Nos Bastidores da Obsessão - Novo Projeto
Versão para cópiaNo anfiteatro
Ante a proximidade do momento de nos dirigirmos aos sítios em que o Dr. Teofrastus labora, voltavam-nos à mente as lições fornecidas pelo Benfeitor Glaucus, em torno da história e das realidades da hipnose.
Guilherme, amparado fraternalmente por Ambrósio, o delicado enfermeiro e assistente de Saturnino, foi incorporado ao grupo, e assim nos acercamos da porta do velho edifício da União, para nos transferirmos até o Anfiteatro.
Saturnino, prestimoso e severo, antevendo a gravidade da excursão, a todos nos adestrou, quanto possível, nos recursos da concentração e da prece, de modo a evitarmos qualquer desastre, no reduto inditoso para onde rumávamos.
A tarefa, de grande realce, tinha como objetivo essencial conhecer os métodos de trabalho dos «adversários da Luz», de modo a elucidar os companheiros reencarnados e aplicar, igualmente, os antídotos compatíveis quando estes esclarecimentos viessem a lume.
Sem dúvida, desde as primeiras horas do Espiritismo, Mensageiros Eficientes têm vindo à Terra oferecer esclarecimentos sobre as paisagens do Mais Além...
e, mesmo antes da chegada do Consolador, os informes incessantes chegavam aos ouvidos dos homens, advertindo-os sobre as realidades insofismáveis da vida.
Aguardava-nos à porta singular veículo, semelhante às velhas seges, porém de maiores proporções, à qual estavam atrelhados duas parelhas de corcéis brancos, belos espécimes equinos, conduzidos por um cocheiro de meia-idade, que nos saudou com discreta cortesia.
Adentramo-nos no coche, que partiu.
As cortinas arreadas não nos permitiam a visão do exterior.
O irmão Saturnino esclareceu que conhecia o local em que estava o anfiteatro, próximo à região pantanosa da cidade, em uma área deserta e não muito distante, que atingiríamos numa hora de viagem aproximadamente. Elucidou, ainda, que a providência de utilizar o veículo se justificava, considerando a situação de alguns dos membros presentes à excursão, pouco adestrados a voos mais expressivos fora do corpo somático, como Guilherme e qual acontecia a nós outros, algemados, ainda, às formas físicas.
Convidados à oração silenciosa, procuramos mergulhar no oceano sublime da prece, de modo a contribuir com os recursos possíveis para o êxito da missão.
Transcorrido mais ou menos o tempo previsto, escutamos bulha e altercação à nossa frente, quando, então, saltamos da condução, prosseguindo a pé. Havia uma multidão de entidades viciosas, em atitudes repelentes, que dialogavam com expressões vis e ultrajantes. Entre elas, podiam-se notar diversos encarnados — perfeitamente diferençáveis, graças aos vínculos do perispírito ainda ligado ao corpo físico — que pareciam algemados a alguns dos desencarnados libertinos, que os conduziam como se fossem escravos das suas paixões e de quem não se podiam libertar. Outros apareciam com carantonhas simiescas e o recinto tresandava putrefação. Vibrações viscosas e sombrias carregavam os céus que tinham um tom pardacento-escuro, sem estrelas, e o solo miasmático parecia um paul insano que, todavia, não lhes chamava a atenção, acostumados como se encontravam à paisagem triste e morta do local. A construção, de matéria viscosa e escura, tinha a forma semicircular e fazia lembrar repentinamente os velhos circos, não fosse a substância de que se revestia. Luzes roxas e vermelhas esparramavam sombras atormentadas que passavam perdidas nos interesses em que se compraziam e, de quando em quando, massa compacta e atroadora, empurrando violentamente os que se encontravam à frente, chegava em galhofa infernal.
Dificilmente se poderia ver na Terra espetáculo de tal natureza... E, todavia, estávamos na Terra, um pouco fora das vibrações do mundo material, dentro dele, porém.
Alguns guardas bufos e caricatos, tomavam conta da entrada ampla, onde se encontravam assestados alguns aparelhos, que faziam lembrar os torniquetes utilizados entre os homens, com a diferença de que sobre eles havia uma caixa quadrangular, que Saturnino informou ter a finalidade de impedir a entrada de Espíritos que não pertencessem à malta.
Era o psicovibrômetro que tinha a capacidade de registar as ondas vibratórias de todos os assistentes, denunciando, assim, quaisquer intromissões dos Espíritos Superiores.
Ele, Ambrósio e Glauco, todavia, tomaram precauções especiais, de modo a transporem a passagem sem provocar qualquer alarme denunciador, através de um processo de imersão mental nas lembranças do passado, o que lhes diminuiria o registro vibratório.
