Nos domínios da mediunidade

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Capítulo X

Sonambulismo torturado


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Tornamos ao recinto.

Dona Eugênia acabava de socorrer pobre companheiro recém-desencarnado, a retirar-se sob o fraterno controle dos vigilantes.

Fomos recebidos por Clementino, generoso, que nos aproximou de jovem senhora, concentrada em oração, seguida por distinto cavalheiro, na pequena fila dos enfermos que naquela noite receberiam assistência.

Afagando-lhe a cabeça, o supervisor notificou:

— Favoreceremos a manifestação de infeliz companheiro que a vampiriza, não somente com o objetivo de socorrê-lo, mas também com o propósito de estudarmos alguma coisa, com respeito ao sonambulismo torturado.

Observei a dama, ainda muito moça, inclinada para o homem irrepreensivelmente trajado que a amparava de perto.

O mentor do recinto afastou-se em tarefa de governança, mas Áulus tomou-lhe o lugar, passando a esclarecer-nos com a bondade que lhe era característica.

Indicando-nos o casal, informou:

— São ambos marido e mulher num enlace de provação redentora.

A essa altura, porém, os guardas espirituais permitiram o acesso do infortunado amigo.

Achamo-nos positivamente frente a frente com um louco desencarnado.

Perispírito denso, trazia todos os estigmas da alienação mental, indiscutível.

Olhar turvo, fisionomia congesta, indisfarçável inquietação…

A presença dele inspiraria repugnância e terror aos menos afeitos à enfermagem.

Além da cabeça ferida, mostrava extensa úlcera na garganta.

Precipitou-se para a jovem doente, à maneira de um grande felino sobre a presa.

A simpática senhora começou a gritar, transfigurada.

Não se afastara espiritualmente do corpo.

Era ela própria a contorcer-se, em pranto convulsivo, envolta, porém, no amplexo fluídico da entidade que lhe empolgava o campo fisiológico, integralmente.

Lágrimas quentes lhe corriam dos olhos semicerrados, o organismo relaxara-se como embarcação à matroca e a respiração se tornara sibilante e opressa.

Tentava falar, contudo a voz era um assobio desagradável.

As cordas vocais revelavam-se incapazes de articular qualquer frase inteligível.

Raul, sob o comando de Clementino, abeirou-se da dupla em aflitivo reencontro e aplicou energias magnéticas sobre o tórax da médium, que conseguiu expressar-se em clamores roufenhos:

— Filha desnaturada!… Criminosa! criminosa!… nada te salva! Descerás comigo às trevas para que me partilhes a dor… Não quero socorro… quero estar contigo para que estejas comigo! Não te perdoarei, não te perdoarei!…

E, do pranto convulso, passava incompreensivelmente a gargalhadas de vingador.

Agora, não podíamos saber se estávamos à frente de uma vítima que se lastimava ou de um palhaço que escarnecia.

— A justiça está em mim! — prosseguia bradando por entre silvos. — Sou o advogado de minha própria causa! e a desforra é o meu único recurso…

Raul, sob a inspiração do benfeitor que o acompanhava, passou a falar-lhe dos valores e vantagens da humildade e do perdão, do entendimento e do amor, procurando renovar-lhe a atitude.

E, enquanto desenvolvia o trabalho da doutrinação, buscamos contato com o orientador diligente.

Ante as nossas primeiras perguntas, Áulus acentuou:

— É um caso doloroso como o de milhares de criaturas.

— Vê-se bem — aduziu Hilário, sob forte impressão —, que é a nossa própria irmã quem fala e gesticula…

— Sim — aprovou o Assistente —, entretanto, encontra-se imantada ao companheiro espiritual, cérebro a cérebro.

— Poderá, todavia, recordar-se com precisão do que lhe sucede agora? — inquiri, por minha vez.

