Grilhões Partidos

Versão para cópia
CAPÍTULO 5
Ilustração tribal

INTERFERÊNCIA ESPIRITUAL


Temas Relacionados:

"Imaginamos erradamente que aos Espíritos só caiba manifestar sua ação por fenômenos extraordinários.

Quiséramos que nos viessem auxiliar por meio de milagres e os figuramos sempre armados de uma varinha mágica. Por não ser assim é que oculta nos parece a intervenção que tem nas coisas deste mundo e muito natural o que se executa com o concurso deles.

Assim é que, provocando, por exemplo, o encontro de duas pessoas, que suporão encontrar-se por acaso; inspirando a alguém a ideia de passar por determinado lugar; chamando-lhe a atenção para certo ponto, se disso resulta o que tenham em vista, eles obram de tal maneira que o homem, crente de que obedece a um impulso próprio» conserva sempre o seu livre arbítrio". "O LIVRO DOS ESPÍRITOS" — Questão 525 — Comentário.

Na sua festa de aniversário, Ester fora surpreendida pela agressão de revoltado Espírito que, acoimado por violenta crise de ódio, encontrou na sua sensibilidade mediúnica o campo propício para a incorporação intempestiva quão infeliz.

Assenhoreando-se das forças medianímícas da jovem, o obsessor, na sucessão dos dias, imantou-se-lhe quanto pôde ao campo psíquico, culminando no lamentável e longo processo de subjugação.

Compreensivelmente, Espírito em débito ante os Códigos da Divina Justiça, possuía os requisitos para uma sintonia perfeita, propícia ao agravamento do problema.

À sua semelhança na "Casa de Saúde", onde expiava os delitos ultrizes do passado, muitos outros pacientes eram vítimas da cons trição obsessiva. Fugindo à etiologia clássica da loucura, na qual o enfermo é Espírito que busca fugir à realidade objetiva, fortemente assinalado pelas reminiscências próximas em que chafurda, torna-se suicida inconsciente por meio de cujo recurso procura evadir-se às responsabilidades novas que lhe cumpre assumir e desenvolver, a fim de liberar-se.

Naturalmente, eclodindo a manifestação da loucura, instala-se, também, um simultâneo processo obsessivo, graças às vinculações que mantêm encarnados e desencarnados na Contabilidade dos deveres múltiplos, poucas vezes desenvolvidos com retidão.

Na obsessão, a loucura surge na qualidade de ulceração posterior, irreversivel, em consequência das cargas fluídicas de que padece o paciente, vitimado pela perseguição implacável.

Face à insidiosa presença de tal energia deletéria, desarticulam-se o equilíbrio emocional, a estabilidade nervosa, o metabolismo orgânico e, pela intoxicação de que se vêem objeto, vários departamentos celulares se desorganizam, envenenando-se, ulcerando-se.

Através de tal esquema em muitos processos obsessivos, a terapêutica salutar há de ser múltipla: acadêmica e espírita, imprescindíveis para colimar os resultados eficazes.

No caso específico de Ester, encontravam-se como agravantes múltiplos fatores cármicos, que aumentavam o sofrimento da aturdida obsessa.

Como ninguém se encontra marginalizado ante os recursos divinos, a presença de Rosângela representava o recurso inicial utilizado pelos Benfeitores Invisíveis para os primeiros tentames favoráveis à alienada, embora jamais houvesse ficado sem a superior assistência.

Profundamente amadurecida, não obstante a pouca idade física, a auxiliar de Enfermagem experimentara desde cedo o cadinho purificador de muitas vicissitudes e aflições, que contribuíram para a harmonia íntima de que se fazia possuidora.

Órfã desde os oito anos, ficara aos cuidados paternos, em subúrbio carioca, lutando com bravura pela sobrevivência.

Sensível e meiga, conseguira granjear afeições espontâneas entre os vizinhos, que passaram a assisti-la com desvelo, inclusive matriculando-a em escola primária próxima ao lar. O pai, diligente, trabalhava afanosamente, mantendo-se viúvo quanto pôde. Consorciando-se, alguns anos depois, a esposa fez-se terrível adversária da enteada, que foi, então, trasladada para digno lar em Botafogo, onde se alojou, na condição de ama de criança... À medida em que o tempo se desdobrava, natural, conquistou a amizade dos patrões que, em lhe identificando o drama resignado, resolveram socorrê-la da maneira mais favorável. Espíritas convictos, adestraram-na, membro da família em que se convertera, na grandiosidade dos estudos doutrinários, cuidando, também, da sua instrução, através do ingresso em Ginásio noturno, donde estava recém-saída, após concluir ligeiro curso de enfermagem-auxiliar a cujo mister agora se entregava.

