Entre a Terra e o Céu

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Capítulo XIII

Análise mental


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O relógio terrestre assinalava meia-noite e três quartos, quando tornamos ao singelo domicílio de Antonina.

A casinha dormia, calma.

Acocorado a um canto, o velho Leonardo mantinha-se na sala, pensando… pensando… Adensamo-nos, ante a visão dele, e, reconhecendo-nos, ergueu-se e começou a gritar:

— Ajudai-me, por amor de Deus! Estou preso! Preso!…

Clarêncio, bondoso, convidou-o a acomodar-se na poltrona simples e induziu-o à prece.

O velhinho, contudo, alegou total esquecimento das orações que formulara no mundo, crendo que apenas lhe serviriam as palavras decoradas, mas o orientador, elevando a voz, com o intuito evidente de sossegá-lo na confiança íntima, pronunciou comovente súplica à Divina Providência, implorando-lhe proteção e segurança para quem se mostrava tão desarvorado e tão infeliz.

Emocionados com aquela petição que nos renovava igualmente as disposições interiores, observamos que o avô de Antonina se aquietara, resignado.

Clarêncio, logo após a oração, começou a aplicar-lhe forças magnéticas no campo cerebral.

O paciente revelou-se mais intensamente abatido.

A cabeça pendeu-lhe sobre o peito, desgovernada e sonolenta.

Fitando-nos de modo significativo, o Ministro ponderou:

— A corrente de força devidamente dinamizada no passe magnético arrancá-lo-á da sombra anestesiante da amnésia. Poderemos, então, sondar-lhe o íntimo com mais segurança. Assistido por nossos recursos, a memória dele regredirá no tempo, informando-nos quanto à causa que o retém junto da neta, aclarando-nos, ainda, sobre prováveis ligações que nos conduzirão à chave do socorro, a benefício dele mesmo.

— Mas o retrocesso das recordações poderá verificar-se de improviso? — Indagou Hilário, perplexo.

— Sem dúvida, — respondeu o instrutor, — a memória pode ser comparada a placa sensível que, ao influxo da luz, guarda para sempre as imagens recolhidas pelo Espírito, no curso de seus inumeráveis aprendizados, dentro da vida. Cada existência de nossa alma, em determinada expressão da forma, é uma adição de experiência, conservada em prodigioso arquivo de imagens que, em se superpondo umas às outras, jamais se confundem. Em obras de assistência, qual a que desejamos movimentar, é preciso recorrer aos arquivos mentais, de modo a produzir certos tipos de vibração, não só para atrair a presença de companheiros ligados ao irmão sofredor que nos propomos socorrer, como também para descerrar os escaninhos da mente, nas fibras recônditas em que ela detém as suas aflições e feridas invisíveis.

— Quer dizer então que…

A frase de Hilário, porém, se lhe apagou nos lábios, porque o Ministro atalhou, completando-lhe a conceituação:

— A mente, tanto quanto o corpo físico, pode e deve sofrer intervenções para reequilibrar-se. Mais tarde, a ciência humana evolverá em cirurgia psíquica, tanto quanto hoje vai avançando em técnica operatória, com vistas às necessidades do veículo de matéria carnal. No grande futuro, o médico terrestre desentranhará um labirinto mental, com a mesma facilidade com que atualmente extrai um apêndice condenado.

Hilário arregalou os olhos, espantado, feliz. E exclamou, em voz quase gritante:

— Ah! Freud, como viste a verdade!… Como detinhas a razão!…

O orientador fixou-o, paternalmente, e aduziu:

— Freud vislumbrou a verdade, mas toda verdade sem amor é como luz estéril e fria. Não bastará conhecer e interpretar. É indispensável sublimar e servir. O grande cientista observou aspectos de nossa luta espiritual na senda evolutiva e catalogou os problemas da alma, ainda encarcerada nas teias da vida inferior. Assinalou a presença das chagas dolorosas do ser humano, mas não lhes estendeu eficiente bálsamo curativo. Fez muito, mas não o bastante. O médico do porvir, para sanar as desarmonias do espírito, precisará mobilizar o remédio salutar da compreensão e do amor, retirando-o do próprio coração. Sem mão que ajude, a palavra erudita morre no ar.


O Ministro, contudo, calou-se, dando-nos a entender que o momento não comportava digressões filosóficas.

