Entre a Terra e o Céu

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Capítulo XXIX

Ante a reencarnação


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Na noite imediata, atendendo-nos a solicitação, Clarêncio conduziu-nos ao domicílio do ferroviário, para observações.

Penetramos respeitosamente o quarto em que Odila nos recebeu, contente e gentil.

Tudo lhe parecia desdobrar-se com segurança. Júlio dormia.

Não mais acordara, informou a guardiã, feliz. Tinha a impressão de que o reencarnante desaparecia pouco a pouco, na constituição orgânica de Zulmira, como se a futura mãezinha fosse um filtro miraculoso a absorvê-lo.

A genitora desencarnada mostrava-se satisfeita e esperançosa. Preferia ver o filhinho confiado ao sono profundo. As aflições e os gemidos dele lhe haviam dilacerado o coração.

O renascimento, por esse motivo, representava uma bênção para as inquietantes responsabilidades maternais de que se via detentora.

Observamos que Júlio se caracterizava por enorme diferença.

O corpo sutil do menino denotava espantosa transformação. Adelgaçara-se de maneira surpreendente.

Tive a ideia de que ele e Zulmira, alma com alma, se fundiam um no outro. A moça ganhara em plenitude física e vivacidade espiritual quanto perdia o menino na apresentação exterior. Júlio adormecera aliviado, ao passo que a jovem senhora demonstrava admirável despertamento para a vida. A segunda esposa de Amaro modificara-se de modo sensível. Como as pessoas felicitadas por novos títulos de confiança no trabalho, revelava-se mais alegre e mais cônscia das obrigações que lhe competiam.

A transfusão fluídica era ali evidente.

O organismo materno assemelhava-se a um alambique destinado a sutilizar as energias do reencarnante para restituí-las, decerto, a ele mesmo, na formação do novo envoltório.


Registrando-nos o assombro, o instrutor explicou com a sua habitual gentileza:

— A reencarnação, tanto quanto a desencarnação, é um choque biológico dos mais apreciáveis. Unido à matriz geradora do santuário materno, em busca de nova forma, o perispírito sofre a influência de fortes correntes eletromagnéticas, que lhe impõem a redução automática. Constituído à base de princípios químicos semelhantes, em suas propriedades, ao hidrogênio, a se expressarem através de moléculas significativamente distanciadas umas das outras, quando ligado ao centro genésico feminino experimenta expressiva contração, à maneira do indumento de carne sob carga elétrica de elevado poder. Observa-se, então, a redução volumétrica do veículo sutil pela diminuição dos espaços inter-moleculares. Toda matéria que não serve ao trabalho fundamental de refundição da forma é devolvida ao Plano etereal, oferecendo-nos o perispírito esse aspecto de desgaste ou de maior fluidez.

— Quer dizer então… — Aventurou Hilário, em sua curiosidade construtiva.

— Quero dizer que os princípios organogênicos essenciais do perispírito de Júlio já se encontram reduzidos na intimidade do altar materno, e, à maneira de um ímã, vão aglutinando sobre si os recursos de formação do novo vestuário de carne que lhe será o vaso próximo de manifestação.

— E a forma a rarefazer-se sob nossos olhos? — Inquiriu meu colega, espantado.

— Está em ativo processo de dissolução.

E, com a bela serenidade que lhe assinala o espírito, continuou elucidando:

— Também o corpo físico parece dormir na desencarnação, quando, na realidade, começa a restituir as unidades químicas que o compõem à Natureza que lhos emprestou a título precário, apenas com a diferença de que a alma desencarnada, ainda mesmo quando em deploráveis condições de sofrimento e inferioridade, avança para a libertação relativa, ao passo que, em nos reencarnando, sofremos o processo de volta às teias da matéria densa, não obstante orientados por nobres objetivos de evolução.


É por isso que, conduzidos à reconstituição orgânica, revivemos, nos primeiros tempos da organização fetal, embora apressadamente, todo o nosso pretérito biológico. Cada ser que retoma o envoltório físico revive, automaticamente, na reconstrução da forma em que se exprimirá na Terra, todo o passado que lhe diz respeito, estacionando na mais alta configuração típica que já conquistou, para o trabalho que lhe compete, de acordo com o degrau evolutivo em que se encontra.

A maneira simples pela qual Clarêncio esflorava problemas tão complexos, induzia-nos a sublimados pensamentos, quanto à magnitude das Leis Universais.

Ali, diante de um caso comum de reencarnação, auxiliado apenas pelas nossas preces no culto à fraternidade, obtínhamos vastas elucidações sobre o plano geral da existência.


Inspirado talvez na mesma faixa de reflexões que me preocupavam o espírito, Hilário inquiriu:

— Os princípios que analisamos funcionam em igualdade de circunstâncias para os animais?