— De modo algum. Tem as células do córtex cerebral totalmente destrambelhadas pelo desventurado amigo em sofrimento. Nos transes, em que se efetua a junção mais direta entre ela e o perseguidor dementado, cai em profunda hipnose, qual acontece à pessoa magnetizada, nas demonstrações comuns de hipnotismo, e passa, de imediato, a retratar-lhe os desequilíbrios.

E, designando a garganta da médium, repentinamente avermelhada e intumescida, continuou:

— Nesta hora, tem a glote dominada por perturbação momentânea. Não consegue exprimir-se senão em voz rouquenha, quebrando as palavras. Isso porque o nosso irmão torturado, ao qual se liga pelos laços mais íntimos, lhe transmite as próprias sensações, compelindo-a a copiar-lhe o modo de ser.


— Tão entranhada se revela a associação de ambos — alegou Hilário —, que sou levado a indagar de mim mesmo se na vida comum não serão eles, a bem dizer, duas almas num só corpo, assim como duas plantas distintas uma da outra a se desenvolverem num vaso único… Na experiência diária, vulgar, não será nossa irmã constantemente influenciada, de maneira positiva, embora indireta, pelo companheiro que a obsidia?

— Você examina o assunto com acertado critério. Nossa amiga, na equipe doméstica, é um enigma para os familiares. Moça de notável procedência, possui belas aquisições culturais, entretanto, sempre se comporta de modo chocante, evidenciando desequilíbrios ocultos. A princípio, compareciam a insatisfação e a melancolia ocasionando crises de nervos e distúrbios circulatórios. Doente, desde a puberdade, em vão opinaram clínicos de renome sobre o caso, até que um cirurgião, crendo-a prejudicada por desarmonias da tireóide, submeteu-a a delicada intervenção, da qual saiu com seus padecimentos inalterados. Logo após, conheceu o cavalheiro sob nossa observação, que a desposou convencido de que o matrimônio lhe constituiria renovação salutar. Ao invés disso, porém, a situação se lhe agravou. A gravidez cedo se verificou, consoante a planificação de serviço, traçada na 5ida Superior. Nossa irmã doente deveria receber o perseguidor nos braços maternos, afagando-lhe a transformação e auxiliando-lhe a aquisição de novo destino, mas, sentindo-lhe a aproximação, recolheu-se a insopitável temor, adiando o trabalho que lhe compete. Impermeável às sugestões da própria alma, provocou o aborto com rebeldia e violência. Essa frustração foi a brecha que favoreceu mais ampla influência do adversário invisível no círculo conjugal. A pobre criatura passou a sofrer multiplicadas crises histéricas, com súbita aversão pelo marido. Principalmente à noite, é colhida, de assalto, por fenômenos de sufocação e de angústia, amargurando o consorte desolado. Médicos foram trazidos, no entanto os hipnóticos foram empregados em vão… Em franca demência, a enferma foi conduzida à casa de saúde, todavia, a insulina e o eletrochoque não lhe solucionaram o problema. Presentemente, atravessa um período de repouso em família, deliberando o esposo experimentar o concurso do Espiritismo.

Enquanto Silva e Clementino procuravam sossegar a médium e o comunicante, reunidos numa simbiose de extremo desespero, Hilário e eu continuávamos famintos de esclarecimento maior.

— E se ela conseguisse nova maternidade? — inquiriu meu colega, estudioso.

— Sim — concordou Áulus, convicto —, semelhante reconquista ser-lhe-á uma bênção, contudo, pela trama de sentimentos contraditórios em que se emaranhou, na fuga das obrigações que lhe cabem, não pode receber, de pronto, esse privilégio.

