Além da Morte

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CAPÍTULO 30

DÍVIDA E RESGATE

Às vinte e três horas e trinta minutos, o médium procurou o leito e, depois das orações habituais, antes de adormecer, procurou ligar-se ao Abençoado Mestre.

O Instrutor dirigente, Élsior, aplicando-lhe passes hipnóticos, procedeu-lhe ao desdobramento, através do sono.

Jovial e comunicativo, saudou-nos efusiva-mente.

Decorridos alguns minutos, nós o tínhamos ao lado.

— Apressemo-nos — sugeriu o Instrutor. — O dever nos aguarda!

Rapidamente retornamos ao Núcleo, conduzindo o companheiro, temporariamente liberto. O recinto apresentava agora outro aspecto. As cadeiras acomodavam Espíritos atentos e o ambiente era de profundo respeito. Todos se encontravam mergulhados na oração, compenetrados das responsabilidades que lhes pesavam. Uma mesa, algo afastada dos assistentes, cercava-se de 10 cadeiras, onde Entidades trabalhadoras igualmente mergulhavam a mente em meditação e recolhimento. As paredes da sala ofereciam, na sua simplicidade, brancura invulgar.

O Instrutor Élsior conduziu o médium a uma das cadeiras isoladas junto ao leito asseado onde repousava um Espírito de semblante implacável, em sono torturado.

— É o vingador de jovem que milita no Centro —informou-me a irmã Zélia —, e que vai ser atendido, logo mais.

Decorridos breves minutos, deu entrada no recinto uma jovem, igualmente desdobrada pelo sono, apresentando no semblante os caracteres evidentes da obsessão acentuada que a consumia. Vinha assistida por dois devotados amigos da nossa Esfera.

Encaminhada carinhosamente ao assento vazio, conservava no rosto a mesma expressão de receio, embora fortemente atendida pelos recursos magnéticos dos assistentes. Não parecia ter noção do que se passava, alheada a tudo.

Uma nova reunião mediúnica ia ter lugar.

Permaneci ao lado da irmã Zélia, entre os assistentes.

Depois de expressiva oração proferida pelo Instrutor Élsior, a doente esboçou, algo serena, uma expressão de lucidez, identificando, lentamente, o recinto.

Era o Centro familiar, onde, horas antes, estivera. A alegria delineou no seu rosto macerado um sorriso de contentamento. Ao identificar o médium, acenoulhe discretamente e indagou-lhe da razão de tudo aquilo.

O médium Marcos, atento às orientações do Instrutor que a jovem não percebia, informou-lhe tratar-se de assistência ao seu perseguidor, atendendo a ordem de natureza superior. Rogava-lhe, por isso mesmo, calma e confiança, coragem e compaixão utilizando os valores da prece para o êxito da tarefa. Afirmou-lhe a presença de devotados companheiros da esfera espiritual superior, tranquilizando-a quanto à ausência de perigos, durante a entrevista.

— Desde há muito — continuou solícito, assistido de perto pelo amoroso companheiro desencarnado — fazia-se imperioso este empreendimento para encaminhar o algoz à esfera física, em trabalho de reajustamento.

Depois de prepará-la com delicadeza e cuidado, o Instrutor Élsior fez-se notado e, apresentado pelo médium, concluiu, com esclarecimentos oportunos e justos, a realização significativa que ia desenvolver, tocando o centro da visão da enferma e dilatando-lhe a percepção visual do recinto.

O semblante de Ângela desenhou a alegria que lhe surpreendeu a alma sofredora. Depois, foi-lhe mostrado, em sugestão hipnótica entorpecente, o infeliz perturbador que lhe assediava a casa mental.

Realizados os cuidados indispensáveis, assistentes calmos e cônscios dos seus deveres aplicaram passes dispersivos sobre o obsessor, que despertou, a princípio modorrento, recuperando a expressão fria e impenitente, sob imprecações lastimáveis.

Desafiando as forças do Bem e deblaterando, irresponsável, apresentava a outra face do homem, mais fera que criatura, acompanhando as palavras com gestos de profunda revolta.

Instado pela palavra inspirada do medianeiro e sob recursos poderosos, acalmou-se para o reencontro com aquela que lhe sofria a ação corrosiva e prejudicial, filha do ódio incessante.


Ao se defrontarem, as duas almas, vítima e algoz recíprocos, a jovem apresentava-se amedrontada. Palor e lágrimas cobriam-lhe o rosto, como se reconhecesse, subitamente, naquele adversário "gratuito", alguém muito amado, mergulhado nas águas turvas do ódio e da rebeldia. O perseguidor, porém, gargalhando, fitou-a friamente, indagando, impiedoso:

— Choras? Reconheces-me?

