No mundo maior

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Capítulo III

A casa mental


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Retomando a companhia de Calderaro, na manhã luminosa, absorvia-me o propósito de enriquecer noções pertinentes às manifestações da vida próxima à Esfera física.

Admitido à colônia espiritual, que me recebera com extremado carinho, conhecia de perto alguns instrutores e fiéis operários do bem.

Inquestionavelmente, vivíamos todos em intenso trabalho, com escassas horas reservadas a excursões de entretenimento; demais, fruíamos ambiente de felicidade e alegria a favorecer-nos a marcha evolutiva. Nossos templos constituíam, por si sós, abençoados núcleos de conforto e de revigoramento. Nas associações culturais e artísticas encontrávamos a continuidade da existência terrestre, enriquecida, porém, de múltiplos elementos educativos. O campo social regurgitava de oportunidades maravilhosas para a aquisição de inestimáveis afeições. Os lares, em que situávamos o serviço diuturno, erguiam-se entre jardins encantadores, quais ninhos tépidos e venturosos em frondes perfumadas e tranquilas.

Não nos faltavam determinações e deveres, ordem e disciplina; entretanto, a serenidade era nosso clima, e a paz, nossa dádiva de cada dia.

Arremessara-nos a morte a atmosfera estranha à luta física. A primeira sensação fora o choque. Empolgara-nos o imprevisto. Continuávamos vivendo, apenas sem a máquina fisiológica, mas as novas condições de existência não significavam subtração da oportunidade de evolver. Os motivos de competição benéfica, as possibilidades de crescimento espiritual haviam lucrado infinitamente. Podíamos recorrer aos poderes superiores, entreter relações edificantes, tecer esperanças e sonhos de amor, projetar experiências mais elevadas no setor reencarnacionista, aprimorando-nos no trabalho e no estudo e dilatando a capacidade de servir.

Em suma, a passagem pelo sepulcro conduzira-nos a uma vida melhor; mas… e os milhões que transpunham o estreito limiar da morte, permanecendo apegados à Crosta da Terra?

Incalculáveis multidões desse gênero mantinham-se na fase rudimentar do conhecimento; apenas possuíam algumas informações primárias da vida; exoravam amparo dos Espíritos Superiores, como as tribos primitivas reclamam o concurso dos homens civilizados; precisavam de desenvolver faculdades, como as crianças de crescer; não permaneciam chumbadas à Esfera carnal por maldade, senão que se demoravam, hesitantes, no chão terreno, como os pequeninos descendentes dos homens se conchegam ao seio materno; guardavam da existência apenas a lembrança do campo sensitivo, reclamando a reencarnação quase imediata quando lhes não era possível a matrícula em nossos educandários de serviço e aprendizado iniciais. Por outro lado, verdadeiras falanges de criminosos e transviados agitavam-se, não longe de nós, depois de haverem transposto as fronteiras do túmulo; consumiam, por vezes, inúmeros anos entre a revolta e a desesperação, personificando hórridos gênios da sombra, como ocorre, nos Círculos terrenos, com os delinquentes contumazes, segregados da sociedade sadia; mas sempre terminavam a corrida louca nos desvãos escuros do remorso e do sofrimento, penitenciando-se, por fim, de suas perversidades. O arrependimento é, porém, caminho para a regeneração e nunca passaporte direto para o Céu, razão pela qual esses infelizes formavam quadros vivos de padecimento e de horror.

Em várias experiências, via-os conturbados e aflitos, assumindo formas desagradáveis ao olhar. Nos casos de obsessão convertiam-se em recíprocos algozes, ou, então, em verdugos frios das vítimas encarnadas; quando errantes ou circunscritos aos vales de punição, aterravam sempre pelos espetáculos de dor e de miséria sem limites.

No entanto, era forçoso convir, eles, os desventurados, e nós outros, que continuávamos trabalhando em ritmo normal, atravessáramos portas idênticas. Talvez, em muitos casos, houvéssemos abandonado o invólucro material sob o assédio de doenças análogas. Isto considerando, e por desejar conhecer a Divina Lei, que não concede paraísos de favor, nem estabelece infernos eternais, confrangia-me o contemplar as imensas fileiras de infortunados.