Lembrei-me de mulheres que se fazem mães nos hospícios, mas, analisando-me os pensamentos, o orientador explicou:

— A posição de alienada mental não lhe retira os favores da Natureza, mas a crueldade meditada com que se afastou dos compromissos assumidos, imprimiu certo desequilíbrio ao centro genésico. Nossas defecções mais íntimas, embora desconhecidas dos outros, prejudicam-nos o veículo sutil e não podemos trair o tempo nas reparações necessárias, ainda mesmo quando o remorso nos ajude a restaurar as boas intenções. A perfeita entrosagem dos elementos psicofísicos filia-se à mente. A vida corpórea é a síntese das irradiações da alma. Não há órgãos em harmonia sem pensamentos equilibrados, como não há ordem sem inteligência.


O serviço de socorro espiritual, porém, continuava inquietante.

A entidade vingadora, jungida à médium, demorava-se contida pelos assessores de Clementino, ao passo que a moça, refletindo-lhe as emoções e os impulsos, tinha o peito arfante e gemia em soluços:

— Para mim não há recurso!… Sou um renegado!…

— Perdoa, meu irmão, e o caminho ser-te-á renovado — dizia Raul, com inflexão de amor. Desculpando, somos desculpados. Todos temos dívidas… Não se inclinará, porventura, ao auxílio para que seja igualmente ajudado?

— Não posso, não posso… — chorava o infeliz.

E, à frente daquele par de Espíritos sofredores num só corpo, Áulus prosseguiu esclarecendo:

— A fim de examinar com serenidade as agruras da obsessão na mediunidade torturada, não podemos esquecer as causas do suplício de hoje a se enraizarem nas sombras de ontem. Os templos espíritas vivem repletos de dramas comoventes, que se prendem ao passado remoto e próximo.

Apontando o casal com a destra, continuou:

— O esposo de agora foi no pretérito um companheiro nocivo para a nossa irmã obsidiada, induzindo-a a envenenar o pai adotivo, hoje metamorfoseado no verdugo que a persegue. Herdeira de considerável fortuna, com testamento garantido, em sua condição de filha adotiva e única, viu que o velho tutor pretendia alterar decisões. Isso aconteceu em aristocrática mansão do século que passou. O viúvo abastado, que a criara com desvelado carinho, não concordou com a escolha feita. O moço não lhe agradava. Parecia mais interessado em pilhar-lhe as finanças que em fazer a felicidade da jovem desprevenida e insensata. Procurou, então, subtraí-la à influência do noivo, verificando que debalde lhes buscava a separação. Indignado, mobilizava medidas legais para deserdá-la, quando o rapaz, explorando a paixão de que a moça se via possuída, induziu-a a eliminá-lo, através de entorpecentes contínuos. Anulado o velhinho, por duas semanas de falsa medicação, o serviço da morte foi completado por diminuta dose de corrosivo. Findo ligeiro período de luto, a jovem herdeira enriqueceu o marido ao casar-se, contudo, em pouco tempo, viu-se presa de aflitivas desilusões, porque o esposo depressa se revelou jogador inveterado e libertino confesso, relegando-a a profunda miséria moral e física. Não lhe bastou esse gênero de aniquilamento gradativo. O tutor desencarnado imantou-se a ela, com desvairada fome de vingança, submetendo-a a horríveis tormentos íntimos. Em verdade, o parricídio permaneceu ignorado na Terra, mas foi registrado nos tribunais divinos e longo trabalho expiatório vem sendo levado a efeito, porquanto, ainda aqui, estamos observando esse trio de consciências entrelaçadas nos fios dilacerantes da provação redentora.

O infortunado perseguidor recolhia afetuosas admoestações de Raul Silva e, depois de breve intervalo, o Assistente continuou:

— Como vemos, a tragédia de nossa irmã enferma vem de longe. Nos Planos inferiores da vida espiritual, vagueou por muito tempo na faixa de ódio da vítima que se lhe fez vingativo credor e, na atualidade, em nova etapa de luta, tem o pensamento enovelado ao dele. Atravessou a infância e a puberdade, experimentando-lhe o assédio a distância, todavia, quando o inimigo de outrora reapareceu na condição de marido atual, com a tarefa de ajudar a companheira e reeducá-la, e fraquejando nossa amiga nos primeiros tentames da responsabilidade maternal, o obsessor aproveitou-se do ascendente magnético sobre a pobrezinha, golpeando-lhe o equilíbrio.