Acariciou, ainda por alguns instantes, a cabeça do ancião e, em seguida, chamou-o, de manso:

— Leonardo, recorda! Volta ao Paraguai, onde adquiriste o remorso que hoje te retalha o coração! A dor, quase sempre, é culpa sepultada dentro de nós… Retrocedamos ao ponto inicial de teu sofrimento!… Recorda! Recorda!…

O velhinho, diante de nosso intraduzível assombro, acordou de olhos transtornados.

Ergueu a fronte, mas seu rosto alterara-se de maneira sensível.

Sustentava, iniludivelmente, os traços fundamentais, mas fizera-se mais jovem.

Registrando a surpreendente transfiguração, Hilário interferiu, perguntando:

— Oh! Que força mágica será esta?

Nosso orientador fitou-o, sereno, e esclareceu:

— Não nos esqueçamos de que temos diante de nós o veículo espiritual, por excelência vibrátil. O corpo da alma modifica-se, profundamente, segundo o tipo de emoção que lhe flui do âmago. Isso, aliás, não é novidade. Na própria Terra, a máscara física altera-se na alegria ou no sofrimento, na simpatia ou na aversão. Em nosso Plano, semelhantes transformações são mais rápidas e exteriorizam aspectos íntimos do ser, com facilidade e segurança, porque as moléculas do perispírito giram em mais alto padrão vibratório, com movimentos mais intensivos que as moléculas do corpo carnal. A consciência, por fulcro anímico, expressa-se, desse modo, na matéria sutil com poderes plásticos mais avançados.


Clarêncio relanceou o olhar pelo recinto e acrescentou:

— Entretanto, não nos descuidemos do serviço a fazer.

Nesse ínterim, Leonardo soerguera-se.

Parecia animado de estranha energia.

O corpo, não obstante continuar obscuro e pastoso, revelava-se desempenado.

Repentinamente refeito, vigoroso e móbil, clamou:

— Lola! Lola! Estás aqui? Sinto-te a presença… Onde te ocultas? Ouve-me! Ouve-me!

Com inexprimível espanto, vimos dona Antonina escapar do aposento, no corpo espiritual com que a divisáramos na véspera.

Avançou ao nosso encontro, extremamente surpreendida, e, avistando o avô transfigurado, como se fosse tangida no imo da personalidade por misteriosa influência, estampou súbita alteração facial, renovando-se igualmente aos nossos olhos.

As linhas do semblante modificaram-se, de inopino, e vimo-la realmente mais bela, todavia, menos serena e menos espiritualizada.

Favorecendo-nos o máximo proveito nas observações, o Ministro falou em voz baixa:

— Nossa irmã exige tão somente leve auxílio magnético para lembrar-se. Basta-lhe a emotividade anormal do reencontro para cair na posição vibratória do passado, de vez que ainda não se encontra quitada com a Lei.

Aterrada, Antonina rojou-se de joelhos aos pés do ancião que se rejuvenescera ao influxo dos passes de Clarêncio e gritou:

— Leonardo!… Leonardo!…

Ele, porém, irradiando no olhar ódio e padecimento intraduzíveis, bradou:

— Enfim!… Enfim!…

E prorrompeu em pranto convulso.

Estupefatos, ouvimos Clarêncio que nos informava, generoso:

— Repararam? Antonina é Lola Ibarruri reencarnada. Leonardo está vinculado a ela por laços de imenso amor. Ambos procedem de lutas enormes, na teia infinita do tempo. A mulher irresponsável de ontem, hoje é mãe amorosa e digna, à procura da própria regeneração. Tendo abandonado outrora o marido, foi induzida a desposar um homem animalizado, com quem se encontra igualmente enleada por laços do pretérito e que, em não a entendendo agora, relegou-a ao esquecimento. Recebeu, contudo, antigos associados de destino por filhos do coração, que conduz para o bem. Em contraposição às facilidades delituosas do passado, atravessa atualmente aflitivos obstáculos para viver.

Simpatia incoercível inclinou-nos para aquela mulher em provas tão ríspidas.

O ensinamento que a vida ali nos ofertava era efetivamente sublime.

A voz do orientador, no entanto, era clara e segura a recomendar:

— Ajudemos. O momento determina auxiliar.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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