la, aquele que tem fé percebe a mão de Deus e se submete. Crer em Deus e na vida futura é, conseguintemente, a primeira condição para moderar o orgulho; porém, não basta. Juntamente com o futuro, é necessário ver o passado, para fazer ideia exata do presente.

Para que o orgulhoso deixe de crer na sua superioridade, cumpre se lhe prove que ele não é mais do que os outros e que estes são tanto quanto ele; que a igualdade é um fato e não apenas uma bela teoria filosófica; que estas verdades ressaltam da preexistência da alma e da reencarnação.

Sem a preexistência da alma, o homem é induzido a acreditar que Deus, dado creia em Deus, lhe conferiu vantagens excepcionais; quando não crê em Deus, rende graças ao acaso e ao seu próprio mérito. Iniciando-o na vida anterior da alma, a preexistência lhe ensina a distinguir, da vida corporal, transitória, a vida espiritual, infinita; ele fica sabendo que as almas saem todas iguais das mãos do Criador; que todas têm o mesmo ponto de partida e a mesma finalidade, que todas hão de alcançar, em mais ou menos tempo, conforme os esforços que empreguem; que ele próprio não chegou a ser o que é, senão depois de haver, por longo tempo e penosamente, vegetado, como os outros, nos degraus inferiores da evolução; que, entre os mais atrasados e os mais adiantados, não há senão uma questão de tempo; que as vantagens do nascimento são puramente corpóreas e independem do Espírito; que o simples proletário pode, noutra existência, nascer num trono e o maior potentado renascer proletário.

Se levar em conta unicamente a vida planetária, ele vê apenas as desigualdades sociais do momento, que são as que o impressionam; se, porém, deitar os olhos sobre o conjunto da vida do Espírito, sobre o passado e o futuro, desde o ponto de partida até o de chegada, aquelas desigualdades se somem e ele reconhece que Deus nenhuma vantagem concedeu a qualquer de seus filhos em prejuízo dos outros; que deu parte igual a todos e não aplanou o caminho mais para uns do que para outros; que o que se apresenta menos adiantado do que ele na Terra pode tomar-lhe a dianteira, se trabalhar mais do que ele por aperfeiçoar-se; reconhecerá, finalmente, que, nenhum chegando ao termo senão por seus esforços, o princípio da igualdade é um princípio de justiça e uma lei da Natureza, perante a qual cai o orgulho do privilégio.

Provando que os Espíritos podem renascer em diferentes condições sociais, quer por expiação, quer por provação, a reencarnação ensina que, naquele a quem tratamos com desdém, pode estar um que foi nosso superior ou nosso igual noutra existência, um amigo ou um parente. Se o soubesse, o que com ele se defronta o trataria com atenções, mas, nesse caso, nenhum mérito teria; por outro lado, se soubesse que o seu amigo atual foi seu inimigo, seu servo ou seu escravo, sem dúvida o repeliria. Ora, não quis Deus que fosse assim, pelo que lançou um véu sobre o passado. Deste modo, o homem é levado a ver em todos, irmãos seus e seus iguais, donde uma base natural para a fraternidade; sabendo que pode ser tratado como haja tratado os outros, a caridade se lhe torna um dever e uma necessidade fundados na própria Natureza.

Jesus assentou o princípio da caridade, da igualdade e da fraternidade, fazendo dele uma condição expressa para a salvação; mas, estava reservado à terceira manifestação da vontade Deus, ao Espiritismo, pelo conhecimento que faculta da vida espiritual, pelos novos horizontes que desvenda e pelas leis que revela, sancionar esse princípio, provando que ele não encerra uma simples doutrina moral, mas uma lei da Natureza que o homem tem o máximo interesse em praticar. Ora, ele a praticará desde que, deixando de encarar o presente como o começo e o fim, compreenda a solidariedade que existe entre o presente, o passado e o futuro. No campo imenso do infinito, que o Espiritismo lhe faz entrever, anula-se a sua importância capital e ele percebe que, por si só, nada vale e nada é; que todos têm necessidade uns dos outros e que uns não são mais do que os outros: duplo golpe, no seu egoísmo e no seu orgulho.

Mas, para isso, é-lhe necessária a fé, sem a qual permanecerá na rotina do presente, não a fé cega, que foge à luz, restringe as ideias e, em consequência, alimenta o egoísmo. É-lhe necessária a fé inteligente, racional, que procura a claridade e não as trevas, que ousadamente rasga o véu dos mistérios e alarga o horizonte. Essa fé, elemento básico de todo progresso, é que o Espiritismo lhe proporciona, fé robusta, porque assente na experiência e nos fatos, porque lhe fornece provas palpáveis da imortalidade da sua alma, lhe mostra de onde ele vem, para onde vai e por que está na Terra e, finalmente, lhe firma as ideias, ainda incertas, sobre o seu passado e sobre o seu futuro.

