Entre a Terra e o Céu

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Capítulo XIV

Entendimento


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Antonina, modificada, esfregava os olhos como quem não desejava acreditar no que via, mas, resignando-se à evidência, continuou:

— Compadece-te de mim! Compadece-te!…

— Lola, donde vens? — perguntou o infeliz.

— Não me induzas a lembrar!…

— Não lembrar? Que condenado no tormento da expiação será capaz de esquecer? A culpa é um fogo a consumir-nos por dentro…

— Não me reconduzas ao passado!…

— Para mim é como se o tempo fosse o mesmo. O inferno não tem horas diferentes… A dor paralisa a vida dentro de nós…

— É preciso olvidar…

— Nunca! O remorso é um monstro invisível que alimenta as labaredas da culpa… A consciência não dorme…

— Não me rebentes o coração!

— E acaso o meu não vive estraçalhado?

O diálogo prosseguia comovente e Antonina, genuflexa, explodindo em angustiosa crise de lágrimas, implorou com mais força:

— Não golpeies minhas feridas mal cicatrizadas! Não se rouba ao devedor o ensejo de pagar!

— Entretanto, por ti, — gemeu o interlocutor, — enredei-me no crime… Amei-te e perdi-me. Trazias nos olhos a traição disfarçada… Oh! Lola, porquê, porquê?…

E, ante o doloroso acento com que essas palavras eram pronunciadas, a pobre mulher suplicou, mais triste:

— Leonardo, perdoa-me!… Sofri muito… Enlouqueceste, é verdade! Mas, a perturbação que me atacou era mais lastimável, mais amargosa!… Sabes o que seja o caminho da mulher aviltada, entre o arrependimento e a aflição? Meditaste, algum dia, no martírio do coração feminino, relegado à penúria e ao abandono? Refletiste, alguma vez, na desilusão e na fome da meretriz desprezada e doente? Acaso, poderás perceber o que seja a flagelação de quem espera a morte, sob o sarcasmo de todos, entre a sede e o suor? Tudo isso conheci!…

— Matei, porém, por tua causa… — tartamudeou o mísero, infundindo compaixão.

— Naquele tempo, — alegou a infortunada, — fiz pior. Exterminei minha alma… Esposa, troquei o altar doméstico pelo mentiroso tablado do gozo fácil; mãe, envileci o mandato que Deus me concedera, crestando todas as flores de minha felicidade!…

— Pudeste, no entanto, realizar o reerguimento que ainda não consegui… Foste, em suma, feliz!…

— Feliz? — bradou Antonina, semidesesperada, — acusas-me de infiel, quando, como tantos outros, te cansaste de mim, procurando outras novidades e outros rumos!… Vi-me sozinha, enferma, aniquilada… Debalde busquei afogar no vinho do prazer a horrível impressão do abismo em que me precipitara, porque, quando o desencanto e a enfermidade me relegaram à margem da vida, acordou-se-me a consciência, inculpando-me, desapiedada… A morte recolheu-me na vala da miséria, como um carro de higiene pública reclama o lixo da sarjeta… Estarás habilitado a compreender-me o sofrimento em toda a extensão?!… Por muitos anos, vagueei aflita, como ave sem ninho, refugiada no espinheiro de dor que cultivara em mim mesma… Esmolei proteção junto daqueles que me haviam sido afetos estimulantes da juventude… Ninguém se recordava de mim… Não me cabia recolher uma gratidão que eu não semeara… Até que um dia…

Antonina passou a destra pela fronte pálida, como se evocasse velhas recordações fortemente trancadas na memória. Seu olhar adquirira a assustadiça expressão dos enfermos que a febre torna dementados.

Findos alguns instantes, exibiu no rosto a surpresa de quem se banha num relâmpago de luz. Parecendo haver encontrado a imagem que ansiosamente procurara, continuou:

— … até que um dia, senti que me chamavas com pensamentos de carinho e de paz… Rememoravas alguns traços elogiáveis de nossa vida, recompondo na lembrança as festas que organizávamos em favor dos combatentes mutilados… As tuas divagações, arrancando ao pretérito as raras reminiscências felizes que poderíamos identificar, caíram sobre mim como bálsamo refrigerante… Chorei aliviada e adormeci em tua casa, no aconchego da família que tiveste a ventura de constituir…

Interrompeu-se Antonina, figurando-se-nos incapaz de prosseguir recordando. Via-se que esbarrara com insuperáveis impedimentos íntimos.

Emudecera, torturada pela incapacidade mnemônica que a assaltara de improviso, contudo, o nosso orientador acercou-se dela e afagou-lhe a cabeça, deixando perceber que a auxiliava magneticamente na recuperação das próprias forças.

— Não posso saber, — gritava Leonardo, — não posso saber! Desde que meu espírito foi ocupado por “ele”, não consigo coordenar as ideias que me são próprias… Sim, certamente sou culpado… Tens razão… Podias ter recebido meu concurso… Não me cabia pensar em ti como se fosses tão somente mulher…

Mais calma, a pobre interlocutora suplicou, triste:

— Agora, que te capacitas de minhas dificuldades, perdoa-me!… Não me move outro desejo senão o de renovar-me! Sofri muito, aprendi duramente!… Peço a proteção da Divina Bondade para todos aqueles que me não compreenderam e procuro sinceramente olvidar as ofensas que outros me assacaram, como desejo sejam esquecidas as ofensas que pratiquei contra os outros!… Não me reconduzas, pois, ao passado!… Compadece-te de mim!…

Reparávamos, com assombro, que Leonardo e Antonina, sob o controle paternal de Clarêncio, se mantinham detidos na posição vibratória em que haviam subitamente caído.

