Além da Morte

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CAPÍTULO 20

A LOUCA

Eu fora informada de que naquela noite seria admitida em nossa Enfermaria, na Seção dos dementes, uma jovem Senhora, amparada pela Caravana dos Mensageiros da Cruz após visita às regiões inferiores.

Aguardei o ensejo confiante na possibilidade que me surgia de oferecer os meus cuidados e assistência fraterna à doente.

Altas horas da noite, ouvi parar à porta o veículo que conduzia os enfermos. Corri para prestar auxílio e deparei-me com uma antiga carruagem, toda fechada, puxada por quatro corcéis brancos, de grande proporção.

Enfermeiros prestimosos aguardavam, igualmente, os doentes anunciados. A movimentação se fez grande, momentaneamente.

Ajudada por Adrião, aproximei-me da Benfeitora Zélia, que administrava com grande serenidade, transmitindo seguras orientações, obedecidas sem discussão.

Entre os doentes conduzidos para as Seções especiais do pavilhão em que eu me hospedava, não tive dificuldade em descobrir aquela de quem me falaram os amigos, com desvelada ternura.

Dois moços conduziram-na em padiola ao leito adredemente preparado. O semblante pálido e suado trazia marcas de cruel agitação. Entretanto, parecia desmaiada. Poderia ter vivido apenas 40 anos, quando encarnada.

Acomodada com cuidado no leito acolhedor e alvo, a paciente permanecia sem sentidos.


Ao acenar-me com significativa expressão da face, aproximei-me da Administradora, que me concitou, bondosa:

— Este momento representa sua oportunidade de integrar-se nos serviços de nossa Casa. Como você sabe, os mais singelos movimentos de auxílio transformam-se em luz, em nosso próprio caminho evolutivo. Não adie a hora que se lhe depara afortunada e vantajosa. Informe ao Adrião que Matilde requer assistência especial, logo lhe seja possível...


E dirigindo-se a servidores mais experientes, acrescentou, aludindo ao meu trabalho:

— Matilde é a sua oportunidade de recomeço.

Sorriu a Benfeitora e, felicitada pela grande oportunidade, agradeci, reconhecida, ao Pai Celestial.

Desde há algum tempo, habituara-me aos valiosos serviços de prestar informações sobre doentes, recados de urgência de uma enfermaria a outra. Como as salas de assistência fossem próximas, dispostas em alas retangulares, entremeadas de jardins, estava habilitada a acercar-me de várias delas, onde me dedicava aos misteres do asseio.

Sabendo que encontraria o incansável passista nas câmaras de repouso dos obsidiados em recuperação, não tive dificuldades em localizá-lo.

Notificado da necessidade da sua presença e dos motivos que o chamavam, o esclarecido e constante amigo denotou preocupação no semblante e, algo apressado, pôs-se a caminho, seguindo-lhe eu empós.

— Matilde — informou-me, prestimoso — é um caso que requer cuidados constantes. Tive ensejo de visitá-la nas regiões em que se demorava e inteireime da sua situação, por informações de amigos interessados no seu despertar. Confiemos, entretanto, e não nos deixemos desanimar. Quando chegamos, a enferma apresentava-se fortemente inquieta por convulsões que a sacudiam incessantemente, contorcendo os lábios e agitando o corpo, como se estivesse dominada por visões terrificantes.


A incansável Zélia, que naquele momento chegava, como se desejasse fazer algo, sem mais delonga rogou-nos atenção:

—Unamo-nos mentalmente, suplicando as santas dádivas em favor da infeliz que ora aporta, de retorno, ao lar generoso.

Em breves minutos, as lágrimas que se haviam tornado de há muito minhas constantes companheiras, escorriam serenas ao beneplácito da prece silenciosa. Era a primeira vez que participava de um serviço direto no ministério do passe e não me pude furtar à evocação do meu próprio caso, há mais de um ano, quando, então, recebera o auxílio magnético do colaborador abnegado. E sob a recordação das minhas necessidades, supliquei ao Mestre da Compaixão pela irmãzinha, vítima de si mesma, ali exausta e desnorteada.

A enferma, que ainda se debatia, foi-se acalmando lentamente sob o calor brando da prece. Bagas de suor afloravam-lhe no rosto, colando os cabelos desgrenhados à testa larga. Os olhos dilatados pareciam desejar romper os diques das órbitas que os detinham. Todavia, indicavam não perceber o recinto. Apresentavam-se apavorados, imersos em longínquas, terríveis fixações. De quando em quando, toda a sua organização perispiritual, muito densa, era acometida de tremores nervosos descontrolados.