Uma vez que haja entrado decisivamente por esse caminho, já não tendo o que os incite, o egoísmo e o orgulho se extinguirão pouco a pouco, por falta de objetivo e de alimento, e todas as relações sociais se modificarão sob o influxo da caridade e da fraternidade bem compreendidas.

Poderá isso dar-se por efeito de brusca mudança? Não, fora impossível: nada se opera bruscamente em a Natureza; jamais a saúde volta de súbito a um enfermo; entre a enfermidade e a saúde, há sempre a convalescença. Não pode o homem mudar instantaneamente o seu ponto de vista e volver da Terra para o céu o olhar; o infinito o confunde e deslumbra; ele precisa de tempo para assimilar as novas ideias.

O Espiritismo é, sem contradita, o mais poderoso elemento de moralização, porque mina pela base o egoísmo e o orgulho, facultando um ponto de apoio à moral. Há feito milagres de conversão; é certo que ainda são apenas curas individuais e não raro parciais. O que, porém, ele há produzido com relação a indivíduos constitui penhor do que produzirá um dia sobre as massas. Não lhe é possível arrancar de um só golpe as ervas daninhas. Ele dá a fé e a fé é a boa semente, mas mister se faz que ela tenha tempo de germinar e de frutificar, razão por que nem todos os espíritas já são perfeitos. Ele tomou o homem em meio da vida, no fogo das paixões, em plena força dos preconceitos e se, em tais circunstâncias, operou prodígios, que não será quando o tomar ao nascer, ainda virgem de todas as impressões malsãs; quando a criatura sugar com o leite a caridade e tiver a fraternidade a embalá-lo; quando, enfim, toda uma geração for educada e alimentada com ideias que a razão, desenvolvendo-se, fortalecerá, em vez de falsear? Sob o domínio destas ideias, que se tornarão a fé comum de todos, não mais esbarrando o progresso no egoísmo e no orgulho, as instituições se reformarão por si mesmas e a Humanidade avançará rapidamente para os destinos que lhe estão prometidos na Terra, aguardando os do céu.


Allan Kardec.




Dezembro

Dezembro


Temas Relacionados:

Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Outubro

Outubro


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1. Questão. – O Espiritismo explica perfeitamente a causa dos sofrimentos individuais, como consequências imediatas das faltas cometidas na existência precedente, ou como expiação do passado; mas, uma vez que cada um só é responsável pelas suas próprias faltas, não se explicam satisfatoriamente as desgraças coletivas que atingem as aglomerações de indivíduos, às vezes, uma família inteira, toda uma cidade, toda uma nação, toda uma raça, e que se abatem tanto sobre os bons, como sobre os maus, assim sobre os inocentes, como sobre os culpados.


Resposta. – Todas as leis que regem o Universo, sejam físicas ou morais, materiais ou intelectuais, foram descobertas, estudadas, compreendidas, partindo-se do estudo da individualidade e do da família para o de todo o conjunto, generalizando-as gradualmente e comprovando-se-lhes a universalidade dos resultados.

Outro tanto se verifica hoje com relação às leis que o estudo do Espiritismo dá a conhecer. Podem aplicar-se, sem medo de errar, as leis que regem o indivíduo à família, à nação, às raças, ao conjunto dos habitantes dos mundos, os quais formam individualidades coletivas. Há as faltas do indivíduo, as da família, as da nação; e cada uma, qualquer que seja o seu caráter, se expia em virtude da mesma lei. O algoz, relativamente à sua vítima, quer indo a encontrar-se em sua presença no espaço, quer vivendo em contacto com ela numa ou em muitas existências sucessivas, até à reparação do mal praticado. O mesmo sucede quando se trata de crimes cometidos solidariamente por um certo número de pessoas. As expiações também são solidárias, o que não suprime a expiação simultânea das faltas individuais.

Três caracteres há em todo homem: o do indivíduo, do ser em si mesmo; o do membro da família e, finalmente, o de cidadão. Sob cada uma dessas três faces pode ele ser criminoso e virtuoso, isto é, pode ser virtuoso como pai de família, ao mesmo tempo que criminoso como cidadão e reciprocamente. Daí as situações especiais que para si cria nas suas sucessivas existências.

Salvo alguma exceção, pode-se admitir como regra geral que todos aqueles que numa existência vêm a estar reunidos por uma tarefa comum já viveram juntos para trabalhar com o mesmo objetivo e ainda reunidos se acharão no futuro, até que hajam atingido a meta, isto é, expiado o passado, ou desempenhado a missão que aceitaram.