Sensibilizados com o quadro de justiça a desdobrar-se sob nossos olhos, não conseguíamos fugir à indagação para melhor fixar ensinamentos.

Fixando a atenção no esposo da vítima, que a amparava carinhosamente, Hilário considerou:

— Com que, então, nosso amigo tem o seu débito a saldar para com a mulher doente…

— Sem dúvida — confirmou Áulus com grave entono —, o Poder Divino não nos aproxima uns dos outros sem fins justos. No matrimônio, no lar ou no círculo de serviço, somos procurados por nossas afinidades, de modo a satisfazer aos imperativos da Lei de Amor, seja na ampliação do bem, ou no resgate de nossas dívidas, resultantes do nosso deliberado contato com o mal. Nossa irmã sofre os efeitos do parricídio a que se entregou pelo anseio de desfrutar prazeres que lhe desajustaram o plano consciencial, e o amigo que lhe inspirou a ação deplorável é agora chamado a ajudá-la na restauração imprescindível.

Olhei penalizado o cavalheiro tristonho e pensei na frustração a que devia sentir-se preso.

Bastou a reflexão para que o orientador me explicasse, solícito:

— Decerto, nosso companheiro na atualidade não se sente feliz. Recapitulando a antiga fome de sensações, abeirou-se da mulher que desposou, procurando instintivamente a sócia de aventura passional do pretérito, mas encontrou a irmã doente que o obriga a meditar e a sofrer.


— Transferindo nossos interesses de estudo para este caso — comentou Hilário —, ainda assim poderemos classificar a enferma à conta de médium?

— Como não? É um médium em aflitivo processo de reajustamento. É provável se demore ainda alguns anos na condição de doente necessitada de carinho e de amor. Encarcerada nas teias fluídicas do adversário demente, purifica-se, através das complicações do sonambulismo torturado. Desse modo, por enquanto é um instrumento para a criação de paciência e boa vontade no grupo de trabalhadores que visitamos, mas sem qualquer perspectiva de produção imediata, no campo do auxílio, de vez que se revela extremamente necessitada de concurso fraternal.

— Naturalmente, porém — aleguei —, mesmo agora, a presença dela aqui não será inútil.

— De modo algum — acrescentou o instrutor —; primeiramente, ela e o esposo constituem valioso núcleo de trabalho em que nossos companheiros de serviço podem adestrar suas qualidades de semeadores da luz. Além disso, o impacto da doutrinação não é perdido. Noite a noite, de reunião a reunião, na intimidade da prece e dos apontamentos edificantes, o trio de almas renovar-se-á, pouco a pouco. O perseguidor compreenderá a necessidade de perdão para melhorar-se, a enferma fortalecer-se-á em espírito para recuperar-se como é preciso e o esposo adquirirá a paciência e a calma, a fim de ser realmente feliz.

Nessa altura, com a colaboração de amigos espirituais da casa, o hóspede foi retirado do ambiente psíquico da jovem senhora, que voltou à normalidade, e, atendendo-nos à inquirição, o Assistente anotou, bondoso:

— Quando nosso irmão Clementino convocou-nos a observar o problema, indubitavelmente quis salientar os imperativos de trabalho e tolerância, compreensão e bondade para construirmos a mediunidade completa no mundo. Médiuns repontam em toda parte, entretanto, raros já se desvencilharam do passado sombrio para servir no presente à causa comum da Humanidade, sem os enigmas do caminho que lhes é particular. E como ninguém avança para diante, com a serenidade possível, sem pagar os tributos que deve à retaguarda, saibamos tolerar e ajudar, edificando com o bem…

A conversação, contudo, foi interrompida. Clementino, diligente, chamava-nos a cooperar em outros setores.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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