Nos domínios da mediunidade

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Capítulo XX

Mediunidade e oração


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Em estreito aposento, uma senhora, aparentando setenta anos de idade, acusava aflitiva dispneia.

A pequena Márcia, agitando um leque improvisado, propiciava-lhe ar fresco.

Ao lado da enferma, porém, uma entidade de aspecto desagradável exibia estranha máscara de perturbação e sofrimento, imantando-se a ela e agravando-lhe os tormentos físicos.

Tratava-se de um homem desencarnado, demonstrando no olhar a alienação mental evidente.

Enquanto Anésia se acomodava, junto à doente, com inexcedível ternura, procurando esquecer-se de si mesma para ajudá-la, Áulus informou, prestimoso:

— Temos aqui nossa irmã Elisa, em avançado processo liberatório… Vive as últimas horas no corpo carnal…

— E este homem de triste apresentação que lhe guarda a cabeceira? — perguntou Hilário, indicando a entidade que não nos via.

— Este é um infortunado filho de nossa veneranda amiga, há muitos anos distanciado da experiência física. Teve a infelicidade de chafurdar no vício da embriaguez e foi assassinado numa noite de extravagância. A genitora, porém, dele se recorda, como a um herói, e, a evocá-lo incessantemente, retém o infeliz ao pé do próprio leito.

— Ora essa! Por quê?

O Assistente modificou o tom de voz e recomendou-nos serenidade. Analisaríamos o caso em momento oportuno. O problema de Anésia pedia colaboração imediata.

Realmente, a pobre senhora, de fisionomia fatigada, acariciava a enferma com palavras de amor, mas Dona Elisa parecia aloucada, distante…

Anésia desfez-se em lágrimas.

— Por que chorar, mãezinha? Vovó não está pior…

A voz meiga de Márcia ressoou no quarto, modulada com inefável carinho.

A menina, que nem de longe poderia perceber a tortura materna, enlaçou a genitora convidando-a à oração.

Dona Anésia desejou a presença das filhas mais velhas, contudo, Marcina e Marta alegaram que o natalício de uma companheira de trabalho lhes impunha a necessidade de sair por alguns minutos.

A dona da casa sentou-se rente à enferma e, acompanhada pela atenção da filhinha, pronunciou sentida prece.

À medida que orava, funda modificação se lhe imprimia ao mundo interior. Os dardos de tristeza, que lhe dilaceravam a alma, desapareceram ante os raios de branda luz a se lhe exteriorizarem do coração. Desde esse instante, qual se houvera acendido uma lâmpada em plena obscuridade, vários desencarnados sofredores penetraram o quarto, abeirando-se dela, à maneira de doentes, solicitando medicação.

Nenhum deles nos assinalava a presença e, diante da nossa curiosidade silenciosa, Áulus aclarou:

— São companheiros que trazem ainda a mente em teor vibratório idêntico ao da existência na carne. Na fase em que estagiam, mais depressa se ajustam com o auxílio dos encarnados, em cuja faixa de impressões ainda respiram. Quantos se encontram em semelhante estado, dentro do raio de ação das preces de nossa amiga, recebem o toque de espiritualidade que emana do serviço dessa natureza e, quando sensíveis ao bem ou sedentos de renovação interior, dão-se pressa em responder ao apelo de elevação que os visita, aderindo à oração, de cujo sublime poder recolhem esclarecimento e consolo, amparo e benefício.

— Quanto valor num insignificante ato de fé!…

O Assistente afagou a fronte inquieta de Hilário e concordou:

— Sim o homem terrestre criou enormes complicações ao seu caminho, contudo, a morte constrange-o a regressar aos alicerces da simplicidade para a regeneração da própria vida.

A essa altura, Anésia abriu precioso livro de meditações evangélicas, acreditando agir ao acaso, mas o tema, em verdade, foi escolhido por Teonília, que lhe vigiava, bondosa, os movimentos.

Com surpresa, a dona da casa notou que o texto se reportava à necessidade do trabalho e do perdão.

Dócil, correspondendo à influenciação da mentora espiritual, a esposa de Jovino começou a falar sabiamente sobre os impositivos do serviço e da tolerância construtiva, em favor da edificação justa do bem.

A voz dela, fluente e suave, transmitia, sem que ela mesma percebesse, o pensamento de Teonília que, com isso, buscava socorrer-lhe o coração atormentado.