Graças ao Espiritismo, compreendeis agora a justiça das provações que não decorrem dos atos da vida presente, porque reconheceis que elas são o resgate das dívidas do passado. Por que não haveria de ser assim com relação às provas coletivas? Dizeis que os infortúnios de ordem geral alcançam assim o inocente, como o culpado; mas, não sabeis que o inocente de hoje pode ser o culpado de ontem? Quer ele seja atingido individualmente, quer coletivamente, é que o mereceu. Depois, como já o dissemos, há as faltas do indivíduo e as do cidadão; a expiação de umas não isenta da expiação das outras, pois que toda dívida tem que ser paga até à última moeda. As virtudes da vida privada diferem das da vida pública. Um, que é excelente cidadão, pode ser péssimo pai de família; outro, que é bom pai de família, probo e honesto em seus negócios, pode ser mau cidadão, ter soprado o fogo da discórdia, oprimido o fraco, manchado as mãos em crimes de lesa-sociedade. Essas faltas coletivas é que são expiadas coletivamente pelos indivíduos que para elas concorreram, os quais se encontram de novo reunidos, para sofrerem juntos a pena de talião, ou para terem ensejo de reparar o mal que praticaram, demonstrando devotamento à causa pública, socorrendo e assistindo aqueles a quem outrora maltrataram. Assim, o que é incompreensível, inconciliável com a justiça de Deus, se torna claro e lógico mediante o conhecimento dessa lei.

A solidariedade, portanto, que é o verdadeiro laço social, não o é apenas para o presente; estende-se ao passado e ao futuro, pois que as mesmas individualidades se reuniram, reúnem e reunirão, para subir juntas a escala do progresso, auxiliando-se mutuamente. Eis aí o que o Espiritismo faz compreensível, por meio da equitativa lei da reencarnação e da continuidade das relações entre os mesmos seres.


Clélie Duplantier.


2. Observação. – Conquanto se subordine aos conhecidos princípios de responsabilidade pelo passado e da continuidade das relações entre os Espíritos, esta comunicação encerra uma ideia de certo modo nova e de grande importância. A distinção que estabelece entre a responsabilidade decorrente das faltas individuais ou coletivas, das da vida privada e da vida pública, explica certos fatos ainda mal conhecidos e mostra de maneira mais precisa a solidariedade existente entre os seres e entre as gerações.

Assim, muitas vezes um indivíduo renasce na mesma família, ou, pelo menos, os membros de uma família renascem juntos para constituir uma família nova noutra posição social, a fim de apertarem os laços de afeição entre si, ou reparar agravos recíprocos. Por considerações de ordem mais geral, a criatura renasce no mesmo meio, na mesma nação, na mesma raça, quer por simpatia, quer para continuar, com os elementos já elaborados, estudos começados, para se aperfeiçoar, prosseguir trabalhos encetados e que a brevidade da vida não lhe permitiu acabar. A reencarnação no mesmo meio é a causa determinante do caráter distintivo dos povos e das raças. Embora se melhorando, os indivíduos conservam o matiz primário, até que o progresso os haja completamente transformado.

Os franceses de hoje são, pois, os do século passado, os da Idade Média, os dos tempos druídicos; são os exatores e as vítimas do feudalismo; os que submeteram outros povos e os que trabalharam pela emancipação deles, que se encontram na França transformada, onde uns expiam, na humilhação, o seu orgulho de raça e onde outros gozam o fruto de seus labores. Quando se consideram todos os crimes desses tempos em que a vida dos homens e a honra das famílias em nenhuma conta eram tidas, em que o fanatismo acendia fogueiras em honra da divindade; quando se pensa em todos os abusos de poder, em todas as injustiças que se cometiam com desprezo dos mais sagrados direitos, quem pode estar certo de não haver participado mais ou menos de tudo isso e admirar-se de assistir a grandes e terríveis expiações coletivas?

Mas, dessas convulsões sociais, uma melhora sempre resulta; os Espíritos se esclarecem pela experiência; o infortúnio é estimulante que os impele a procurar um remédio para o mal; na erraticidade, refletem, tomam novas resoluções, e quando voltam, fazem coisa melhor. É assim que, de geração em geração, o progresso se efetua.

Não se pode duvidar de que haja famílias, cidades, nações, raças culpadas, porque, dominadas por instintos de orgulho, de egoísmo, de ambição, de cupidez, enveredam por mau caminho e fazem coletivamente o que um indivíduo faz insuladamente. Uma família se enriquece à custa de outra; um povo subjuga outro povo, levando-lhe a desolação e a ruína; uma raça se esforça por aniquilar outra raça. Essa a razão por que há famílias, povos e raças sobre os quais desce a pena de talião.