Além disso, penetrariam no recinto, logo mais, quando o número de frequentadores fosse muito expressivo, de forma a que o aparelho ficasse impregnado de fluídos de baixo teor vibratório. Quanto a nós, os encarnados, e a Guilherme, não haveria problema...
Afastando-nos um pouco do bulício, os Benfeitores e o Assistente, concentramonos demoradamente e observamos um fenômeno singular.
Lentamente o aspecto exterior se foi adensando e a forma padeceu ligeira transformação que os deformava e, como se estivessem respirando incômoda atmosfera, passaram a apresentar leves estertores e, sensívelmente modificados, convidaram-nos a entrar.
Atravessamos as barreiras sem qualquer incidente e fomos surpreendidos por um recinto amplo, de arquibancadas que ficavam fronteiras a um picadeiro pouco iluminado, onde o espetáculo teria curso.
A balbúrdia ensurdecedora fazia lembrar um covil de feras. Expressões profundamente vulgares e tradutoras da qualidade dos que ali se encontravam explodiam abundantes, constrangendo-nos.
Saturnino, com muita discrição, nos convocava àoração, de modo a que nos não distraíssemos.
Esclareceu que Benfeitores Espirituais nos acompanhavam de longe, pelos fios invisíveis do pensamento, intercedendo por todos nós ao Senhor da Vida.
Guilherme, apavorado, estava a ponto de desequilibrar-se.
Acolitado, no entanto, por Ambrósio, que o sustentava, manteve-se em silêncio, expectante.
Subitamente apareceram, no recinto interno e semicircular, estranhos sequazes que sopraram búzios esquisitos e anunciaram a chegada do Dr. Teofrastus.
Guilherme, ao nosso lado, entre a massa agitada que gritava, desenfreada, começou a tremer descontroladamente.
O momento, porém, era de algazarra, enquanto a multidão esperava ansiosa o anfitrião.
Aqui e ali, no entanto, havia muitas expressões de pavor, não só entre encarnados como entre desencarnados, que esperavam o início da função, constrangidos e vencidos por medo atroz.
Apresentando rostos patibulares, essas Entidades confrangiam mesmo aqueles que fossem portadores de sentimentos empedernidos, exceção aos que ali se encontravam, tresloucados...
O ambiente era irrespirável. Nuvens de fumo se elevavam, abundantes, misturadas a odores acre-fortes, como os derivados de plantas estupefacientes, e podia-se ver uma multidão espiritual, de paixões insaciáveis, açuladas, que habitualmente se atiravam atormentados sobre os seus cômpares enjaulados na carne, em processos indescritíveis de vampirizações tormentosas.
Esperavam, desditosos, as lições infelizes em torno das técnicas da obsessão, para continuarem o programa inferior de imantação psíquica nos seus antigos senhores que passavam, automàticamente, à condição dolorosa de escravos...
Não havia tempo para maiores elucubrações, pois nesse momento deu entrada no recinto singular cortejo formado por um grupo grotesco, estranhamente vestido, sustentando um sólio sob colorido pálio, em cujo assento se encontrava hedionda personagem. Trajando roupa de cor berraste, que variava do arroxeado ao negro, ostentava grosseiro paludamento que lhe caia dos ombros e era sustido pelo braço esquerdo. O semblante aberto num sorriso que mais parecia um esgar, não ocultava a ferocidade brilhante nos dois olhos quase oblíquos, que se destacavam na face gorda e macilenta, sob uma testa larga, de raros fios de cabelos empastados...
Bigodes abundantes se perdiam nas suíças extravagantes, completando a visão terrificante e macabra.
O préstito bizarro voluteou por três vezes o picadeiro e se aquietou ao centro, transferindo-se o temível doutor Teofrastus para um palanque adredemente armado, com gestos vulgares e ridículos.
Houve um súbito silêncio feito de expectativa e receio.
Voltando-se para a multidão, começou a falar, através de um microfone que levava a sua voz às galerias, por meio de vários projetores de som, de alta potência.
As palavras duras e impiedosas exprobravam os que se atemorizavam ante o cumprimento do «dever da vingança», explodindo ameaças e exibindo toda a prepotência de que se supunha possuir.
O silêncio era aterrador.
Nenhum som, nenhuma galhofa, exceto, de quando em quando, alguns gritos de terror que partiam das arquibancadas...
—Temos hoje um caso de Justiça...
— reticenciou.
E para fazer-se mais temerário, apostrofou:
—Julgaremos uma criminosa que chegou da Terra para os nossos presídios, há quase um ano...
Apareceram os que se poderiam chamar jurados, que tomaram lugar em assentos reservados, um acusador, duas testemunhas — uma de lamentável aspecto Iacerado, e a outra, apenas uma pasta informe, perispiritual, estiolada, que, mantida numa cesta nauseante, foi colocada sobre uma mesa, em destaque, no centro do proscênio.
