Após a Tempestade

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CAPÍTULO 23

DESENCARNAÇAO

Resultante da orientação religiosa deficiente que situou a morte como ponte entre a vida física e a sobrenatural, onde a Divina Justiça aguarda o Espírito para brindar-lhe a paz ou a desdita, o conceito errôneo ensejou aos cépticos anotações devastadoras, tornando-a simples retorno ao pó donde se teria originado, portanto, ao aniquilamento.

Não obstante sua remota antiguidade, o culto dos mortos recebeu do hedonismo grego terrível reação, quando os usufrutuários do prazer situaram os impositivos do existir, simplesmente no ideal físico e estético da beleza e do gozo com as decorrências imediatas da dissolução dos tecidos e das expressões do pensamento.

Os estoicos, que se lhes opunham, esforçavam-se por colocar resistências ao pavor da morte, numa tentativa de se evitarem a tristeza e a dor, mediante um fatalismo racionalista com que se deve superá-las, através do esforço sobre-humano para enfocar as realidades do dia a dia, vivendo-se com valor cada hora no mundo material.

O Cristianismo foi na História a mais eloquente mensagem de louvor à vida e à morte, considerando-se que a ética vivida e ensinada por Jesus é toda vazada na "negação do mundo material" para a afirmação de Deus e da vida espiritual.

A sua mensagem impele o homem ao entesouramento dos valores morais que não transitamnem se perdem quando se decompõem as aparências orgânicas, permanecendo alémtúmulo como superiores recursos para a sobrevivência feliz.

Além disso, o seu contato comos chamados mortos, em contínua convivência, suas horas de solidão com Deus atestam a grandeza do princípio espiritual sobrepujando as limitações do veículo carnal.

Como se não bastassem as eloquentes comprovas de que se fez ímpar agente, retornou, Ele próprio, do além-túmulo, à presença de umsem-número de testemunhas, comelas confabulando e convivendo com expressões de vitalidade incontestável...

Em todos os tempos ressumamos atestados imortalistas, no incessante intercâmbio entre as duas esferas: a orgânica e a espiritual.

Mentes áridas e atormentadas, no entanto, hão procurado sepultar no "nada" a glória imortal. Não obstante, o atavismo dessa negação, no inconsciente humano mantido pela sistemática da descrença, jamais foi utilizada a expressão niilista sobre a vida imortal nos incontáveis conúbios de que foraminstrumento médiuns, santos e apóstolos afirmando sempre a sobrevivência... Em todos esses fenômenos paranormais o verbete Imortalidade superou o aniquilamento do ser, reafirmando a indestrutibilidade do Espírito à decomposição dos tecidos carnais...


* * *

Não há morte, ninguém se equivoque.

Só há vida, onde quer que se detenha o pensamento.

Da decomposição pestilencial da matéria surgem multiplicadas, complexas formas de vida.

Morre a lagarta em histólise de desagregação para surgir a borboleta em histogênese admirável...

Morre a semente para libertar a planta...

Morre o sêmen para formar o corpo...

Morre o corpo para que se liberte o Espírito que dele se utiliza como de um veículo em romagempurificadora.

Sem dúvida, a morte constitui dor inominável quando arrebata o ser querido, retirando-o da convivência e da ternura dos que o amam...

Possivelmente, é a dor motu continuum de maior duração, graças ao apego e valor que se atribuem aos grilhões carnais.

A ausência do corpo não impede, porém, a presença do ser, desagregado na forma, não, todavia, aniquilado na essência.

Ninguém sobreviverá sine-die enquanto no ergástulo fisiológico.

Indispensável considerar que a vida orgânica, iniciada no ovo se dilui quando cessa a circulação sanguínea por falta de oxigenação, todavia a causa que aglutinou as moléculas e as transformou prossegue, agora livre, continuando os rumos que deve vencer.

Ninguém é genitor ou filho, esposo ou amigo afeiçoados por caprichos do acaso.

Quando se rompem as argamassas não se destroem os vínculos superiores que os precederam ao berço e os sucederão ao túmulo.

Imperioso considerar, mediante reflexão continuada, a problemática da morte, a fim de que a surpresa, decorrente da imantação ao corpo físico, não se transforme emrebeldia inútil ou exacerbação dissolvente.


* * *

Os seres amados recebem, onde se encontram vivos após a morte, os dardos da revolta negativa para eles como as lembranças afáveis do amor.

O pensamento é força vital gravitando no Universo.

Imã poderoso mantém sua própria força e atrai as ondas semelhantes que nele se fixam ou às quais se liga.

Assim, recorda os teus mortos com alegria e ternura, mesmo que isto te pareça paradoxal.

A morte não visita apenas o teu lar. Passa por todas as portas, invariavelmente.

Se amas, conforme dizes, atesta-o com nobreza e não por meio da insensatez.

Uma memória que inspira desesperação, realmente não foi útil nem nobre.

Somente o amor verdadeiro inspira ânimo e confiança, alegria e esperança.

Coloca-te no lugar de quempartiu e considera a forma como te sentirias se foras a causa do infortúnio da pessoa que, dizendo amar-te, pensa em fugir, em vingarse, em abandonar a vida...

Refletirás melhor e transformarás a dor em flores de alegria, guardando a certeza de que o amanhã fará o teu reencontro comquem amas.

A vida sempre devolve conforme recebe.

Irisa o céu da tua saudade coma luz da oração pelos teus amados imortais.

... E começa a preparar-te para a vilegiatura que te alcançará logo mais.

Rompe as algemas da paixão, quebra as peias do egoísmo, organiza o programa de liberação das mágoas, reflete nas dores e, quando chegar o teu momento, que nenhuma retentiva te prenda na retaguarda...

Vivendo, está-se desencarnando a pouco e pouco. O golpe final resulta de todos esses pequenos morreres, que lançam a alma na realidade da consciência livre e indestrutível.

Desencarnar é desembaraçarse da carne.

Morrer, literalmente, significa cessar de viver.

Do ponto de vista espiritual, porém, morte é vida e vida no corpo pode afigurar-se como morte transitória da liberdade e da plenitude da lucidez.

Vive, pois, de tal forma que, advindo a morte ou desencarnação, estejas livre e prossigas feliz.



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