“Quem matou com a espada perecerá pela espada”, são palavras do Cristo, palavras que se podem traduzir assim: Aquele que fez correr sangue verá o seu também derramado; aquele que levou o facho do incêndio ao que era de outrem, verá o incêndio ateado no que lhe pertence; aquele que despojou será despojado; aquele que escraviza e maltrata o fraco será a seu turno escravizado e maltratado, quer se trate de um indivíduo, quer de uma nação, ou de uma raça, porque os membros de uma individualidade coletiva são solidários assim no bem como no mal que em comum praticaram.

Ao passo que o Espiritismo dilata o campo da solidariedade, o materialismo o restringe às mesquinhas proporções da existência do homem, fazendo da mesma solidariedade um dever social sem raízes, sem outra sanção além da boa vontade e do interesse pessoal do momento. É uma simples teoria, simples máxima filosófica, cuja prática nada há que a imponha. Para o Espiritismo, a solidariedade é um fato que assenta numa lei universal da Natureza, que liga todos os seres do passado, do presente e do futuro e a cujas consequências ninguém pode subtrair-se. É esta uma coisa que todo homem pode compreender, por menos instruído que seja.

Quando todos os homens compreenderem o Espiritismo, compreenderão também a verdadeira solidariedade e, conseguintemente, a verdadeira fraternidade. Uma e outra então deixarão de ser simples deveres circunstanciais, que cada um prega as mais das vezes no seu próprio interesse e não no de outrem. O reinado da solidariedade e da fraternidade será forçosamente o da justiça para todos e o da justiça será o da paz e da harmonia entre os indivíduos, as famílias, os povos e as raças. Virá esse reinado? Duvidar do seu advento seria negar o progresso. Se compararmos a sociedade atual, nas nações civilizadas, com o que era na 1dade Média, reconheceremos grande a diferença. Ora, se os homens avançaram até aqui, por que haveriam de parar? Observando-se o percurso que eles hão feito apenas de um século para cá, poder-se-á avaliar o que farão daqui a mais outro século.

As convulsões sociais são revoltas dos Espíritos encarnados contra o mal que os acicata, índice de suas aspirações a esse reino de justiça pelo qual anseiam, sem, todavia, se aperceberem claramente do que querem e dos meios de consegui-lo. Por isso é que se movimentam, agitam, tudo subvertem a torto e a direito, criam sistemas, propõem remédios mais ou menos utópicos, cometem mesmo injustiças sem conta, por espírito, ao que dizem, de justiça, esperando que desse movimento saia, porventura, alguma coisa. Mais tarde, definirão melhor suas aspirações e o caminho se lhes aclarará.

Quem quer que desça ao âmago dos princípios do Espiritismo filosófico, que considere os horizontes que ele desvenda, as ideias a que dá origem e os sentimentos que desenvolve, não duvidará da parte preponderante que há de ter na regeneração, pois que, precisamente e pela força das coisas, ele conduz ao objetivo a que a Humanidade aspira: ao reino da justiça, pela extinção dos abusos que lhe hão obstado ao progresso e pela moralização das massas. Se os que sonham com a restauração do passado não entendessem assim, não se aferrariam tanto a esse sonho; deixá-lo-iam morrer tranquilamente, como há sucedido a muitas utopias. Isto, por si só, deverá dar que pensar a certos zombadores, fazendo-os ponderar que talvez haja aí alguma coisa mais séria do que imaginam. Mas, há pessoas que de tudo riem, que ririam mesmo de Deus, se o vissem na Terra. Também há os que têm medo de que aos seus olhos se apresente a alma que se obstinam em negar.

Qualquer que seja a influência que um dia o Espiritismo chegue a exercer sobre as sociedades, não se suponha que ele venha a substituir uma aristocracia por outra, nem a impor leis; primeiramente, porque, proclamando o direito absoluto à liberdade de consciência e do livre exame em matéria de fé, quer, como crença, ser livremente aceito, por convicção e não por meio de constrangimento. Pela sua natureza, não pode, nem deve exercer nenhuma pressão. Proscrevendo a fé cega, quer ser compreendido. Para ele, absolutamente não há mistérios, mas uma fé racional, que se baseia em fatos e que deseja a luz. Não repudia nenhuma descoberta da Ciência, dado que a Ciência é a coletânea das leis da Natureza e que, sendo de Deus essas leis, repudiar a Ciência fora repudiar a obra de Deus.

Em segundo lugar, estando a ação do Espiritismo no seu poder moralizador, não pode ele assumir nenhuma forma autocrática, porque então faria o que condena. Sua influência será preponderante, pelas modificações que trará às ideias, às opiniões, aos caracteres, aos costumes dos homens e às relações sociais. E maior será essa influência, pela circunstância de não ser imposta. Forte como filosofia, o Espiritismo só teria que perder, neste século de raciocínio, se se transformasse em poder temporal. Não será ele, portanto, que fará as instituições do mundo regenerado; os homens é que as farão, sob o império das ideias de justiça, de caridade, de fraternidade e de solidariedade, mas bem compreendidas, graças ao Espiritismo.