Efetivamente, identificara numerosos deles em câmaras retificadoras, através de múltiplas instituições de beneficência; todavia, esses, situados na zona de amparo fraterno, apresentavam a seu favor sintomas de melhora quanto ao reconhecimento das próprias falhas ou aos créditos espirituais de que gozavam, mercê de certas forças intercessoras.

Os infelizes, a que aludimos, provinham, porém, de outras origens. Eram os ignorantes, os revoltados, os perturbadores e os impenitentes, de alma impermeável às advertências edificantes, os enfatuados e os vaidosos dos mais vários matizes, perseverantes no mal, dissipadores da energia anímica, em atitudes perversas diante da vida.

Meu contato com eles, em diversas ocasiões, fora simples encontro fortuito, sem maior significação para meu esclarecimento.

Por que motivo se demoravam tanto no hemisfério obscuro da incompreensão? Adiavam, deliberadamente, a recepção da luz? Não lhes doeria a condição de seres condenados, por si mesmos, a longas penas? Não experimentariam vergonha pela perda voluntária de tempo? Muita vez, surpreendia-me a contemplá-los… Os traços fisionômicos de muitos desses desventurados pareciam monstruoso desenho, provocando ironia e piedade. Que lei regeria a estereotipação de suas formas? Tê-los-ia olvidado a mãe-natureza, pródiga de bênçãos em todos os Planos, ou recebiam eles esses traços de apresentação pessoal como castigo imposto por superiores desígnios?

Tais interrogações que me esfervilhavam no cérebro me punham aflito por viver a possibilidade que se me oferecia.

Aproximei-me de Calderaro, naquela manhã, sedento de saber. Expus-lhe minhas indagações íntimas, relatei-lhe aos ouvidos tolerantes minha expectativa ansiosa, longamente sofreada; pretendia conhecer os que se entretinham na maldade, no crime, na inconformação.

Meu amigo escutou calmo, sorriu benevolamente e começou por esclarecer:

— Antes de mais nada, André, modifiquemos o conceito. Para transformar-nos em legítimos elementos de auxílio aos Espíritos sofredores, desencarnados ou não, é-nos imprescindível compreender a perversidade como loucura, a revolta como ignorância e o desespero como enfermidade.

Ante a minha perplexidade, acrescentou, fraternal:

— Entendeste? Estas definições, em verdade, não são minhas. Aprendemo-las do Cristo, em seu trato divino com a nossa posição de inferioridade, na Crosta Terrestre.

Julguei que o Instrutor se estendesse em longa exposição verbalista, relativa ao assunto, trazendo referências preciosas e comentando experiências pessoais. Nada disto; Calderaro informou-me simplesmente:

— A cegueira do espírito é fruto da espessa ignorância em manifestações primárias ou do obnubilamento da razão nos estados de aviltamento do ser. Nosso interesse, no socorro à mente desequilibrada, é analisar este último aspecto da sombra que pesa sobre as almas; assim sendo, faz-se mister saberes alguma coisa da loucura no âmbito da civilização. Para isto, convém estudarmos, mais detidamente, o cérebro do homem encarnado e o do homem desencarnado em posição desarmônica, por situarmos aí o órgão de manifestação da atividade espiritual.

Desejaria continuar ouvindo-o nas explicações claras e convincentes, a lhe fluírem dos lábios, mas Calderaro silenciou para afirmar, passados alguns instantes:

— Não disponho de muito tempo para discretear de matéria estranha aos meus serviços; todavia, lidaremos juntos, convictos de que, trabalhando nas boas obras, aprenderemos sempre a ciência da elevação.

Sorriu, fraternal, e rematou:

— O verbo gasto em serviços do bem é cimento divino para realizações imorredouras. Conversaremos, pois, servindo aos nossos semelhantes de modo substancial, e nosso lucro será crescente.

Calei-me, edificado.


Daí a minutos, acompanhando-o, penetrei vasto hospital, detendo-nos diante do leito de certo enfermo, que o Assistente deveria socorrer. Abatido e pálido, mantinha-se ele unido a deplorável entidade de nosso Plano, em míseras condições de inferioridade e de sofrimento. O doente, embora quase imóvel, acusava forte tensão de nervos, sem perceber, com os olhos físicos, a presença do companheiro de sinistro aspecto. Pareciam visceralmente jungidos um ao outro, tal a abundância de fios tenuíssimos que mutuamente os entrelaçavam, desde o tórax à cabeça, pelo que se me afiguravam dois prisioneiros de uma rede fluídica. Pensamentos de um deles com certeza viveriam no cérebro do outro. Comoções e sentimentos seriam permutados entre ambos com matemática precisão. Espiritualmente, estariam, de contínuo, perfeitamente identificados entre si. Observava-lhes, admirado, o fluxo de comuns vibrações mentais.

