Entre a Terra e o Céu

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Capítulo XXIV

Carinho reparador


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Odila, sob o patrocínio da irmã Clara, foi internada numa instituição de tratamento por alguns dias, e durante sete noites consecutivas visitamos Zulmira, em companhia de nosso orientador, a fim de auxiliar o soerguimento dela.

A segunda esposa de Amaro mostrava-se melhor. Mais silenciosa. Mais calma.

Não saíra, porém, da inércia a que se recolhera.

Alijara a excitação de que se via objeto, mas prosseguia entregue a extrema prostração.

Subnutrida, apática, sustentava-se no mais absoluto desânimo.

Atendendo-nos à inquirição habitual, Clarêncio observou, prestimoso:

— Acha-se agora liberta, contudo, reclama estímulo para subtrair-se à exaustão. Falta-lhe a vontade de lutar e viver. Confiemos, no entanto. A própria Odila favorecer-lhe-á a recuperação. À medida que se lhe restaure a visão espiritual, a primeira esposa de Amaro aceitará o imperativo de renúncia e fraternidade para construir o futuro que lhe interessa.

Zulmira, com efeito, continuava livre e tranquila.

As peças do corpo funcionavam com irrepreensível harmonia, mas, efetivamente, algo prosseguia faltando…

A máquina mostrava-se reequilibrada, entretanto, mantinha-se preguiçosa, exigindo adequadas providências.


Transcorrida uma semana 1rmã Clara convidou-nos a breve entendimento.

Comunicou-nos que Odila revelava grande transformação.

Submetida à assistência magnética, a fim de sondar o passado, reconhecera o impositivo de sua colaboração com o marido para alcançarem ambos a vitória real nos Planos do espírito.

Suspirava pelo reencontro com o filhinho, dispunha-se a tudo fazer para ser útil ao esposo e à filhinha…

E, para tanto, combateria a repulsa espontânea que experimentava por Zulmira, a quem auxiliaria como irmã, reajustando-se devidamente para fortalecê-la e ampará-la.

A benfeitora mostrava-se satisfeita.

Recomendava-nos trouxéssemos Amaro, tão logo pudesse ele ausentar-se do veículo físico, na noite próxima, até à casa espiritual de refazimento em que Odila se encontrava.

Do entendimento entre ambos, resultariam decerto os melhores efeitos.

A mãezinha de Evelina estava reformada e daria provas do reajuste, efetuando o primeiro esforço para a reconciliação.

A solicitação de Clara foi alegremente atendida.

Depois de meia-noite, quando o ferroviário se rendeu à branda influência do sono, guiamo-lo ao sítio indicado.

No aposento claro e florido do santuário de recuperação em que Odila se localizava, aguardava-nos a instrutora junto dela.

O pai de Júlio, que seguia menos consciente ao nosso lado, em reconhecendo a presença da mulher que amava, ajoelhou-se, cobrou a lucidez que lhe era possível em tais circunstâncias, e exclamou, enlevado:

— Odila!… Odila!…

— Amaro! — Respondeu a antiga companheira, então completamente transfigurada. — Sou eu! Sou eu quem te pede coragem e fé, serenidade e valor na tarefa a realizar!…

— Estou farto, farto… — Clamou ele, agora em lágrimas a lhe verterem, copiosas.

Odila, sustentada pela venerável amiga, levantou-se com alguma dificuldade e, alisando-lhe os cabelos, perguntou, em voz comovida:

— Farto de quê?

— Sinto-me entediado da vida… Casei-me, de novo, como deves saber, acreditando garantir a segurança de nossos filhos para o futuro, entretanto, a mulher que desposei nem de longe chega a teus pés… Fui ludibriado! Em lugar da felicidade, encontrei o desapontamento que não sei disfarçar!…

E, fitando-a com enternecedora expressão, comentou, triste:

— Nosso Júlio morreu num desastre, quando encerrava para mim as melhores aspirações, nossa filha se estiola num quarto sem alegria e a madrasta que lhes impus apodrece num leito!… Ah! Odila, poderás compreender o que sofro? Tenho rogado a morte ao Céu para que nos reunamos na eternidade, mas a morte não vem…

A esposa, compreensivelmente mais bela pelos pensamentos redentores que agora lhe manavam do ser, com os olhos enevoados de pranto, falou-lhe com inflexão inesquecível:

— Sim, Amaro, compreendo! Também eu padeci muito, no entanto, hoje reconheço que a nossa dor é agravada por nós mesmos… Porque havemos de converter a distância em rebelião e a saudade em venenoso fel? Porque não reconhecer a Majestade Suprema de Deus, na orientação de nossos destinos? Não temos sabido cultivar o amor que é sacrifício na Terra para a edificação de nosso paraíso espiritual… Temos exigido quando devemos dar, dilacerado quando nos cabe recompor!… Amaro, é preciso acalmar o coração para que a vida nos auxilie a entendê-la, é indispensável ceder de nós, a fim de receber dos outros o concurso de que necessitamos… Na aspereza de meus sentimentos deseducados, vinha eu adubando o espinheiro do ciúme, atormentando-te o pensamento e perturbando a nossa casa! Mas, em alguns dias rápidos, adquiri mais ampla penetração em nossos problemas, usando a chave da boa vontade!… Quero melhorar-me, progredir, reviver…

O ferroviário contemplou-a, carinhoso e reverente, e acentuou, desalentado:

— Isso não impede a terrível realidade. Achamo-nos em dois mundos diferentes… Infortunado que sou! Sinto-me desarvorado e infeliz!…

— Achava-me igualmente assim, contudo, procurei no silêncio e na oração o roteiro renovador.