Essencialmente positivo em suas crenças, ele repele todo misticismo, desde que não se estenda esta denominação, como o fazem os que em nada creem, à crença em Deus, na alma e na vida futura. Induz, é certo, os homens a se ocuparem seriamente com a vida espiritual, mas porque essa é a vida normal, sendo nela que se têm de cumprir os nossos destinos, pois que a vida terrestre é transitória, passageira. Pelas provas que apresenta da realidade da vida espiritual, ensina aos homens a não atribuírem mais que relativa importância às coisas deste mundo, dando-lhes assim força e coragem para suportar com paciência as vicissitudes da vida terrena. Ensina-lhes que, morrendo, não deixam para sempre este mundo; que podem a ele voltar, a fim de aperfeiçoarem sua educação intelectual e moral, a menos que já estejam bastante adiantados para merecerem passar a um mundo melhor; que os trabalhos e progressos que realizem, ou para cuja realização contribuam, lhes aproveitarão, concorrendo para que melhorada se lhes torne a posição futura. Mostra-lhes dessa forma que é de todo o interesse deles não o desprezarem. Se lhes repugna voltar aqui, uma vez que possuem o livre-arbítrio, deles depende o fazerem o que é necessário a se tornarem habitantes de outros orbes; mas, que não se iludam sobre as condições que devem preencher para merecerem uma mudança de residência! Não será por meio de algumas fórmulas, expressas em palavras ou atos, que o conseguirão, sim por efeito de uma reforma séria e radical de suas imperfeições, modificando-se, despojando-se das paixões más, adquirindo dia a dia novas qualidades, ensinando a todos, pelo exemplo, a linha de proceder que levará solidariamente todos os homens à ventura, pela fraternidade, pela tolerância, pelo amor.

A Humanidade se compõe de personalidades, que constituem as existências individuais, e das gerações, que constituem as existências coletivas. Umas e outras avançam na senda do progresso, por variadas fases de provações que, portanto, são individuais para as pessoas e coletivas para as gerações. Do mesmo modo que, para o encarnado, cada existência é um passo à frente, cada geração marca um grau de progresso para o conjunto. É irresistível esse progresso do conjunto e arrasta as massas, ao mesmo tempo que modifica e transforma em instrumento de regeneração os erros e prejuízos de um passado que tem de desaparecer. Ora, como as gerações se compõem dos indivíduos que já viveram nas gerações precedentes, segue-se que o progresso delas é a resultante do progresso dos indivíduos.

Mas, quem demonstrará, poderão dizer, a existência de solidariedade entre a geração atual e as que a precederam, ou entre ela e as que lhe sucederão? Como se poderia provar que eu já vivi na 1dade Média, por exemplo, e que voltarei a tomar parte nos acontecimentos que se produzirão na sucessão dos tempos?

Nas obras fundamentais da Doutrina e na Revista, o princípio da pluralidade das existências já foi exaustivamente demonstrado, para que ainda nos detivéssemos aqui a demonstrá-lo. Nos fatos da vida cotidiana fervilham provas e uma demonstração quase matemática. Limitam-nos, pois, a concitar os pensadores a que atentem nas provas morais que decorrem do raciocínio e da indução.

Será, porventura, necessário vejamos uma coisa, para que nela acreditemos? Observando efeitos, não se pode adquirir a certeza material da causa?

Afora a da experiência, a única senda legítima que se abre para a investigação consiste em remontar do efeito à causa. A justiça nos oferece notabilíssimo exemplo desse princípio, quando empreende descobrir os indícios dos meios que serviram à perpetração de um crime, as intenções que se agregam à culpabilidade do malfeitor. Este não foi apanhado em flagrante e, contudo, é condenado por esses indícios.

A Ciência, que pretende caminhar tão só pela via da experiência, afirma todos os dias princípios que mais não são do que induções das causas por meio unicamente da observação dos efeitos.

Em geologia determina-se a idade das montanhas. Porventura assistiram os geólogos ao surto delas? Viram formar-se as camadas de sedimento que lhes determinam a idade?

Os conhecimentos astronômicos, físicos e químicos permitem se avaliem o peso dos planetas, suas densidades, seus volumes, a velocidade que os anima, a natureza dos elementos que os compõem; entretanto, os sábios não fizeram experiências diretas e é à analogia e à indução que devemos tão belas e preciosas descobertas.

