Entre a Terra e o Céu
Versão para cópiaPreparando a volta
Quatro semanas correram céleres, quando fomos realmente procurados por Odila, no Templo do Socorro, para um entendimento particular.
Clarêncio, Hilário e eu recebemo-la quase sem surpresa.
Vinha algo triste e preocupada.
Com respeitosa delicadeza, contou-nos a experiência inquietante que atravessava.
Júlio prosseguia apresentando na fenda glótica a mesma ferida. Instalara-se com ele em aposentos adequados na Escola das Mães e ao filhinho dispensava todo o cuidado suscetível de reerguer-lhe as energias, entretanto, a luta continuava… Recursos medicamentosos e passes magnéticos não faltavam, contudo, não surtiam efeito.
Daria tudo para vê-lo forte e feliz.
Esperava a descoberta de algum milagre, capaz de atender-lhe o anseio de mãe, no entanto, visitara em companhia de Blandina outros setores de assistência à infância torturada; vira inúmeras crianças infelizes, portadoras de problemas talvez mais dolorosos que aqueles do filhinho bem-amado.
Apavorara-se.
Jamais supusera a existência de tantas enfermidades depois da morte.
Tentara obter os bons ofícios de vários amigos, para esclarecer-se convenientemente, e todos, à uma, repetiam sempre que os compromissos morais adquiridos conscientemente na carne somente na carne deveriam ser resolvidos, e que, por isso mesmo, a reencarnação para Júlio era o único caminho a seguir.
O corpo físico funcionaria como abafador da moléstia da alma, sanando-a, pouco a pouco…
Que fizera o menino no pretérito para receber semelhante punição?
A pobre senhora enxugava as lágrimas que lhe caíam espontâneas.
Clarêncio, profundo conhecedor do sofrimento humano, falou como sacerdote:
— Odila, o passado agora não é o remédio próprio. Atendamos à hora que passa. Temos Júlio extremamente necessitado à nossa frente e o alívio dele é o nosso objetivo mais imediato.
A mãezinha resignada concordou num gesto silencioso.
— Também creio, — prosseguiu o nosso instrutor, imperturbável, — que a reencarnação do pequeno é urgente medida se desejamos observá-lo no caminho da própria recuperação.
— Irmã Clara recomendou-me viesse rogar-lhe o concurso. Ajude-me, abnegado amigo!…
— Somos todos irmãos, — ajuntou Clarêncio generoso, — e achamo-nos uns à frente dos outros para a prestação do serviço mútuo. Nosso Júlio não é uma criatura comum e, por esse motivo, não seria justo renascer no mundo a esmo, como planta inculta germinando à toa, no mato da vida inferior. Assim sendo, analisemos o quadro de tuas relações afetivas…
Depois de ligeira pausa, acrescentou:
— Tens grande plantio de amizades puras na Terra? Em questões de auxílio, não podemos perder os nossos sentimentos de vista. Tanto para entrar no reino do Espírito, como para entrar no reino da carne, em melhores condições, não podemos prescindir da cooperação de amigos sinceros que nos conheçam e nos amem..
— Ah! Sim, compreendo… — Exclamou a interlocutora com algum desapontamento. — Sempre ocupada com a nossa casa e com a nossa família, nunca pude efetivamente cultivar tantas afeições, como seria de desejar. Amaro, porém…
— Perfeitamente, — atalhou o Ministro, completando-lhe a frase, — estou certo de que Amaro continuará sendo para o menino um admirável companheiro, entretanto, não podemos dispensar no cometimento o concurso de Zulmira. Precisamos dela no trabalho maternal. Para isso, é imprescindível te faças mais devotada, mais amiga… Um esforço pede outro. Sem o lubrificante da cooperação, a máquina da vida não funciona.
Os olhos de Odila faiscaram de esperança.
— Tudo farei por ajudá-la, auxiliando a mim mesma, — disse, comovida, — entendo mesmo nesse imperativo de fraternidade a doce determinação do Senhor, constrangendo-me a operosa boa vontade para com ela. Realmente, — acentuou, sorrindo, — reparo quão sublime é a Infinita Bondade do Céu. A princípio lutei contra Zulmira, desejando ser amada de meu esposo, agora devo lutar em favor de nossa irmã por amar o meu filho. Muito erramos, disputando o amor dos outros, entretanto, corrigimo-nos e acertamos o passo, quando procuramos amar…
— Sem dúvida, as tuas conclusões são luminoso ensinamento, — concordou o Ministro, bem humorado, — em tudo vemos a Eterna Sabedoria.
— Devo buscar alguma regra específica?
— Creio, — ponderou o nosso orientador que as tuas visitas afetuosas ao antigo lar, consolidando-lhe a harmonia, são a providência básica para que Júlio encontre um clima de confiança. Admito que o nosso pequeno reclama especiais atenções, considerando-se-lhe a posição de enfermo, para quem a reencarnação apresenta obstáculos justos.
O entendimento alongou-se por mais tempo, entre os conselhos paternais do Ministro e a sincera humildade da visitante.
Quando Odila se despediu, desfechamos sobre o instrutor algumas perguntas que nos fustigavam a cabeça.
