Entre a Terra e o Céu

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Capítulo XIX

Dor e surpresa


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— Júlio! Júlio! Comparece, covarde!… — Bramia o enfermeiro, possesso.

E percebendo talvez a simpatia que Amaro nos conquistara, à face da serenidade com que suportava a situação, prosseguiu, invocando, revel:

— Comparece para desmascarar o patife que procura comover-nos! Júlio, odeio-te! Mas é necessário apareças! Acusa teu desalmado assassino!…

O Ministro procurava contê-lo, bondoso, mas Silva, como potro indomesticado, gesticulava a esmo e continuava, conclamando:

— Júlio!… Júlio!…

Sim, Júlio não respondeu à chamada, entretanto, alguém surgiu, surpreendendo-nos a atenção. A irmã Blandina, em pessoa, qual se fora nominalmente intimada, estacou junto de nós. Envolvidos na doce luz que nos banhou, de improviso, aquietamo-nos, perplexos, à exceção de Clarêncio que se mantinha calmo, como se aguardasse semelhante visita.

Depois de saudar-nos, Blandina rogou, humilde:

— Irmãos, por amor a Jesus, atendei!… Temos Júlio, sob a nossa guarda. Acha-se doente, aflito… Vossos apelos individuais alteram-lhe o modo de ser… Poderia colocar-se mentalmente ao vosso encontro, contudo, atravessa agora difíceis provas de reajuste… Venho implorar-vos caridade!… Compadecei-vos de quem hoje se esforça por olvidar o que foi ontem para regenerar-se amanhã, com eficiência!…

Havia tanta aflição e tanta ternura naquela rogativa que a vibração do ambiente modificou-se, de súbito.

Comecei a entender com mais clareza a trama obscura do romance vivo que abordávamos. Júlio, o menino doente, era o companheiro que voltava na condição de filho do amigo com quem outrora se desaviera…


Não pude, porém, alongar divagações, porque Silva, provavelmente revoltado contra a emoção que nos senhoreava o espírito, passou a reclamar, de novo:

— Anjo ou mulher, não lutarei contra o sortilégio! Não lutarei! Mas preciso arrojar este bandido ao despenhadeiro que merece por suas deslavadas mentiras!… Que Júlio permaneça no Céu ou no inferno, sob a custódia dos arcanjos ou dos demônios, todavia, exijo que a verdade surja, inteira!… Recorro ao testemunho de Lina! Que Lina compareça! Que ela deponha! Se nos achamos aqui, convocados pelo destino que nos algema uns aos outros, que a pérfida mulher seja ouvida igualmente…

Nosso instrutor, assumindo a chefia espiritual do grupo, convidou com energia e brandura:

— Lina encontra-se não longe de nós. Entremos.

A determinação foi obedecida.

Na penumbra do quarto que já conhecíamos, a segunda esposa de Amaro jazia subjugada pela outra.

Enquanto Odila se nos afigurava mais rancorosa e mais dura, Zulmira revelava-se mais abatida.

Clarêncio enlaçou Mário, como um pai que recolhe um filho, carinhosamente, e, apontando a enferma, esclareceu, generoso:

— Amigo, acalma-te! Lina Flores, atualmente, padece na forja da luta e do sacrifício, a fim de recuperar-se. Apaga a labareda de ódio que te requeima o coração! Deixa que nova compreensão te beneficie a alma ulcerada!… Não nos cabe prejudicar o caminho de quem procura a regeneração que lhe é necessária!…

Ante o olhar de Mário, espantadiço e agoniado, o Ministro considerou:

— Lina, hoje, com imensas dificuldades, tenta alcançar a altura do casamento digno e, superando tremendos obstáculos, constrói os alicerces da missão de maternidade para a qual se encaminha… Ajudemo-la com as nossas vibrações de compreensão e carinho. Quando amamos realmente, antes de tudo é a felicidade da criatura amada que nos interessa…

Nosso grupo avançou algo mais. Junto de nós, Blandina mantinha-se em prece.

O orientador abeirou-se da doente, com atenção respeitosa, e mostrou-lhe o rosto ossudo e triste ao enfermeiro que, ao reconhecê-la, bradou, aterrado:

— Zulmira! Zulmira, então, é Lina que volta?

O Ministro acariciou-lhe a cabeça e informou, conciso:

— Sim, regressou em companhia de Armando, em dolorosas reparações. O consórcio para eles não foi o castelo de flores de laranjeira, mas sim uma associação de interesses espirituais para o trabalho regenerativo. Armando, em luta, no Plano da vida real, para reerguer-se, aceitou o compromisso de reconduzi-la à dignidade feminina, amparando-lhe as angústias silenciosas…


Estupefato, Silva exclamou, cambaleante:

— Quer dizer então que Zulmira me traiu duas vezes?