Os homens de antanho, baseados nos testemunhos de seus sentidos, afirmavam ser o Sol que gira em torno da Terra. No entanto, esse testemunho os enganava e prevaleceu o raciocínio.

O mesmo se dará com os princípios que o Espiritismo sustenta, desde que se disponham a estudá-los, sem prevenções, e, então, a Humanidade entrará, real e rapidamente, numa era de progresso e de regeneração, porque, já não se sentindo isolados entre dois abismos, o desconhecido do passado e a incerteza do porvir, os indivíduos trabalharão com energia por aperfeiçoar e multiplicar os elementos da felicidade que tem de ser obra deles, porque reconhecerão que não é devida ao acaso a posição que ocupam no mundo e que eles próprios gozarão, no futuro e em melhores condições, do fruto de seus labores e de suas vigílias. É que o Espiritismo lhes ensinará que, se as faltas coletivamente cometidas são expiadas solidariamente, os progressos realizados em comum são igualmente solidários, princípio em virtude do qual desaparecerão as dissensões de raças, de famílias e de indivíduos e a Humanidade, livre das faixas da infância, avançará, célere e virilmente, para a conquista de seus verdadeiros destinos.


Allan Kardec.




Dezembro

Dezembro


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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Dezembro


Temas Relacionados:

Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Dezembro


Temas Relacionados:

Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Dezembro


Temas Relacionados:

Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Novembro

Novembro


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A vida futura já deixou de ser um problema. É um fato apurado pela razão e pela demonstração para a quase totalidade dos homens, porquanto os que a negam formam ínfima minoria, sem embargo do ruído que tentam fazer. Não é, pois, a sua realidade o que nos propomos demonstrar aqui. Fora repetir-nos, sem acrescentarmos coisa alguma à convicção geral. Admitido que está o princípio, como primícias, o que nos propomos é examinar-lhe a influência sobre a ordem social e a moralização, segundo a maneira por que é encarada.

As consequências do princípio contrário, isto é, do “nadismo”, já são por demais conhecidas e bastante compreendidas, para que se torne necessário desenvolvê-las de novo. Apenas diremos que, se estivesse demonstrada a inexistência da vida futura, nenhum outro fim teria a vida presente, senão o da manutenção de um corpo que, amanhã, dentro de uma hora, poderá deixar de existir, ficando tudo, nesse caso, inteiramente acabado. A consequência lógica de semelhante condição para a Humanidade seria concentrarem-se todos os pensamentos na incrementação dos gozos materiais, sem atenção aos prejuízos de outrem. Por que, então, haveria alguém de suportar privações, de impor-se sacrifícios? Por que haveria de constranger-se para se melhorar, para se corrigir de defeitos? Seria também a absoluta inutilidade do remorso, do arrependimento, uma vez que nada se deveria esperar. Seria, afinal, a consagração do egoísmo e da máxima: O mundo pertence aos mais fortes e aos mais espertos. Sem a vida futura, a moral não passa de mero constrangimento, de um código convencional, arbitrariamente imposto; nenhuma raiz teria ela no coração. Uma sociedade fundada em tal crença só teria por elo, a prender-lhe os membros, a força e bem depressa cairia em dissolução.

Não se objete que, entre os negadores da vida futura, há pessoas honestas, incapazes de cientemente causar dano a quem quer que seja e susceptíveis dos maiores devotamentos. Digamos, antes de tudo, que, entre muitos incrédulos, a negação do porvir é mais fanfarronada, jactância, orgulho de passarem por espíritos fortes, do que resultado de uma convicção absoluta. No foro íntimo de suas consciências, há uma dúvida a importuná-los, pelo que procuram eles atordoar-se. Não é, porém, sem dissimulação que pronunciam o terrível nada, que os priva do fruto de todos os trabalhos da inteligência e despedaça para sempre as mais caras afeições. Muito dos que mais forte deblateram são os primeiros a tremer ante a ideia do desconhecido; por isso mesmo, quando se lhes aproxima o momento fatal de entrarem nesse desconhecido, bem poucos são os que adormecem, no derradeiro sono, na firme persuasão de que não despertarão algures, visto que a Natureza jamais abdica dos seus direitos.

Afirmamos, pois, que, na maioria dos incrédulos, a incredulidade é muito relativa, isto é, que, não lhes estando satisfeita a razão, nem com os dogmas, nem com as crenças religiosas, e nada tendo encontrado, em parte alguma, com que enchessem o vazio que se lhes fizera no íntimo, eles concluíram que nada há e edificaram sistemas com que justificassem a negação. Não são, conseguintemente, incrédulos, senão por falta de coisa melhor. Os absolutamente incrédulos são raríssimos, se é que existem.