— Que fazer de Zulmira, colocada entre nós como empecilho à nossa verdadeira união?

— Não raciocines desse modo! Ela não permaneceria em tua estrada sem motivo justo.

Nesse instante, Clarêncio abeirou-se do ferroviário e, tocando-lhe a fronte com a destra, ofereceu-lhe ao campo mental o retorno imediato das recordações das dívidas por ele contraídas no Paraguai.

Amaro estremeceu e continuou escutando.

— Se Zulmira foi situada no templo de nosso amor, — prosseguiu Odila, admiravelmente inspirada, — é que nosso amor lhe deve a bênção da felicidade de que nos sentimos possuídos…

— Sim… sim… — Aprovava agora o interlocutor, de posse das reminiscências fragmentárias que lhe assomavam do coração.

— Interpretemo-la por nossa filha, por irmã de Evelina, cujos passos nos compete encaminhar para o bem. O lar não é apenas o domicílio dos corpos… É o ninho das almas, em cujo doce aconchego desenvolvemos as asas que nos transportarão aos cumes da glória eterna. Aceitemos a provação e a dor, como abençoadas instrutoras de nossa romagem para Deus…

— Todavia, — ponderou o moço, triste, — sabes quanto te amo!…

— Não ignoras, por tua vez, que o teu coração constitui para mim o tesouro maior da vida, entretanto, hoje vejo o horizonte mais largo… Valeria realmente o brilho dos oásis fechados? Serviria a construção de um palácio, em pleno deserto, onde estaríamos humilhando com a nossa saciedade os viajores que passassem por nós, mortificados de sede e fome? Como categorizar o carinho que se pervertesse no isolamento, a pretexto de conservar a ventura só para si? Renovemo-nos, Amaro! Nunca é tarde para recomeçar o bem!… Trabalhemos, valorizando o tempo e a vida!…

Tocado talvez nas fibras mais íntimas, o pai de Evelina chorava convulsivamente, infundindo piedade.

Odila enlaçou-o com mais ternura e Clara convidou-nos a excursão através do grande jardim próximo.

A breves instantes, achávamo-nos em plena contemplação do céu…

Os dois cônjuges instalaram-se em perfumado recanto para a conversação a sós.

Notamos que a orientadora se preocupava em deixá-los entregues um ao outro, para mais seguro ajuste espiritual. E, enquanto ambos se recolhiam a confortadoras confidências, distanciamo-nos, de algum modo, admirando a beleza da noite.

Maravilhoso, o firmamento cintilava.

Longínquas constelações como que nos acenavam, indicando glorioso futuro…

Virações suaves deslizavam, de leve, quais se fossem cariciosas e intangíveis mãos do vento, amimando-nos a cabeça.

Flores de rara beleza vertiam do cálice raios de claridade diurna, como pequeninos e graciosos reservatórios do esplendor solar.

Irmã Clara fascinava-nos com a sua palavra brilhante. Com simplicidade encantadora, comentava suas viagens a outras Esferas de trabalho e realização, exaltando em cada narrativa o amor e a sabedoria do Pai Celestial.

Por largo tempo, embevecidos, permutamos impressões acerca da excelsitude da vida que se nos revela sempre mais surpreendente e mais bela, em cada Plano da Criação.

Avizinhava-se o novo dia…

Tornamos à presença do casal para devolver o companheiro ao lar terrestre. Ambos, ao término do grande entendimento, apresentavam o rosto pacificado e radiante.

Irmã Clara guardou a pupila nos braços e as duas seguiram-nos a romagem de volta.

Em casa, Amaro despediu-se de nós, risonho e calmo.

Dispúnhamo-nos à retirada, quando a instrutora nos advertiu:

— Esperemos. Odila retomará hoje a tarefa.

O relógio marcava seis da manhã.

À maneira de colegial em dia de prova, a transfigurada mãezinha de Júlio fitava-nos com extrema expectação…

Amaro recuperou o corpo físico, descerrando os olhos com excelentes disposições.

Não conseguira relacionar os aspectos particulares da excursão, mas conservava no cérebro a indefinível certeza de que estivera com a primeira esposa em “algum lugar” e que a vira reanimada e feliz.

Distendeu os braços com a deliciosa tranquilidade de quem encontra o fim de longa e aflitiva tensão nervosa.

Levantou-se, reparando que o dia começava alegre e lindo, sem dar conta de que a alegria e a beleza haviam renascido nele próprio.

Sentia vontade de rir e cantar…

E, depois de ausentar-se do banheiro, onde cantarolou baixinho uma canção que lhe recordava o tempo em que se consorciara pela primeira vez, tornou, sorridente, ao quarto de dormir.

Foi então que Odila o enlaçou carinhosamente e exclamou:

— Vamos, querido! Estendamos a nossa felicidade! Zulmira espera por nosso amor…




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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