— Não te refiras à traição, — corrigiu Clarêncio, sem alterar-se, — é imprescindível compreender! Armando, ontem, escutou apelos inferiores, incompatíveis com as responsabilidades de que se via depositário. Hoje, é compelido a responder, embora constrangido, a requisições de natureza edificante, às quais, em verdade, não lhe será lícito fugir. Lina Flores reclama alguém que a recambie ao serviço renovador, a fim de que se habilite a auxiliar Júlio, devidamente. Todos somos devedores uns dos outros. As almas aprimoram-se, grupo a grupo, à maneira de pequenas constelações, gravitando em torno do Sol Magno, Jesus-Cristo!… Como um astro que se distancia do núcleo em que se integra, abandonaste a órbita de velhos companheiros de evolução, caindo, pelas vibrações de afetividade e ódio, no centro de forças em que Leonardo Pires e Lola Ibarruri aguardam-te a precisa cooperação, de modo a se liberarem perante a Lei. Amaro, noutro tempo, separou Zulmira e Júlio, estabelecendo espinheiros dilacerantes entre os dois… Agora, cabe-lhe reuni-los no carinho familiar, para que na posição de mãe e filho se reajustem na afeição santificadora… Antigamente, isolaste Leonardo da afetuosa assistência de Lola, criando embaraços asfixiantes à própria marcha… Prepara-te na fé para congregá-los, de novo, no templo doméstico, igualmente na condição de filho e mãe, de maneira a se redimirem para a bênção do amor puro… Nossas ações são pesadas na Justiça Divina… Não podemos enganar o Supremo Senhor. Nossos débitos, por isso mesmo, devem ser resgatados, ceitil a ceitil…

A ligeira preleção trouxera-nos enorme proveito.

Amaro dobrara a cerviz, revelando-se disposto a obedecer aos ditames de natureza superior, fossem como fossem.

Silva, no entanto, não parecia desperto para as verdades que Clarêncio pronunciara.


Hipnotizado na contemplação da mulher querida, demonstrava-se indiferente.

Depois de fitá-la, absorto, entre o carinho e a aversão, quebrou a quietude que envolvera o recinto, rugindo, desesperado:

— Não posso modificar-me, desgraçado de mim!… Odiarei! Odiarei a infame que voltou!… Somente a vingança me convém, não quero perdoar! Não quero perdoar!…

Novamente enraivecido e inquieto, como fera solta, erguia os punhos cerrados contra a desditosa mulher que jazia no leito, em lastimável prostração. Seu veículo espiritual rodeava-se agora de um halo cinzento-escuro, que despedia raios desagradáveis e perturbantes.

Nosso orientador libertou-o da influência magnética com que lhe tolhia as energias.

Tão logo se reconheceu sem o controle que lhe sofreava os movimentos, Silva retrocedeu, exclamando:

— Não suporto mais! Não suporto mais!…

E correu para o seio da noite.

Clarêncio recomendou-nos seguir-lhe o passo, enquanto prestaria assistência ao ferroviário e à esposa, em colaboração com Blandina. O enfermeiro, decerto, — informou o Ministro prestimoso, — retomaria o corpo denso em aflitivas condições de saúde. Passes anestesiantes deviam favorecê-lo. Não podia lembrar a experiência grave daquela hora. A aventura provocada pela insistência mental dele mesmo era suscetível de perigosas consequências.

Num átimo, Hilário e eu achamo-nos ao lado de Silva, que aderia ao envoltório de carne com o automatismo da molécula de ferro, atraída pelo ímã.

Examinamo-lo, atentamente.

O peito arfava-lhe, sibilante.

O coração acusava-se desgovernado, sob o império de insopitável arritmia…

De imediato, entramos em ação, sossegando-lhe o campo mental, quanto possível, através de sedativos magnéticos.

Ainda assim, apesar dos passes, pelos quais foi completamente envolvido de energias revigoradoras, o moço acordou agoniado, hesitante e trêmulo, como se estivesse fugindo de medonhas tempestades no mundo íntimo.

Semi-inconsciente, despendeu vários minutos para identificar-se.

O pensamento surgia-lhe atormentado, nebuloso…

Tentou locomover-se, mas não conseguiu. Sentia-se chumbado à cama, quase na situação de um cadáver repentinamente desperto.

Buscou alinhar recordações, contudo, não pôde.

Sabia tão somente que atravessara grande pesadelo cujas dimensões lhe não cabiam na memória.

Suarento, aflito, sentia-se morrer…

Instintivamente orou, suplicando a Proteção Divina.

Bastou essa atitude dalma para ligar-se, com mais facilidade, aos fluidos restauradores que lhe administrávamos.

Pouco a pouco, readquiriu os movimentos livres e levantou-se, ingerindo uma pílula calmante. Amedrontado, sentou-se no leito e, mergulhando a cabeça nas mãos, falou, sem palavras, de si para consigo: — “Estou evidentemente conturbado. Amanhã, consultarei um psiquiatra. É a minha única solução”.

Sim, — concordei comigo mesmo, — o ódio gera a loucura. Quem se debate contra o bem, cai nas garras da perturbação e da morte.

Com semelhante raciocínio, afastei-me.

Clarêncio aguardava-nos.

Era preciso continuar na lição.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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