Uma latente e inconsciente intuição do futuro é, portanto, capaz de deter grande número deles no declive do mal e uma imensidade de atos se poderiam citar, mesmo da parte dos mais endurecidos, testificantes da existência desse sentimento secreto que os domina, a seu mau grado.

Cumpre também dizer que, seja qual for o grau da incredulidade, o respeito humano é o que torna reservadas as pessoas de certa condição social. A posição que ocupam os obriga a uma linha de proceder muito discreta; temem acima de tudo a desconsideração e o desdém que, fazendo-os perder, por decaírem da categoria em que se encontram, as atenções do mundo, os privariam dos gozos de que desfrutam; se carecem de um fundo de virtudes, pelo menos têm destas o verniz. Mas, aos que nenhuma razão se apresenta para se preocuparem com a opinião dos outros, aos que zombam do “que dirão”, e não há contestar que esses formam a maioria, que freio se pode impor ao transbordamento das paixões brutais e dos apetites grosseiros? Em que base assentar a teoria do bem e do mal, a necessidade de eles reformarem seus maus pendores, o dever de respeitarem o que pertence aos outros, quando eles próprios nada possuem? Qual pode ser o estímulo à honradez, para criaturas a quem se haja persuadido que não passam de simples animais? A lei, respondem, aí está para contê-los; mas, a lei não é um código de moral que toque o coração; é uma força cuja ação eles suportam e que iludem, se o podem. Se lhe caem sob o guante, isso é por eles tido como resultado de má sorte ou de inabilidade, a que tratam de remediar na primeira ocasião.

Os que pretendem que os incrédulos têm mais mérito em fazer o bem, por não esperarem nenhuma recompensa na vida futura, em que não creem, se valem de um sofisma igualmente mal fundado. Também os crentes dizem que é pouco meritório o bem praticado com vistas em vantagens que possam colher. Vão mesmo mais longe, porquanto se acham persuadidos de que o mérito pode ser completamente anulado, tal o móvel que determine a ação. A perspectiva da vida futura não exclui o desinteresse nas boas obras, porque a ventura que elas proporcionam está, antes de tudo, subordinada ao grau de adiantamento moral do indivíduo. Ora, os orgulhosos e os ambiciosos se contam entre os menos aquinhoados. Mas, os incrédulos que praticam o bem são tão desinteressados como o pretendem? Será que, nada esperando do outro mundo, também deste nada esperem? O amor-próprio não tem no caso a sua parte? Serão eles insensíveis aos aplausos dos homens? Se tal acontecesse, estariam num grau de perfeição rara e não cremos que haja muitos que a tanto sejam induzidos unicamente pelo culto da matéria.

Objeção mais séria é esta: Se a crença na vida futura é um elemento moralizador, como é que aqueles a quem se prega isso desde que vêm ao mundo são igualmente tão maus?

Primeiramente, quem nos diz que sem isso não seriam piores? Não há duvidar, desde que se considerem os resultados inevitáveis da popularização do “nadismo”. Não se comprova, ao contrário, observando-se as diferentes graduações da Humanidade, desde a selvajaria até a civilização, que o progresso intelectual e moral vai à frente, produzindo o abrandamento dos costumes e uma concepção mais racional da vida futura? Essa concepção, no entanto, por muito imperfeita, ainda não pode exercer a influência que necessariamente terá, à medida que for mais bem compreendida e que se adquiram noções mais exatas sobre o futuro que nos está reservado.

Por muito sólida que seja a crença na imortalidade, o homem não se preocupa com a sua alma, senão de um ponto de vista místico. A vida futura, definida com extrema falta de clareza, só muito vagamente o impressiona; não passa de um objetivo que se perde muito ao longe e não um meio, porque a sorte lhe está irrevogavelmente assinada e em parte alguma lha apresentam como progressiva, donde se conclui que aquilo que formos, ao sair daqui, sê-lo-emos por toda a eternidade. Aliás, o quadro que traçam da vida futura, as condições determinantes da felicidade ou da desventura que lá se experimentam, longe estão, sobretudo num século de exame, como o nosso, de satisfazer completamente à razão. Acresce que ela não se prende muito diretamente à vida terrestre, nenhuma solidariedade havendo entre as duas, mas, antes, um abismo, de maneira que aquele que se preocupa principalmente com uma das duas quase sempre perde a outra de vista.

Sob o império da fé cega, essa crença abstrata bastara às inspirações dos homens que, então, se deixavam conduzir. Hoje, porém, sob o reinado do livre-exame, eles querem conduzir-se por si mesmos, ver com seus próprios olhos e compreender. Aquelas vagas noções da vida futura já não estão à altura das novas ideias e já não correspondem às necessidades que o progresso criou. Com o desenvolvimento das ideias, tudo tem que progredir em torno do homem, porque tudo se liga, tudo é solidário em a Natureza: ciências, crenças, cultos, legislações, meios de ação. O movimento para a frente é irresistível, porque é lei da existência dos seres. O que quer que fique para trás, abaixo do nível social, é posto de lado, como vestuário que se tornou imprestável e, finalmente, arrastado pela onda que se avoluma.