Participando dos labores espiritistas, aguçaram-selhe as faculdades mediúnicas, que receberam carinhoso e lúcido trato dos benfeitores, encaminhando-a ao Centro Espírita, onde passou a cooperar nos benéficos serviços de socorro desobsessivo.

Ao defrontar Ester, pressentiu a tragédia que se desenvolvia além das manifestações exteriores da paciente.

Simultaneamente, poderosa simpatia brotou-lhe dos sentimentos puros, envolvendo a atormentada, desde então, na devoção das suas preces e vibrações.

Inspirada pelos seus e pelos Guias Espirituais da doente, foi-se, a pouco e pouco, acercando, até conseguir com a simples presença acalmá-la, desembaraçando-a da "camisa de força" a que vivia jugulada, quando não se encontrava sob as altas doses de sedativos que lhe eram impostas com regular frequência.

Suas horas de folga as dedicava à moça, que nem sempre a recebia com qualquer lucidez ou passividade.

Todavia, pelas emanações psíquicas que exteriorizava, conseguia neutralizar a agressividade do obsessor, que se lhe submetia à força moral, como se fora uma energia balsamizante que se contrapunha à sua nefasta pertinácia.

Emocionada, inteirou-se do terrível sofrimento da tutelada, mediante o conhecimento da "história clínica" e por meio de informações que logrou recolher discretamente.

Aconselhando-se com os tutores, resolveu-se procurar os pais da internada, na pressuposição de elucidá-los sobre a enfermidade da filha.

Confiava poder ajudar, fiel à recomendação evangélica.


Solicitando por telefônio uma entrevista formal com o senhor Coronel e

Senhora Constâncio Santamaria, foi recebida em clara manhã de setembro no apartamento outrora feliz, ora transformado em triste refúgio de amarguras e reminiscências dolorosas.

Acolitada pelos Espíritos Benfazejos que a amparavam, ao apresentar-se com natural timidez e constrangimento, não lhe, passou despercebido o enfado refletido na face dos anfitriões.

Sentia-se vistoriada com enérgica observação, e não fossem as excelências dos propósitos que a animavam, teria solicitado excusas, recuando...


Na conjuntura, firmemente teleguiada pelos Espíritos, falou sem rebuços:

— Rogo-vos permissão para elucidar, que afeição muito grande, e até certo modo inexplicável, liga-me a Ester, de quem me fiz encarregada no Hospital, por solicitação espontânea.

O casal, emudecido, surpreso, escutava-a, sem dissimular o desinteresse pela sua presença.


Depois de breve pausa, continuou, ante o mutismo descortês dos ouvintes:

— Venho cuidando dela há mais de um mês, sem conseguir-lhe uma palavra de equilíbrio, que denotasse raciocínio, exceto...

— Exceto? — inquiriu a senhora.

— Exceto há poucos dias — prosseguiu — quando, muito debilitada, num breve momento, pareceu recobrar a claridade mental, balbuciando: — "Mamãe! mamãe, onde você está?...

Tenho medo, mamãe...

— Oh! meu Deus! — exclamou, em pranto incontrolável, a dorida senhora.

— Acalme-se, meu bem! — Acudiu o esposo, igualmente lacrimoso.

— Perdoai-me trazer-vos a renovação das lágrimas...

— Intentou a auxiliar, emocionada, a seu turno.

— Sucede que acompanho Ester como somente o faria a uma irmã muito querida e com o senso de observação aguçada, comparo-a a outros enfermos, anoto, percebo o que muitos não conseguem ou talvez prefiram não ver...

— Como assim? — interrompeu-a o senhor Coronel.

— Por favor, seja mais clara, diga-nos o a que veio. Nossa filha é hoje o pouco e o tudo da nossa inditosa existência... Você também é tão jovem, que não consigo ficar à vontade... Parece-me imatura, sem experiência... Todavia, somos ouvidos atentos. Prossiga!

— Senhor Coronel — iniciou Rosângela — Ester não é uma louca segundo os padrões comuns, tradicionais. .

— Sim, sim — interrompeu-a o Coronel Constâncio — nós o sabemos.

Seu psiquiatra já no-lo asseverou o mesmo.

— Não, por favor — atalhou Rosângela — ouvi-me primeiro...

Não é comum porque não a considero louca.

— Digo bem! — assegurou, calma e lúcida, dirigida espiritualmente.

— uma obsessa por Espíritos!

— Não compreendemos a alusão, que nos parece absurda.

—Interceptoua, o interlocutor, azedo.

— Ouvi-me primeiro — solícitou, confiante. — A morte não elimina a vida; antes a dilata. Mudam-se as aparências, no curso de uma única realidade: viver! Assim, com a morte do ser físico não cessam as impressões do ser espiritual, conforme asseguram todas as religiões, do que decorre um natural intercâmbio, incessante, entre os que sobrevivem ao túmulo e aqueles que ainda não o atravessaram.