Dispunha-me a comentar o fenômeno, quando Calderaro, percebendo-me a intenção, se adiantou, recomendando:

— Examina o cérebro de nosso irmão encarnado.

Concentrei-me na contemplação do delicado aparelho, centralizando toda a minha capacidade visual, de modo a analisá-lo interiormente.

O envoltório craniano, ante meus poderes visuais intensificados, não apresentava resistência. Como reparara de outras vezes, ali estava o complicado departamento da produção mental, semelhando-se a laboratório dos mais complexos e menos acessíveis. As circunvoluções separadas entre si, reunidas em lobos, igualmente distanciados uns dos outros pelas cissuras, davam-me a ideia de um aparelho elétrico, quase indevassado pelos homens. Comparando os dois hemisférios, recordei as designações da terminologia clássica, e demorei-me longos minutos reparando as especiais disposições dos nervos e as características da substância cinzenta.

A voz do meu orientador quebrou o silêncio, exclamando inopinadamente:

— Observa a sinalização.

Assombrado, notei, pela primeira vez, que as irradiações emitidas pelo cérebro continham diferenças essenciais. Cada centro motor assinalava-se com peculiaridades diversas, através das forças radiantes. Descobri, surpreso, que toda a província cerebral, pelos sinais luminosos, se dividia em três regiões distintas. Nos lobos frontais, as zonas de associação eram quase brilhantes. Do córtex motor, até a extremidade da medula espinhal, a claridade diminuía, para tornar-se ainda mais fraca nos gânglios basais.

Já despendia alguns minutos na contemplação das células nervosas, quando o Assistente me aconselhou:

— Examinaste o cérebro do companheiro que ainda se prende ao veículo denso; observa, agora, o mesmo órgão no amigo desencarnado que o influencia de modo direto.

A entidade, que não se dava conta de nossa presença, em virtude do círculo de vibrações grosseiras em que se mantinha, fixava toda a atenção no doente, lembrando a sagacidade de um felino vigiando a presa.

Observei-lhe estranha ferida na região torácica, e dispunha-me a investigar-lhe a causa, sondando os pulmões; quando Calderaro me corrigiu sem afetação:

— Trataremos da chaga no trabalho de assistência. Concentra as possibilidades da visão no cérebro.

Decorridos alguns momentos, concluí que, à parte a configuração das peças e o ritmo vibratório, tinha sob os olhos dois cérebros quase idênticos. Diferia o campo mental do desencarnado, revelando alguma superioridade no terreno da substância, que, no corpo perispiritual, era mais leve e menos obscura. Tive a impressão de que, se lavássemos, por dentro, o cérebro do amigo estirado no leito, escoimando-o de certos corpúsculos mais pesados, seria ele quase igual, em essência, ao da entidade que eu mantinha sob exame. As divisões luminosas, porém, eram em tudo análogas. Mais luz nos lobos frontais, menos luz no córtex motor e quase nenhuma na medula espinhal, onde as irradiações se faziam difusas e opacas.

Interrompi o estudo comparativo, depois de acurada perquirição, e fixei Calderaro em silenciosa interrogativa.


O prestimoso mentor argumentou, sorridente:

— Depois da morte física, o que há de mais surpreendente para nós é o reencontro da vida. Aqui aprendemos que o organismo perispirítico que nos condiciona em matéria mais leve e mais plástica, após o sepulcro, é fruto igualmente do processo evolutivo. Não somos criações milagrosas, destinadas ao adorno de um paraíso de papelão. Somos filhos de Deus e herdeiros dos séculos, conquistando valores, de experiência em experiência, de milênio a milênio. Não há favoritismo no Templo Universal do Eterno, e todas as forças da Criação aperfeiçoam-se no Infinito. A crisálida de consciência, que reside no cristal a rolar na corrente do rio, aí se acha em processo liberatório; as árvores que por vezes se aprumam centenas de anos, a suportar os golpes do Inverno e acalentadas pelas carícias da Primavera, estão conquistando a memória; a fêmea do tigre, lambendo os filhinhos recém-natos, aprende rudimentos do amor; o símio, guinchando, organiza a faculdade da palavra. Em verdade, Deus criou o mundo, mas nós nos conservamos ainda longe da obra completa. Os seres que habitam o Universo ressumbrarão suor por muito tempo, a aprimorá-lo. Assim também a individualidade. Somos criação do Autor Divino, e devemos aperfeiçoar-nos integralmente. O Eterno Pai estabeleceu como lei universal que seja a perfeição obra de cooperativismo entre Ele e nós, os seus filhos.