Algemada e atada a uma corrente, jovem mulher de uns quase 35 anos foi trazida, acolitada por dois guardas e conduzida ao palco da triste encenação.
O semblante desencarnado e a expressão de loucura deformavam-na em grande parte.
Andrajosa e imunda, quase rastejava, minada pela ausência de forças.
O simulacro de julgamento era decerto confrangedor.
A infeliz relanceou os olhos baços várias vezes, traduzindo o quanto de sofrimento lhe invadia o ser.
O acusador, empertigado e ferino, narrou:
—Esta mulher vem da Terra, após uma vida de abominação.
«Enganando-se, quanto pôde, entregou-se a toda espécie de prazeres, assistida de perto por diversos cooperadores da nossa Organização, após os seus primeiros crimes.
«Tendo oportunidade de fazer-se mãe, seis vezes consecutivas, delinquiu em todas elas, evadindo-se, pelo infanticídio, a qualquer responsabilidade para com os próprios atos.
«Na última vez, fez-se vítima da própria leviandade e desencarnou após terrível e demorada hemorragia que lhe roubou toda possibilidade de sobrevivência.
«Dentre os a quem ela impediu voltassem à carne, aqui estão duas vítimas suas, em diferentes estados: um conseguiu retomar a forma anterior, mas apresenta os sinais das lâminas que lhe romperam o corpo em formação; o outro ainda dorme, hibernado, na forma desfigurada, graças ao despedaçamento sofrido, no ato do aborto.
«Logo despertou, porém, no túmulo, alguns dias após o desenlace, acreditandose viva no corpo — ignorante das realidades espirituais —, um soldado nosso deulhe «voz de prisão» pelos crimes cometidos e, algemando-a, trouxe-a ao cárcere, em que tem estado até este momento.
«A sua primeira vítima, que pertencia aos nossos quadros, apresentou queixa, há muito, o que nos levou a assisti-la por alguns anos e agora nos reunimos para fazer justiça.
» O pobre espírito assistia a tudo, quase sem se aperceber.
Parecia semidesvairado, recolhendo a muito esforço mental algumas expressões esparsas, que no entanto não conseguia coordenar...
Os insultos e doestos choviam, atirados em abundância.
A testemunha fez chocante narração, várias vezes interrompida pelo vozerio das galerias, após o que, uma voz se destacou na bulha, anunciando o veredicto:
— Culpada!
Gargalhadas estridentes espoucaram de todos os lados.
O Dr. Teofrastus ergueu-se e, depois de receber mesuras dos comparsas, sentenciou:
— Façamos com ela, o que no íntimo sempre foi: uma loba!
Acercou-se da sofrida entidade e, fitando-a, escarnecedor, passou a ofendê-la, vilmente.
A vítima não apresentou qualquer reação.
Era como se a sua visão se encontrasse longe, a fixar as evocações dos abortos delituosos a que se entregara nos dias de insensatez, que ficaram para trás, mas que não se consumiram...
Obrigando-a a ajoelhar-se, enquanto lhe estrugia no dorso longo chicote sibilante, ordenou, de voz estertorada:
— Víbora infeliz! Devoradora dos próprios filhos! Toma a tua forma...
a que já tens na mente atormentada. "A tua justiça é a tua consciência...
Obedece, serpente famélica!» A voz, impregnada de pesadas vibrações deletérias e vigorosas, dobrava os centros de parca resistência perispiritual da atormentada, e, diante dos nossos olhos, ao comando do sicário cruel, que se utilizava de processos hipnóticos deprimentes, atuava no subconsciente perispiritual abarrotado de remorso da infanticida, imprimindo-lhe a tragédia da mutação da forma, num horrendo fenômeno de licantropia, dos mais lacerantes...
Choros convulsivos e gritos irromperam simultâneos das arquibancadas.
A altercação foi geral. Repentinamente escutaram-se cirenes de alarme, e a perturbação se fez total...
Saturnino, a meia voz, buscou acalmar-nos, aduzindo explicações:
—A visão horrenda para todos nós produziu em algumas centenas de reencarnados aqui presentes, constringidos pelas forças obsessivas nas quais se encontram subjugados aos seus verdugos, choques muito profundos e violentos, que os recambiaram inopinadamente ao corpo — abençoada cidadela de defesa que a vida nos concede para aprender e recomeçar...
— Despertarão, extremunhados, esses espíritos, mesmo os que conservam a demência nos registros da consciência retornando de estranhos e terríveis pesadelos, banhados por álgidos suores, amedrontados, chorosos, desesperados...
E desejando esclarecer-nos com as sábias lições, continuou, enquanto os distúrbios prosseguiam:
—Nesse sentido, é que o conhecimento do Espiritismo realiza a melhor terapêutica para o espírito, higienizando-lhe a mente, animando-o para o trabalho reto e atitudes corretas e sobretudo dulcificando-o pelo exercício do amor e da caridade, como medidas providenciais de reajustamento e equilíbrio.