Retornam, felizes ou desventurados, os que foram conduzidos ao país da morte, seja pelo veemente desejo de ajudar os afetos da retaguarda, adverti-los e confortá-los, com eles mantendo agradável comunhão; seja vitimados pelo sofrimento com que se surpreenderam, buscando ajuda e, muitas vezes, perturbando; seja dominados pelas paixões inditosas de que não se conseguiram libertar, perseguindo, distilando ódios, obsidiando, em incessante conúbio...

— Mas isto é bruxaria! — interrompeu-a, quase violento.

—Aqui somos tradicionalmente religiosos e detestamos essas práticas vulgares de fetichismo que, desgraçadamente, empestam, nestes dias, a nossa Sociedade... Rogo-lhe o favor de mudar o curso da conversação. Aliás, creio que já não temos o que conversar.

Rosângela tornou-se lívida, enquanto o progenitor de Ester estava rubro de ira, furibundo.

Sob o verniz social, agasalhavam-se muitos estados de ferocidade.

Diga-me, senhorita: — Interrogou-a, áspero.

— Qual a sua religião? — Espírita, senhor!

— Desde quando o Espiritismo é religião?

— Desde os primórdios.

— Atrevida e petulante. Vir à minha casa arengar sobre magia negra, superstição, como se fôramos pessoas ignorantes, pertencentes às classes inferiores que se comprazem, por fuga psicológica e misérias, nessas práticas, de que faz falta a repressão policial enérgica. Antes de retirar-se, responda-me: nos hospitais, agora, se permitem bruxos e macumbeiros entre os seus servidores?

— Querido!...

— exclamou a senhora — Não se encolerize.

— Isto mesmo.

— Redarguiu. — Diga-me!


A jovem estava perplexa, porém lúcida, e tefletia: "Como a verdade é proposital, comodamente ignorada! Quão poderoso é o cerco do orgulho, que separa homens por dinheiro, posição, aparência, apesar de todos marcharem inexoravelmente para uma mesma direção: a consciência que os examinará despidos dos engodos a que se aferram!" Inspirada, contestou, delicadamente:

—Excelência, aqui venho propondo-me servir com humildade e desinteresse. A minha confissão religiosa não tem ligação com a minha modesta função hospitalar, senão para impor-me a conduta cristã, que ensina misericórdia em relação aos infelizes: estejam nas camadas do infortúnio social ou no acume da ilusão econômica. No santuário espiritista, que frequento, o alvo redentor é Jesus, a estrada a percorrer chama-se caridade, seguindo sob o sol da fé viva e a força do amor fraternal. Venho a este lar em missão de paz e dele sairei pacificada, sem embargo, expulsa, o que muito lamento, não por mim, que reconheço a minha própria desvalia...

O vaso modesto não poucas vezes mata a sede, oferta o medicamento salvador, retém o perfume, atende a misteres relevantes, enquanto preciosas taças de cristal lapidado adornam, mortas, empoeiradas, móveis luxuosos e inúteis...

O Coronel Santamaria e esposa ouviam-na, incomodados pela argumentação superior, apresentada com humildade, impossibilitados de a interromperem, magnetizados pelos 1nstrutores Espirituais presentes.


Enquanto isso, semi-incorporada, Rosângela aduziu:

— "Brilhe a vossa luz" — conclamou o Cristo — para que o mundo vos conheça.

A luz da verdade fulgurará, apesar das mil tentativas da Treva em domínio transitório, Os pseudobruxos que a intolerância fez queimar, ao perecerem, não deixaram silenciosas as Vozes, que retornaram e volverão até instalado na Terra o "reino de Deus".


E após rápida reflexão:

— Continuarei velando por Ester...

— Nunca mais! — Esbravejou o senhor Coronel, que rompera o mutismo obrigatório a que estava subjugado.

— Providenciarei para que não volte a vêla, caso não resolva exigir a sua expulsão daquele Frenocômio.

— Como lhe aprouver, excelência.

Dai-me vossa licença. Bom dia, senhores, passai bem.

E retirou-se. O dia seguia bonançoso, tépido.

O vento e a maresia que corriam pela Avenida Atlântica, aspirados em longos haustos pela jovem servidora da esperança, despertaram-na. Só, então, concatenando ideias e ordenando lembranças, deu-se conta dos acontecimentos, sendo visitada pelos receios e as lágrimas.

Rosângela fora excelente instrumento indireto dos Bons Espíritos, que tentavam, desse modo, interferir e ajudar no grave sucesso da subjugação de Ester.



Este texto está incorreto?