A reencarnação como lei exigia o concurso da amizade para cumprir-se? Os desafetos da vida influíam em nosso futuro? O trabalho reencarnatório não seria uma imposição natural?
Clarêncio ouviu, atencioso, as indagações e respondeu, satisfeito:
— A lei é sempre a lei. Cabe-nos tão somente respeitá-la e cumpri-la. Nossa atitude, porém, pode favorecer-lhe ou contrariar-lhe o curso, em favor ou em prejuízo de nós mesmos. O renascimento na carne funciona em condições idênticas para todos, contudo, à medida que se nos desenvolvem o conhecimento e o amor, conseguimos colaborar em todos os serviços do aperfeiçoamento moral em nossas recapitulações. A alma, como a planta, pode ressurgir em qualquer trato de solo, mas não seria justo relegar sementes selecionadas a terrenos incultos. A reencarnação, por si, tanto quanto ocorre nos reinos inferiores à evolução humana, obedece a princípios embriogênicos automáticos, com bases na sintonia magnética; contudo, em se tratando de criaturas com alguns passos à frente da multidão comum, é possível ajustar providências que favoreçam a execução da tarefa a cumprir. Nesses casos, a plantação de simpatia é fator decisivo na obtenção dos recursos de que necessitamos… Quem cultiva a amizade somente na família consanguínea, dificilmente encontra meios para desempenhar certas missões fora dela. Quanto mais extenso o nosso raio de trabalho e de amor, mais ampla se faz a colaboração alheia em nosso benefício.
— E quando, desprevenidos, deixamos que a antipatia cresça em derredor de nós? — Inquiriu Hilário, com interesse.
— Toda antipatia conservada é perda de tempo, em muitas ocasiões acrescida de lamentáveis compromissos. O espinheiro da aversão exige longos trabalhos de reajuste. Em várias circunstâncias, para curar as chagas de um desafeto, gastamos muitos anos, perdendo o contato com admiráveis companheiros de nossa jornada espiritual para a Grande Luz.
A palavra de Clarêncio impunha-nos graves reflexões e talvez por isso a quietação baixou sobre nós.
Soubemos, mais tarde, que a genitora de Evelina passou a dispensar envolvente carinho ao ferroviário e à companheira doente, que, à custa de muito esforço dela, restabeleceu afinal a saúde orgânica.
Preparando o retorno do filhinho, Odila associou-se, de coração, à tarefa de restaurar-lhes a harmonia conjugal e o contentamento de viver.
Foi assim que, transcorridas algumas semanas, recebemos um convite da Irmã Clara para uma visita ao Lar da Bênção.
Em noite próxima, Odila conduziria a segunda esposa de Amaro ao encontro de Júlio, como derradeira preliminar do trabalho reencarnatório.
No momento aprazado, achávamo-nos a postos.
Blandina, Mariana, Clarêncio, Hilário e eu, palestrando animadamente em aposentos reservados na Escola das Mães, cercávamos o alvo berço em que o doentinho gemia de quando em quando.
Assistida por irmã Clara, Odila demandara o antigo ninho doméstico, no propósito de acompanhar Zulmira até nós.
Decorrido algum tempo de expectação, as três chegaram, envolvidas em luminosa onda de paz.
Enlaçada pelos braços das duas protetoras, a ex-obsidiada parecia feliz, não obstante a impressão de medo e insegurança que lhe transparecia do olhar.
Respondeu-nos as saudações com a estranheza de quase todos os encarnados que alcançam as Esferas superiores da vida espiritual, antes da morte física, e, logo após, sustentada pelas companheiras, aproximou-se do pequeno enfermo, identificando-o, espantada.
— Será Júlio, meu Deus?
— É verdadeiramente Júlio! — Confirmou Odila, fraternal, — para ele te rogamos socorro! Nosso pequeno precisa renascer, Zulmira! Poderás auxiliá-lo, oferecendo-lhe o regaço de mãe?
Vimos a interpelada em lágrimas de alegria.
Inclinou-se sobre o menino, afagando-o com intraduzível ternura, e falou em voz quase sufocada pela comoção:
— Estou pronta! Devo a Júlio cuidados que lhe neguei… Louvo reconhecidamente a Deus por esta graça! Sinto que assim nunca mais serei assaltada pelo remorso de não haver feito por ele quanto me competia!… Será meu filho, sim!… Conchegá-lo-ei de encontro ao peito! Ó Senhor, ampara-me!…
Abraçou o menino enfermo e afigurou-se-nos, desde então, incapaz de qualquer sintonia conosco. Talvez religada, de súbito, a inquietantes recordações da fixação mental que atravessara, pareceu-nos cega e surda, sob o império de inesperada introversão.
O Ministro, atendendo ao apelo de Clara, abeirou-se dela e amparou-a, recomendando:
— Convém seja nossa irmã restituída ao lar terrestre. O choque repetido será prejuízo grave. Amanhã, reconduziremos nosso pequeno ao santuário doméstico de onde veio, confiando-o, enfim, à tarefa do recomeço.
A sugestão foi obedecida.
E enquanto Zulmira voltava ao templo familiar, arquivávamos nossa expectação, à espera do dia seguinte.
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