O mesmo acontece com as ideias pueris sobre a vida futura, com que os nossos pais se contentavam; persistir hoje em impô-las seria propagar a incredulidade. Para que a opinião geral a aceite e para que ela exerça sua ação moralizadora, a vida futura tem que ser apresentada sob o aspecto de coisa positiva, de certo modo tangível e capaz de suportar qualquer exame, satisfazendo à razão, sem nada deixar na sombra. No momento em que a precariedade das noções sobre o porvir abria a porta à dúvida e à incredulidade, novos meios de investigação foram conferidos ao homem, para penetrar esse mistério e fazer-lhe compreender a vida futura na sua realidade, em seu positivismo, nas suas relações íntimas com a vida corpórea.

Por que, em geral, se cuida tão pouco da vida futura? Trata-se, no entanto, de uma atualidade, pois que todos os dias milhares de homens partem para esse destino desconhecida Tendo cada um de nós de partir por sua vez e podendo a hora da partida soar de um momento para outro, parece natural que todos se preocupem com o que sucederá. Por que não se dá isso? Precisamente porque é desconhecido o destino e porque, até ao presente, ninguém tinha meio de conhecê-la A Ciência, inexorável, o desalojou dos lugares onde o tinham limitado. Está ele perto? Está longe? Acha-se perdido no infinito? As filosofias de antanho nada respondem, porque nada sabem a respeito. Diz-se então: “Será o que for.” Indiferença.

Ensinam-nos que seremos felizes ou infelizes, conforme houvermos vivido bem ou mal. Mas, isso é tão vago! Em que consistem essa felicidade e essa infelicidade? O quadro que de uma e outra nos traçam tão em desacordo está com a ideia que fazemos da justiça de Deus, tão cheio de contradições, de inconsequências, de impossibilidades radicais, que involuntariamente a dúvida se apresenta, se não a incredulidade absoluta. Ao demais, pondera-se que os que se enganaram com relação aos lugares indicados para moradas futuras também podem ter sido induzidos em erro, quanto às condições que estatuem para a felicidade e para o sofrimento. Aliás, como seremos nesse outro mundo? Seremos seres concretos ou abstratos? Teremos uma forma ou uma aparência? Se nada de material tivermos, como poderemos experimentar sofrimentos materiais? Se os ditosos nada tiverem que fazer, a ociosidade perpétua, em vez de uma recompensa, será um suplício, a menos que se admita o Nirvana do budismo, que não é mais desejável do que aquela ociosidade.

O homem não se preocupará com a vida futura, senão quando vir nela um fim claro e positivamente definido, uma situação lógica, em correspondência com todas as suas aspirações, que resolva todas as dificuldades do presente e em que não se lhe depare coisa alguma que a razão não possa admitir. Se ele se preocupa com o dia seguinte, é porque a vida do dia seguinte se liga intimamente à vida do dia anterior uma e outra são solidárias; ele sabe que do que fizer hoje depende a sua posição amanhã e que do que fizer amanhã dependerá a sua posição no dia imediato e assim por diante.

Tal tem de ser para ele a vida futura, quando esta não mais se achar perdida nas nebulosidades da abstração e for uma atualidade palpável, complemento necessário da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corporal. Quando vir o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e, sobretudo, quando compreender a reação do futuro sobre o presente; quando, em suma, verificar que o passado, o presente e o futuro se encadeiam por inflexível necessidade, como o ontem, o hoje e o amanhã na vida atual, oh! então suas ideias mudarão completamente, porque ele verá na vida futura não só um fim, como também um meio; não é um efeito distante, mas atual. Então, igualmente, essa crença exercerá sem dúvida, e por uma consequência toda natural, ação preponderante sobre o estado social e sobre a moralização da Humanidade.

Tal o ponto de vista donde o Espiritismo nos faz considerar a vida futura.


Allan Kardec.



Dezembro

Dezembro


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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



Dezembro


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Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes um acessório dos saraus.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas, compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa frase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguireis, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.

Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seu Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiados febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pode o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfará imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lidima acepção do termo, visto como aquele que desertasse por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão”?; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêm no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamento é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. – Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!…

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!… Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de não nos enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas, qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las, ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem.

Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!…

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.


Allan Kardec.


Observação. – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Parece-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.


(Paris, novembro de 1869.)

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra de minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem; mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas, ah! quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!… Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que triunfem definitivamente.

Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a doutrina periclitará. Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.


Allan Kardec.



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