— Como não? — Replicou o nosso orientador, paciente, — todos nos achamos na grande marcha de crescimento para a imortalidade. Nas linhas infinitas do instinto, da inteligência, da razão e da sublimação, permanecemos todos vinculados à lei do renascimento como inalienável condição de progresso. Atacamos experiências múltiplas e recapitulamo-las, tantas vezes quantas se fizerem necessárias, na grande jornada para Deus. Crisálidas de inteligência nos setores mais obscuros da Natureza evolvem para o plano das inteligências fragmentárias, onde se localizam os animais de ordem superior que, por sua vez, se dirigem para o reino da consciência humana, tanto quanto os homens, pouco a pouco, se encaminham para as gloriosas Esferas dos anjos.

O instrutor, entretanto, voltou-se para o leito em que mãe e filho jaziam, intimamente associados, e sentenciou:

— Preocupemo-nos, porém, com o serviço da hora presente. Estudemos o caso sob nossa observação para que o nosso dever de solidariedade seja bem cumprido.

O apontamento reajustou-nos.


Hilário que, tanto quanto eu, se mostrava interessado em aproveitar a lição, fixando o quadro sob nossos olhos, pediu uma explicação tão simples quanto possível acerca da comunhão fisiopsíquica de Zulmira e Júlio naquele instante, ao que Clarêncio respondeu, após refletir alguns momentos:

— Imaginemos um pêssego amadurecido, lançado à cova escura, a fim de renascer. Decomposto em sua estrutura, restituirá aos reservatórios da Natureza todos os elementos da polpa e dos demais envoltórios que lhe revestem os princípios vitais, reduzindo-se no imo do solo ao embrião minúsculo que se transformará, no espaço e no tempo, em novo pessegueiro.


O ensinamento não podia ser mais lógico, mais preciso.

— Então, por isso, — acrescentou Hilário, estudioso, — é que as crianças desencarnadas reclamam período de tempo mais ou menos longo para demonstrarem crescimento mental, como ocorre na existência comum…

— Isso acontece com a maioria, — informou o Ministro, — de vez que há exceções na regra. Em muitas circunstâncias, semelhante imposição não existe. Quando a mente já desenvolveu certas qualidades, aprimorando-se em mais altos degraus de sublimação espiritual, pode arrojar de si mesma os elementos indispensáveis à composição dos veículos de exteriorização de que necessite em Planos que lhe sejam inferiores. Nesses casos, o Espírito já domina plenamente as leis de aglutinação da matéria, no campo de luta que nos é conhecido e, por esse motivo, governa o fenômeno da própria reencarnação sem subordinar-se a ele.


Fitávamos o semblante calmo de Zulmira, que respirava serena, feliz.

— O problema de Júlio, no entanto, — considerei, — afigura-se-nos bastante doloroso…

— Doloroso mas educativo, quanto o de milhares de criaturas, cada dia, na Terra, — ponderou Clarêncio, imperturbável. — Nosso companheiro vencido e enfermo, em razão de compromissos adquiridos na carne, na carne encontrará caminho ao próprio reajuste.

— E a questão da hereditariedade? — Indagou meu companheiro, reverente. — Júlio, perdendo o corpo sutil em que chorava atormentado, ressurgirá na existência física sem a moléstia que o apoquentava, por herdar fatalmente os característicos biológicos dos pais?

O orientador sorriu, de maneira expressiva, e asseverou:

— A hereditariedade, qual é aceita nos conhecimentos científicos do mundo, tem os seus limites. Filhos e pais, indubitavelmente, ainda mesmo quando se cataloguem distantes uns dos outros, sob o ponto de vista moral, guardam sempre afinidade magnética entre si; desse modo, os progenitores fornecem determinados recursos ao Espírito reencarnante, mas esses recursos estão condicionados às necessidades da alma que lhes aproveita a cooperação, porque, no fundo, somos herdeiros de nós mesmos. Assimilamos as energias de nossos pais terrestres, na medida de nossas qualidades boas ou más, para o destino enobrecido ou torturado a que fazemos jus, pelas nossas conquistas ou débitos que voltam à Terra conosco, emergindo de nossas anteriores experiências.

— Somos então levados a crer que Júlio transportará consigo a enfermidade que sofria em nosso Plano, à maneira de alguém que, em se mudando de domicílio, não modifica o quadro orgânico… — Observou Hilário, com sensatez.

— Isso mesmo, — elucidou o Ministro, satisfeito, — o problema é de natureza espiritual. Durante a gravidez de Zulmira, a mente de Júlio permanecerá associada à mente materna, influenciando, como é justo, a formação do embrião. Todo o cosmo celular do novo organismo estará impregnado pelas forças do pensamento enfermiço de nosso irmão que regressa ao mundo. Assim sendo, Júlio renascerá com as deficiências de que ainda é portador, embora favorecido pelo material genético que recolherá dos pais, nos limites da lei de herança, para a constituição do novo envoltório.

Depois de breve pausa, concluiu:

— Como vemos, na mente reside o comando. A consciência traça o destino, o corpo reflete a alma. Toda agregação de matéria obedece a impulsos do Espírito. Nossos pensamentos fabricam as formas de que nos utilizamos na vida.

Calou-se o instrutor.

Odila tomou a palavra comentando as suas esperanças para o futuro.

Conversamos de novo, animadamente.

E, logo após, uma prece do Ministro encerrava para nós a deliciosa reunião.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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