Não há força operante no mal que consiga penetrar numa mente assepsiada pelas energias vitalizadoras do otimismo, que se adquire pela irrestrita confiança em Deus e pela prática das ações da solidariedade e da fraternidade.
E dando mais ênfase ao ensino, arrematou:
— Aliando o esforço que cada um deve envidar a benefício próprio, a prece é a fonte inexaurível que irriga o ser, renovando-o e aprimorando-o, ensejando também, logo após depurar-se, a plainar além dos reveses e tropelias, arrastado pelas sutis modulações das Esferas Superiores da Vida, onde haure vitalidade e força para superar todos os empeços.
Paulatinamente a ordem foi restabelecida, conquanto a evasão dos encarnados fosse muito expressiva, na busca desesperada de refúgio nos corpos.
A cena estranha Continuou por mais alguns momentos e o atormentado espírito da mulher-lobo foi, por determinação do chefe, remetido ao interior para ser colocado em defesa do anfiteatro.
Houve, ainda, algumas outras demonstrações de hipnose elementar e grosseira, porém de efeito na multidão, atônita, quando o espetáculo foi encerrado, após a saída do infame séquito e do seu famanaz.
Um tanto deprimidos, saímos, também, e voltando a respirar o hálito da Natureza, quando chegamos àpraça em que se encontrava a União Espírita Baiana, depois da Jornada pelo mesmo processo, adentramo-nos, para receber energias revitalizantes e esclarecimentos finais do vigilante Benfeitor.
Recompondo o círculo e carinhosamente recebidos pelos que ficaram, fomos concitados à oração, após o que Saturnino, empenhado em esclarecer-nos, elucidou, pausado:
— Aparentemente, os infelizes companheiros que mourejam no Anfiteatro constituem segura organização a serviço do mal. Adestrados na prática da ignomínia, supõem-se preparados para investir contra os espíritos atormentados que gravitam em ambos os lados da vida, imanados às paixões que os consomem, paixões cujo comportamento facilmente sintonizam com eles e outros afins, caindolhes nas malhas vigorosas que, em última análise, se transformam em instrumentos de que se utiliza a Lei Divina para corrigir os que ainda preferem os tortuosos caminhos... Muito tempo se passará até que as Leis de Amor, Leis da Vida, portanto, se estabeleçam em definitivo entre nós... Convém considerar que só o bem tem características de perfeição, por ser obra de Deus, que é Perfeito. O mal, engendrado pelo espírito atribulado, opera por métodos de violência e, dessa forma, é falho, o que atesta a sua procedência. Não fosse isso e não nos poderíamos ter adentrado no recinto das intervenções malignas, pois que o. psicovibrômetro ter-nos-ia denunciado... À semelhança de um contacto Geiger que detecta a radioatividade, o psicovibrômetro obedece ao mesmo princípio, tendo, porém, as características magnéticas que registam a psicosfera dos que dele se acercam, detectando as vibrações mais suaves que, então, disparam a agulha que incide numa "relay" que, por sua vez, comanda um circuito de alarmes espalhados nas dependências adjacentes...
Como procuramos sintonizar com o meio ambiente em que nos encontrávamos e aspirando os mesmos resíduos espalhados no ar, mergulhamos, naturalmente, em densas ondas de baixo teor vibratório que nos envolveram a todos, sendo que nós, Ambrósio e Glauco, passamos a sofrer os mal-estares compreensíveis, a que Guilherme por sintonia constante está habituado e os demais encarnados do Grupo, graças à condição do corpo orgânico não experimentaram maior choque, permanecendo, momentaneamente, no mesmo teor de energias deprimentes, que impediram a oscilação da agulha de registro do aparelho... Fosse, porém, o inverso, isto é: se o aparelho detectasse vibrações de baixo tom vibratório, nenhuma Entidade das que ali se encontravam, desejando violar recintos Superiores, poderia sutilizar o padrão da sua psicosfera para criar condição mais elevada.
Sem dúvida que toda ascensão é lenta e áspera... Agradeçamos, portanto, ao Senhor. Teremos ensejo de retornar ao Anfiteatro, oportunamente, para prosseguir observações e tarefas, quando, então, o irmão Glauco desempenhará função específica junto ao nosso irmão Teofrastus...
Os trabalhos foram encerrados quando os primeiros raios da Alva venciam a teimosia da noite.
Reconduzidos ao corpo, particularmente nossa pessoa conservou lembranças dolorosas e angustiantes.
O dia nos foi de inquietação e distonia emocional, como se a noite nos houvesse ofertado cruéis pesadelos, de cuja visão confusa não nos podíamos libertar.
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