— Perdoa-me! — suplicou de joelhos, num movimento instintivo.

Como se a mente de Ângela fosse sacudida por um vendaval que a fizesse recuar no tempo, transportou-se até a Casa dos Braganças, nos agitados dias da transmigração da Família Real lusitana para o Brasil, no século XIX.

— Perdoar-te? Jamais!... Nunca te perdoarei — rugiu o inditoso perseguidor. — Embora reencarnada, fugindo de mim e da minha justiça, desertora da honra que és, consegui, após exaustivos esforços, localizar-te e nunca mais te deixarei.

— Tem piedade! — suplicou a infeliz.

— E a tiveste para mim, para o meu lar, maldita? —retrucou.

— Pensei — respondeu amargurada — que tivesses morrido nas ruas de Lisboa, quando da chegada das tropas de Junot... Esperei tanto por noticias tuas!... Nunca mais me escreveste...


A voz morreu-lhe nos soluços. E, depois de muito esforço, continuou:

— A fome, a miséria, a necessidade de viver... Reconheço que deveria, mil vezes, ter morrido a prevaricar. No entanto, jovem e só, naqueles tormentosos dias de sobressalto, não tive outro recurso...

— Desavergonhada! — reagiu cruel. — Se pensas que me comovem tuas lamúrias, dá-te de lado, arreda-te porque não o conseguirás. Jurei vingar-me e vingar-me-ei. A nódoa com que me manchaste, lavá-la-ei, através dos tempos, com tuas lágrimas, até secar a fonte do teu choro e te arderes de agonia, como eu próprio, devorado pelo desespero.

— Esquece! — balbuciou, aniquilada. — Pelo amor de Deus, esquece!

Verifiquei que o Instrutor Élsior e os Assistentes Espirituais sustentavam a jovem, ao mesmo tempo em que procuravam transmitir compaixão ao desalmado infeliz.

Ao mesmo momento quase, atendida pelo Irmão Élsior, Ângela pôs-se a orar. Suas palavras comoventes confessavam o erro criminoso e o resgate punitivo, nas vias da loucura, fruto dos remorsos e dos excessos que a haviam conduzido ao túmulo na segunda metade do século passado.

À medida que suas palavras se orvalhavam dos puros desejos de reabilitação, oferecia-se a ajudar o ser amado de ontem, mesmo que o sacrifício lhe fosse o preço do recomeço no Bem.

Desarvorado, tocado no imo pelo amor ainda latente, embora empanado pela revolta, Antônio desejou fugir. Semilouco, agredia-se, proferindo expressões de desesperado.

Ao impacto magnético de energias bem dirigidas, voltou a adormecer, sendo conduzido à incorporação no aparelho psicofônico do médium presente, em cuja organização, com a memória parcialmente adormecida, ouviu a palavra sábia do lúcido Instrutor, quanto ao futuro na carne, em breves tempos.

Ângela voltaria a recebê-lo, não como esposo, mas na condição de filho. Não filho da carne, mas do coração, amargurando os próprios dias na Terra, sob o testemunho de suspeitas cruéis em sua honorabilidade de moça.

Depois de doutrinado com carinho e removido para a Colônia preparatória da reencarnação, em breve a reunião foi encerrada e reconduzidos, às esferas habituais, o médium e a jovem, participantes de tão importantes acontecimentos.

Um mundo de indagações fervilhava no meu cérebro ávido, que, entretanto, não ousava inquirir.


Encerrada a reunião, o Instrutor, aproximando-se da irmã Zélia, esclareceu, delicado:

— Nosso Antônio reencarnará em cidade próxima, dentro de alguns meses. Ângela encontrar-se-á de licença para tratamento de saúde, na mesma ocasião, procurando repouso para os seus males íntimos. Será conduzida, através de uma série de fatores que não vale a pena aqui enunciar, ao lar do recém-nato, prometendo guardá-lo, ante o leito mortuário da mãezinha tuberculosa e decaída.


E depois de breve pausa:

— Trá-lo-á para a Capital, sofrendo, em consequência do seu gesto de caridade, renúncia e reparação do passado, o estigma da dúvida, por parte de muitos, quanto à origem da criança...


E arrematando com segurança, concluiu:

— É da Lei. Quantos a desrespeitam sofrer-lhe-ão o reajuste. A dívida clama pelo resgate, através dos tempos.




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