Numa pausa mais longa, Márcia reparou com inteligência:

— Continue, mãezinha! Continue… Tenho a ideia de que nos achamos à frente de enorme multidão…

E sem refletir que estava pregando, acima de tudo, para si mesma, Anésia adiantou:

— Sim, minha filha, estamos sozinhas porque a vovó, fatigada, não nos ouve. Isso, porém, é só na aparência. Muitos irmãos desencarnados, decerto, permanecem aqui conosco e acompanham nosso culto de oração.

E prosseguiu nos comentários que, efetivamente, acendiam novo ânimo nas almas presentes, ávidas de luz, tanto quanto sequiosas de paz e refazimento.

Terminada a tarefa, Márcia despediu-se da mãezinha com um beijo.

O serviço escolar da manhã exigia o repouso mais cedo.

Depois de afetuosas recomendações à menina, viu-se Anésia a sós com a genitora semi-inconsciente.

Acariciou-lhe o rosto pergaminhado e pálido, acomodou-lhe a cabeça suarenta nos travesseiros e estirou-se ao lado dela, como que procurando pensar, pensar…


Áulus fez significativo gesto a Teonília e exclamou:

— Este é o momento exato.

Cuidadosamente, começaram ambos a aplicar-lhe passes sobre a cabeça, concentrando energia magnética ao longo das células corticais.

Anésia viu-se presa de branda hipnose, que ela própria atribuía ao cansaço e não relutou.

Em breves instantes, deixava o corpo denso na prostração do sono, vindo ao nosso encontro em desdobramento quase natural.

Não parecia, contudo, tão consciente em nosso Plano quanto seria de desejar.

Centralizada no afeto ao marido, Jovino constituía-lhe obcecante preocupação. Reconheceu Teonília e Áulus por benfeitores e lançou-nos significativo olhar de simpatia, no entanto, mostrava-se atordoada, aflita… Queria ver o esposo, ouvir o esposo…

O Assistente deliberou satisfazê-la.

Amparada pelos braços da admirável amiga, tomou a direção que lhe pareceu acertada, como quem possuía, de antemão, todos os dados necessários à localização do marido.

Áulus conosco explicou que as almas, quando associadas entre si, vivem ligadas umas às outras pela imanação magnética, superando obstáculos e distâncias.

Em vasto salão de um clube noturno, surpreendemos Jovino e a mulher que se fizera nossa conhecida nos fenômenos telepáticos, integrando um grupo alegre, em atitudes de profunda intimidade afetiva.

Rodeando o conjunto, diversas entidades, estranhas para nós, formavam vicioso círculo de vampiros que não nas registraram a presença.

O anedotário menos edificante prendia as atenções.

Ao defrontar o companheiro na posição em que se achava, Anésia desferiu doloroso grito e caiu em pranto.

Seguida por nós, recuou ferida de aflição e assombro e tão logo nos vimos na via pública, bafejados pelo ar leve da noite, o Assistente abraçou-a, paternal.

Notando-a mais senhora de si, embora o sofrimento lhe transfigurasse o rosto, falou-lhe com extremado carinho:

— Minha irmã, recomponha-se. Você orou, pedindo assistência espiritual, e aqui estamos, trazendo-lhe solidariedade. Reanime-se! Não perca a esperança!…

— Esperança? — clamou a pobre criatura em lágrimas. — Fui traída, miseravelmente traída…

E o entendimento, entre os dois, prosseguiu comovente e expressivo.

— Traída por quem?

— Por meu esposo, que falhou aos compromissos do casamento.

— Mas você admite, porventura, que o casamento seja uma simples excursão no jardim da carne? supôs que o matrimônio terrestre fosse apenas a música da ilusão a eternizar-se no tempo? Minha amiga, o lar é uma escola em que as almas se reaproximam para o serviço da sua própria regeneração, com vistas ao aprimoramento que nos cabe apresentar de futuro. Você ignora que no educandário há professores e alunos? desconhece que os melhores devem ajudar aos menos bons?