Adrião, em prece muda, mergulhava nas nascentes fecundas do Bem, aspirando o perfume do amor que o cobria todo como veste de tênue luz.

Aproximando-se com inexcedível ternura, qual mãe desvelada junto ao berço onde dormita o filho, distendeu os braços e, movimentando energias que fluíam de seus músculos, deu início à aplicação dos passes magnéticos. Lenta, ritmada e seguidamente suas mãos escorriam da região frontal até os membros inferiores da paciente. Em constante ritmia aumentou a velocidade dos movimentos longitudinais.

Subitamente, a enferma começou a gemer, com voz sumida, enquanto, através da sua boca semi-aberta, escorria uma massa fluida nauseante e escura que impregnou o recinto de odores fétidos.

Os movimentos do passe continuaram ininterruptos, renovando as extrações de energia deletéria que combalia a sofredora em profundo estado de miséria vital. À medida que o socorro continuava generoso, foi-se atenuando a coloração e o aspecto da exalação que, após alguns minutos, se diluía em vapor pardacento.


A irmã Zélia, desejando certamente elucidar-me, explicou à meia-voz:

— São energias longamente condensadas pela alma desavisada. Como é sabido, cada alma respira o clima mental da região em que sintoniza o pensamento. Nossa pobre amiga, embora forrada, a princípio, das melhores intenções, não se pôde guardar àdistância das vicissitudes humanas, em cujo fogo de prazeres empenhou as melhores possibilidades de reajustamento com a lei de reparações.


E dando curso à exposição, prosseguiu:

— A Terra não é um Éden, bem o reconhecemos. Todavia, é uma abençoada oficina em cujos cômodos exercitamos as tarefas de evolução. Quando ali reencontramos as possibilidades de prazer, arrebentamos as cadeias do dever e imanamo-nos aos grilhões dos vícios que embriagam e aniquilam. Para libertar-nos desses males, as boas intenções ajudam, mas somente quando se fazem acompanhar das boas ações.


E depois de breve meditação, deu curso ao ensinamento:

— Sob a assistência das forças positivas de Adrião, o organismo perispiritual foi sacudido e toda a organização espiritual da enferma está sendo visitada por energia salutar que, à semelhança do que ocorre na fagocitose do vaso físico, terminará por vencer os miasmas mentais acumulados, que lhe prejudicam o reequilíbrio psíquico.


Calou-se a Benfeitora. Pude ouvir, entretanto, a voz do passista, concitando a socorrida ao brando repouso:

— Durma!... Durma!... Esqueça!... Procure esquecer!... Não receie!... Não receie!... Durma!... Sono reparador e calmante!... visitar-lhe-á, minha irmã... Não pense mais nada!... Esqueça!... É necessário esquecer.

Aquela voz calma e lenta parecia possuir mágico condão, porquanto, em breves momentos, com a respiração acalmada, a doente adormeceu, cerrando, por fim, as pálpebras.

Estava encerrado o serviço assistencial do instante, mas novos recursos seriam necessários para atender, devidamente, àquele Espírito aflito, sob nosso olhar.


Adrião sorriu, com simplicidade, como a desculpar-se e ponderou:
— Não nos esqueçamos da Caridade do Dispensador infatigável que não cessa de atender-nos em todos os momentos. O caso que temos no roteiro de deveres novos é bem um exemplo de alma naufragada nas procelas da carne, em flagrante desatenção às instruções do Nauta Divino. Apesar disso, Sua misericórdia, em nome do Ilimitado, não a esqueceu e, vigilante incansável, distendeu braços protetores, sem que a aflita sequer o houvesse suplicado. "Repousará, um pouco — concluiu —, apagando momentaneamente, a chama da aflição que a devora, para despertar, logo mais, vulcão tumultuado em plena erupção. " E como notasse o espanto no meu rosto, acrescentou ainda:

— Não há que estranhar, minha irmã. Não nos encontramos numa Gruta de Milagres, mas numa Casa Hospitalar dedicada à recuperação e ao reequilíbrio. O remédio aplicado diminui a dor sem eximir o doente de prestar contas com a consciência culpada. Felizmente não existe, além da morte, a quitação indébita, mediante favoritismo especial para uns, em detrimento de outros, filhos todos, igualmente, do mesmo Pai. Cada espírito sofre depois da desencarnação a má Pedagogia a que se ajustou enquanto na Escola Terrena, carregando a canga a que se jungiu nos vários compromissos com a vida.