Porque não se recordavam os dois do parentesco que os reunia?

Nosso instrutor, assinalando-nos a indagação, socorreu-nos, esclarecendo:

— Encontram-se ambos imobilizados em certo momento do pretérito, num encontro provocado por influência magnética. Em tais recursos utilizados por nosso Plano, no tratamento salutar das moléstias da alma, determinados centros da memória se reavivam, ao passo que outros empalidecem. As sensações do presente dão lugar às sensações do passado, para efeito de reajustamento perante o futuro. O fenômeno, porém, é momentâneo. A breves minutos, regressarão à consciência normal, melhorados para a boa luta.

A explicação não podia ser mais satisfatória, nem mais simples.


O Ministro continuava prestando assistência à nossa amiga, qual se Antonina não devesse avançar na faixa de lembranças.

Aceitando-lhe os apelos, Leonardo como que arrefecera o ímpeto inicial de desesperação.

Fitava-a, agora, quase que piedosamente, mas, longe de albergar qualquer sentimento positivo de ordem superior, arrancou do próprio íntimo nova onda de cólera, que lhe tingiu a máscara fisionômica.

Cerrando os punhos, bradou, desvairado:

— Sim, sim, entendo-te… Foste suficientemente infeliz… Mas, porque trago comigo o fantasma “dele”? Ter-se-á convertido num demônio intangível para arrasar-me a existência? Estaremos no inferno, sem saber, agarrados um ao outro? Viverei dentro dele, quanto ele vive dentro de mim? Porque me não permite o verdadeiro repouso? Se procuro dormir, desperta-me, cruel; se tento olvidar, agiganta-se-me no pensamento!…

Desequilibrado, Pires ergueu para o teto os punhos retesos, ensaiou alguns passos no recinto estreito e passou a clamar:

— Esteves, homem ou diabo, onde estiveres, em mim ou fora de mim, corporifica-te e vem!… Estou pronto! Acertemos a diferença!… Vítima ou carrasco, aparece! Que meu pensamento te encontre e te traga!… Que as forças do nosso destino nos reúnam, enfim, corpo a corpo!…

Alguns instantes decorreram, quando fomos surpreendidos pela entrada de nova personagem na sala.

Era um homem de seus trinta e cinco anos presumíveis, que se abeirava de nós, igualmente fora do vaso físico.

Passeou no recinto esgazeado olhar, dando-nos a impressão de que não nos percebia a presença e, ofegante e contrariado, qual se estivesse ingressando ali, constrangidamente, deteve-se apenas na contemplação de Leonardo e Antonina, reconhecendo-os, estarrecido e agoniado.

Clarêncio, junto de nós, informou, prestimoso:

— Sob a positiva invocação de Leonardo, Esteves, parcialmente libertado pelo sono, comparece ao desafio. O repouso noturno favorece tais entendimentos, pela atração magnética mais intensivamente facilitada, quando o envoltório de matéria densa exige recuperação.

Notamos que os três protagonistas da cena que se improvisara jaziam repentinamente hipnotizados por vibrações de assombro e desespero.

Leonardo, porém, dando um salto à retaguarda, bradou:

— Agora! Agora, sim!… Vieste mesmo! Vejo-te, fora de minha cabeça, vejo-te como és!… Liquidemos nossa conta… Risca-me dentre os vivos ou eu te riscarei!…

— Piedade! Piedade!… — Suplicava Antonina, lacrimosa.

Pires, no entanto, parecia não ouvi-la, sob o olhar de Esteves que o observava, com visível repugnância.

Semi-apavorado e pondo-se em guarda, sacudido pelas próprias reminiscências, o recém-chegado respondeu, agressivo:

— Conheço-te e odeio-te!… Assassino, assassino!…


Engalfinhar-se-iam, sem dúvida, como animais enfurecidos, mas o nosso orientador interferiu, de imediato, imobilizando-os prontamente.

Tocado pelo Ministro, Esteves enxergou-nos e, surpreendido, aquietou-se.

Clarêncio confiou-o à nossa vigilância e, dirigindo-se a Leonardo, em voz segura, concitou:

— Meu amigo, extirpa da mente a ideia do crime. Achas-te cansado, enfermo. Receberás a medicação de que necessitas.

Num átimo, ausentou-se e regressou trazendo ao recinto dois amigos de nosso Plano, os quais transportaram Leonardo, semi-inconsciente, para um santuário de reajuste, em que mais tarde nos receberia a assistência.

Em seguida, nosso instrutor acomodou Esteves na poltrona singela, recomendando-lhe esperar-nos. O novo companheiro, amedrontado, obedeceu automaticamente.

Logo após, amparando Antonina, procuramos restituí-la ao quarto particular.

Consideramos, então, que se grande fora a ventura da pobre senhora na véspera, naquela noite assemelhava-se, desditosa, a um trapo de sofrimento.

Encontramos grande dificuldade para recompô-la em espírito e para religá-la à vestimenta carnal, quase inerte.

Revelava-se imensamente confrangida.

Por mais de duas horas mereceu-nos especial atenção. Somente depois de considerável esforço de Clarêncio, conseguiu refazer-se. Vimo-la acordar, exausta e entontecida.

Algo aliviada, Antonina acreditou-se liberta de estranho pesadelo. Ainda assim, sem saber explicar a razão, torturada e apreensiva, continuava soluçando…




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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