Espelhos da Alma: Uma Jornada Terapêutica
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SENTENÇA CORRETA
Na exuberância da juventude, para Marcelo começaram os prognósticos sombrios.
Aos dezesseis anos, tinham início as dores musculares nos membros inferiores, que, não obstante contínuo tratamento e crescentes cuidados, se converteram, paulatinamente, em paralisia tormentosa.
Ele, porém, não se conformava.
Atado à cadeira de rodas por vigorosas fibras, que lhe impediam a queda do corpo débil, estremunhado, rebelava-se, blasfemava em surdina.
Ante a resignação e o otimismo materno, como a instâncias desse coração santificado orou, um dia, suplicando a ajuda de Deus...
A prece leniu-o, emocionando-o, inspirando-o à confiança.
Não se deu conta do tempo coloquial com o Senhor e adormeceu.
Sonhou que alguém lhe falava com infinita ternura:
—Sou o teu anjo guardião.
Atendo à tua súplica em nome do Senhor da Vida. "Vem comigo".
Sem saber explicar-se como, sentiu-se deslizar no ar, livre dos impedimentos orgânicos, deslumbrando-se diante da paisagem em cor e beleza. Subitamente passou a seguir um grupo de mercenários guerreiros, comandados por um jovem déspota que marchava à frente. Não obstante, sentiu-se atraído magneticamente pelo chefe, acompanhou, estarrecido, as atrocidades que praticava ao adentrar-se por aldeias indefesas, destroçando homens, mulheres, crianças e velhinhos alquebrados, com manifestas expressões de sadismo em que externava a ferocidade que o minava...
Sem poder fugir às horríveis desgraças, mudaram-se as cenas e seguiu o biltre a uma sala de torturas, onde manipulava ferretes em brasa, acionando a roda com que despedaçava membros vencidos, em fúria insana, a fim de arrancar arbitrárias e criminosas confissões...
Ato contínuo, viu a estranha personagem em calabouço infecto extorquindo informes de homens esquálidos, famélicos para os quais a morte constituiria alívio abençoado...
Como se repetissem as ações criminosas e se sucedessem os cenários de horror, suplicou forças a fim de libertar-se do pesadelo.
Voltou a escutar a voz generosa:
—Se te fosse permitido arbitrar em nome dessas vítimas inermes, que padecem tais crueldades, que sentença decretarias para esse ser monstruoso e infeliz destruidor de vidas?
Sem titubeio, nauseado e dorido, com o espírito referto de piedade pelas vítimas, enunciou:
—Fá-lo-ia beber até a última gota a taça de sangue e fezes que impôs aos outros. "Aplicar-lhe-ia a pena de ter as pernas ceifadas e as mãos amputadas, os olhos vazados e a garganta impossibilitada de murmurar, sequer por piedade... " "Somente assim ele se recuperaria ante a consciência da Divina Justiça".
—Dizes bem.
– Redarguiu-lhe o Guia. "A misericórdia de Deus, no entanto, é benigna e generosa.
Esse homem inditoso e insaciável no mal foste tu. " "Acabas de lavrar a tua sentença, aquela mediante a qual expunges.
Tem bom ânimo".
Incontinente, despertou e suando em abundância, com a mente lúcida enriquecida pelas reminiscências do parcial desdobramento espiritual pelo sono.
Não mais se rebelou.
Esforçou-se.
Voltou a estudar com esforços inauditos.
Concluiu advocacia, fez-se Magistrado e exara nos processos que hoje lhe chegam, na condição de Juiz, sentenças de sabedoria que são poemas de edificação e metodologia de retificação para os que se arrojam pelos despenhadeiros do crime.
Sabe que a enfermidade progressiva toma-lhe a vida orgânica entre acerbas dores e acúleos potentes, que logo mais culminará em desencarnação.
Não se abate, porém...
Utiliza o tempo a resgatar pela dor e a servir pela lei e pelo amor, consciente da justeza das Leis Soberanas.
—Sei que retornarei - assevera; o rosto se ilumina num sorriso em que a tristeza por momento tisna a alegria - e acalento ganhar de volta os movimentos, a fim de poder correr na direção do bem...
Por mais árduas te pareçam as dores não te suponhas em desvalimento.
Estás em regime carcerário benigno, de recuperação, graças à sentença correta que te impuseste.