O mentor silenciou por instantes, sem que me acudisse ânimo suficiente para trazer qualquer comentário aos seus elevados conceitos.

Logo após, indicou-me a medula espinhal e continuou:

— Creio ociosa qualquer alusão aos trabalhos primordiais do nosso longo drama de vida evolutiva. Desde a ameba, na tépida água do mar, até o homem, vimos lutando, aprendendo e selecionando invariavelmente. Para adquirir movimento e músculos, faculdades e raciocínios, experimentamos a vida e por ela fomos experimentados, milhares de anos. As páginas da sabedoria hinduísta são escritos de ontem, e a Boa-Nova de Jesus-Cristo é matéria de hoje, comparadas aos milênios vividos por nós, na jornada progressiva.


Depois de fazer com a destra significativo gesto, prosseguiu:

— No sistema nervoso, temos o cérebro inicial, repositório dos movimentos instintivos e sede das atividades subconscientes; figuremo-lo como sendo o porão da individualidade, onde arquivamos todas as experiências e registramos os menores fatos da vida. Na região do córtex motor, zona intermediária entre os lobos frontais e os nervos, temos o cérebro desenvolvido, consubstanciando as energias motoras de que se serve a nossa mente para as manifestações imprescindíveis no atual momento evolutivo do nosso modo de ser. Nos planos dos lobos frontais, silenciosos ainda para a investigação científica do mundo, jazem materiais de ordem sublime, que conquistaremos gradualmente, no esforço de ascensão, representando a parte mais nobre de nosso organismo divino em evolução.

Os esclarecimentos singelos e admiráveis empolgavam-me. Calderaro era educador da mais elevada estirpe. Ensinava sem cansar, sabia conduzir o aprendiz a conhecimentos profundos sem nenhum sacrifício da parte do aluno.

Apreciava-lhe eu a nobreza, quando prosseguiu, findo breve intervalo:

— Não podemos dizer que possuímos três cérebros simultaneamente. Temos apenas um que, porém, se divide em três regiões distintas. Tomemo-lo como se fora um castelo de três andares: no primeiro situamos a “residência de nossos impulsos automáticos”, simbolizando o sumário vivo dos serviços realizados; no segundo localizamos o “domicílio das conquistas atuais”, onde se erguem e se consolidam as qualidades nobres que estamos edificando; no terceiro, temos a “casa das noções superiores”, indicando as eminências que nos cumpre atingir. Num deles moram o hábito e o automatismo; no outro residem o esforço e a vontade; e no último demoram o ideal e a meta superior a ser alcançada. Distribuímos, deste modo, nos três andares, o subconsciente, o consciente e o superconsciente. Como vemos, possuímos, em nós mesmos, o passado, o presente e o futuro.


Verificando-se pausa mais longa, dei curso às ponderações íntimas, segundo antigo vezo de inquirir.

As preciosas explicações que ouvira não poderiam ser mais simples, nem mais lógicas. Entretanto, perquiria a mim mesmo: o cérebro de um desencarnado seria também suscetível de adoecer? Sabia eu que a substância cinzenta, no mundo carnal, podia ser acometida pelos tumores, pelo amolecimento, pela hemorragia; mas na Esfera nova, a que a morte me conduzira, que fenômenos mórbidos assediariam a mente?