Talvez, desejando alongar-se para esclarecer melhor, aduziu humilde:

— Despertamos sempre com a angelitude ou com o satanismo que vitalizamos em pensamento e ações. Cada alma é o que pensa. O Céu e o Inferno são construções pessoais de cada ser. E valiosa a boa intenção, de muitos, todavia, a construção eterna não é uma resultante somente do ensejo, mas principalmente do trabalho ativo.


E com firmeza:

— Repomos na Criação o que tiramos da vida. Na vida universal tudo são permutas, em incessantes transformações evolutivas. Não existe repouso, vácuo, silêncio. Se tal houvesse, significaria o caos do próprio Universo. Em toda parte, encontramos vida exuberante cantando as glórias do Supremo Construtor, exaltando Sua obra.

A emoção embargava-me. Na minha simplicidade mental, jamais me ocorreram semelhantes ideias. Nunca me lembrara de procurar o Pai Doador na obra gloriosa que nos felicita a eternidade da vida. E lembrei-me daqueles que humanizam o Senhor, apiedando-me da sua ingenuidade.

— O pão que serve a mesa — ponderou a irmã Zélia até então silenciosa e atenta — saiu do lodo da terra em milagroso sacrifício do grão de trigo que se deixou morrer. Vida: transformação, evolução!

Os conceitos hauridos junto à recém-chegada inundaram-me de paz. A esperança tão desconhecida é, sem alarde, alguma filha da fé religiosa, legítima. A fé é resultado do conhecimento, dileta amiga da razão. Quando não podemos raciocinar, aceitamos, mas não cremos. Daí a assertiva do Mestre da Codificação do Espiritismo: "Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade".

Quanto material, Deus meu! — pensava.

Como o Espiritismo é realmente o grande consolador dos espíritos! E me deixava arrebatar pela emoção de constatar que essa Doutrina, tão consoladora, liberta a alma e a prepara para enfrentar-se a si mesma. E recordava do enunciado de Jesus quanto ao Consolador prometido: "Muita coisa que ainda não podeis supor, ele vos ensinará. " As horas avançam lentamente e a madrugada incendiava o céu que se ruborizava aos raios do Sol nascente.

Oferecera-me para velar, atentamente, a nova companheira, tarefa a que doava os melhores cuidados. Do posto de observação, acompanhei as orações do nascente, invadida de doces consolações. A natureza jamais me parecera tão bela e, dentro de mim mesma, coragem alentadora falava-me em promessas de ânimo.

A prece envolvia-me em brandas vibrações e a lembrança dos companheiros encarnados, que sempre me torturava, não dava amargo sabor naquele momento. Fitando as nuvens a galoparem além, não vi o momento em que o lúcido Adrião penetrara o recinto.

— Planejar o bem no futuro é viver o bem presente — falou-me, tocandome o ombro, delicadamente.

Assustei-me e, ao fitar-lhe o rosto, não pude deixar de emocionar-me.

— Minha irmã — acrescentou —, Jesus é Vida e, como tal, deseja-nos ditosos e diligentes. A alegria é mensagem de saúde e paz. Rejubile-se, pois, com o Senhor e avance. Todas as grandes tarefas começam em longas jornadas de planificação mental. Hoje pensamos e amanhã realizamos. Mente e mãos, pensamento e ação, cérebro e coração na obra de Deus, em favor da nossa redenção, eis o programa. Cristo é o Roteiro.

Ao ouvir o moço Adrião, eu sempre ficava extasiada. Escutando-o, retornava ao passado e evocava as preleções, através das quais fizera o meu ingresso na Doutrina da Consolação e da Esperança.

Nesse momento, a irmã Zélia chegou ao recinto e acercou-se de nós. Notamos que a enferma movimentava-se inquieta, no leito.


Ergueu-se repentinamente com os olhos esgazeados pelo pavor, e pôs-se a gritar, com evidentes sinais de loucura:

— Os vampiros! Socorro! Perseguem-me os lobos! Acudam-me, por Deus!

Antes, porém, de atirar-se em disparada, jáos nossos amigos dela se acercaram, detendo-a com palavras de conforto, enquanto Adrião lhe aplicava passes calmantes.


A custo repousou, embora inquieta, tremendo em soluços. Notando-me a perturbação e o receio, o amigo tranquilizou-me:

—Mais tarde você compreenderá. No momento, ore e ajude!

Acalmada a doente, estabeleceu-se que às 20 horas, com auxílio do dr. Cléofas, prestar-se-ia assistência mais específica.



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