Calderaro registrou-me as indagações e esclareceu:

— Não discutiremos aqui as moléstias físicas propriamente ditas. Quem acompanha, como nós, desde muito tempo, o ministério dos psiquiatras verdadeiramente consagrados ao bem do próximo, conhece, à saciedade, que todos os títulos de gratidão humana permanecem inexpressivos ante o apostolado de um Paul Broca, que identificou a enfermidade do centro da palavra, ou de um Wagner Jauregg, que se dedicou à cura da paralisia, em perseguição ao espiroqueta da sífilis, até encontrá-lo no recesso da matéria cinzenta, perturbando as zonas motoras. Diante de fenômenos como estes, é compreensível a quebra da harmonia cerebral em consequência de compulsoriamente se arredarem das aglutinações celulares do campo fisiológico os princípios do corpo perispiritual; essas aglutinações ficam, então, desordenadas em sua estrutura e atividades normais, qual acontece ao violino incapacitado para a execução perfeita dum trecho melódico, por trazer uma ou duas cordas desafinadas. Não devemos, nem podemos ignorar as leis que regem os domínios da forma… Daí a impossibilidade de querermos “psicologia equilibrada” sem “fisiologia harmoniosa”, na esfera da ciência humana: isto é caso pacífico. Referir-nos-emos tão só às manifestações espirituais em sua essência. Indagas se a mente desencarnada pode adoecer… Que pergunta! Cuidas que a maldade deliberada não seja moléstia da alma? Que o ódio não constitua morbo terrível? Supões, porventura, não haja “vermes mentais” da tristeza e da inconformação? Embora tenhamos a felicidade de agir num corpo mais sutil e mais leve, graças à natureza de nossos pensamentos e aspirações, já distantes das zonas grosseiras da vida que deixamos, não possuímos ainda o cérebro dos anjos. Constitui-nos incessante trabalho a conservação de nossa forma atual, a caminho de conquistas mais alcandoradas; não podemos descansar nos processos iluminativos; cumpre-nos purificar sempre, selecionar pendores e joeirar concepções, de molde a não interromper a marcha. Milhões vivem aqui, na posição em que nos achamos, mas outros milhões permanecem na carne ou em nossas linhas mais baixas de evolução, sob o guante de atroz demência. É para esses que devemos cogitar da patologia do espírito, socorrendo os mais infelizes e interferindo fraternal e indiretamente na solução de problemas escabrosos em cujos fios negros se enredam. São duendes em desespero, vítimas de si mesmos, em terrível colheita de espinhos e desilusões. O corpo perispiritual humano, vaso de nossas manifestações, é, por ora, a nossa mais alta conquista na Terra, no capítulo das formas. Para as almas esclarecidas, já iluminadas de redentora luz, representa ele uma ponte para o campo superior da vida eterna, ainda não atingido por nós mesmos; para os Espíritos vulgares, é a restrição indispensável e justa; para as consciências culpadas, é cadeia intraduzível, pois, além do mais, registra os erros cometidos, guardando-os com todas as particularidades vivas dos negros momentos da queda. O gênero de vida de cada um, no invólucro carnal, determina a densidade do organismo perispirítico após a perda do corpo denso. Ora, o cérebro é o instrumento que traduz a mente, manancial de nossos pensamentos. Através dele, pois, unimo-nos à luz ou à treva, ao bem ou ao mal.

Percebendo a atenção com que lhe seguia os preciosos esclarecimentos, Calderaro sorriu significativamente e perguntou:

— Compreendeste?

Indicando os dois sofredores, ao nosso lado, prosseguiu:

— Examinamos aqui dois enfermos: um, na carne; outro, fora dela. Ambos trazem o cérebro intoxicado, sintonizando-se absolutamente um com o outro. Espiritualmente, rolaram do terceiro andar, onde situamos as concepções superiores, e, entregando-se ao relaxamento da vontade, deixaram de acolher-se no segundo andar, sede do esforço próprio, perdendo valiosa oportunidade de reerguer-se; caíram, destarte, na esfera dos impulsos instintivos, onde se arquivam todas as experiências da animalidade anterior. Ambos detestam a vida, odeiam-se reciprocamente, desesperam-se, asilam ideias de tormento, de aflição, de vingança. Em suma, estão loucos, embora o mundo lhes não vislumbre o supremo desequilíbrio, que se verifica no íntimo da organização perispiritual.

Dispunha-me a desfiar longa lista de perguntas alusivas às duas personagens em foco, mas o interlocutor iniciou o serviço de assistência direta, e, impondo a destra no lobo frontal esquerdo do doente encarnado, falou-me, afável:

— Cala, meu amigo, tuas ansiosas indagações. Acalma-te. No transcurso de nossos trabalhos explicar-te-ei quanto estiver ao alcance de meus conhecimentos.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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