A interlocutora, chamada a brios, sustou a lamentação. Ainda assim, após fitar o nosso orientador com entranhada confiança, alegou, triste:

— Mas Jovino…

Áulus, porém, cortou-lhe a frase, acrescentando:

— Esquece-se de que seu esposo precisa muito mais agora de seu entendimento e carinho? Nem sempre a mulher poderá ver no companheiro o homem amado com ternura, mas sim um filho espiritual necessitado de compreensão e sacrifício para soerguer-se, como também nem sempre o homem conseguirá contemplar na esposa a flor de seus primeiros sonhos, mas sim uma filha do coração, a requisitar-lhe tolerância e bondade, a fim de que se transfira da sombra para a luz. Anésia, o amor não é tão somente a ventura rósea e doce do sexo perfeitamente atendido. É uma luz que brilha mais alto, inspirando a coragem da renúncia e do perdão incondicionais, em favor do ser e dos seres que nós amamos. Jovino é uma planta que o Senhor lhe confiou às mãos de jardineira. É compreensível que a planta seja assaltada pelos parasitas ou pelos vermes da morte, todavia, nada há a recear se a jardineira está vigilante…

Nesse ponto das belas palavras do instrutor, a mãezinha de Márcia voltou-se para ele, à maneira de uma doente agarrando-se ao médico, e rogou em voz súplice:

— Sim, sim… Reconheço… Entretanto, não me deixe sozinha… Sinto-me atribulada. Que fazer da mulher que o domina? Nela vejo a perturbação e o fel de nossa casa… Assemelha-se a um Espírito diabólico, fascinando-o e destruindo-o…

— Não se refira a ela assim, com palavras amargas! É também nossa irmã, vitimada por lastimáveis enganos!…

— Mas como aceitá-la? Percebo-lhe a influência maligna… Parece uma serpente invisível, trazendo consigo pavorosos monstros para junto de nós… Nosso templo doméstico, por isso, transformou-se num inferno em que não mais nos entendemos… Tudo agora é fracasso, desarmonia e insegurança… Que fazer de semelhante criatura?

— Compadeçamo-nos dela! Terrível ser-lhe-á o despertamento.

— Compaixão?

— E que outra melhor represália senão essa?

— Não seria mais justo situá-la na reparação dos próprios erros? não seria mais certo relegá-la ao lugar escuro que merece?

Áulus, porém, tomou-lhe a destra inquieta e esclareceu:

— Abstenhamo-nos de julgar. Consoante a lição do Mestre que hoje abraçamos, o amor deve ser nossa única atitude para com os adversários. A vingança, Anésia, é a alma da magia negra. Mal por mal significa o eclipse absoluto da razão. E, sob o império da sombra, que poderemos aguardar senão a cegueira e a morte? Por mais aflitiva lhe seja a lembrança dessa mulher, recorde-a em suas preces e em suas meditações, por irmã necessitada de nossa assistência fraterna. Ainda não readquirimos nossa memória integral do passado e nem sabemos o que nos ocorrerá no futuro… Quem terá sido ela no pretérito? alguém que ajudamos ou ferimos? Quem será para nós no porvir? Nossa mãe ou nossa filha? Não condene! O ódio é como o incêndio que tudo consome, mas o amor sabe como apagar o fogo e reconstruir. Segundo a Lei, o bem neutraliza o mal, que se transforma, por fim, em servidor do próprio bem. Ainda que tudo pareça conspirar contra a sua felicidade, ame e ajude sempre, porque o tempo se incumbirá de expulsar as trevas que nos visitam, à medida que se nos aumente o mérito moral.

Anésia, assemelhando-se a uma criança resignada, pousou no benfeitor os olhos límpidos, como a prometer-lhe obediência, e Áulus, afagando-a, recomendou:

— Volte ao lar e use a humildade e o perdão, o trabalho e a prece, a bondade e o silêncio, na defesa de sua segurança. A mãezinha enferma e as filhinhas reclamam-lhe amor puro, tanto quanto o nosso Jovino, que voltará, mais experiente, ao refúgio de seu coração.

Anésia ergueu a cabeça para o firmamento constelado de luz, pronunciando uma oração de louvor e, em seguida, tornou a casa.

Vimo-la despertar no corpo carnal, de alma renovada, quase feliz…

Enxugou as lágrimas que lhe banhavam o rosto e tentou ansiosamente recordar, ponto a ponto, a entrevista que tivera conosco.

Em verdade, não conseguiu alinhar senão fragmentárias reminiscências, mas reconheceu-se reconfortada, sem revolta e sem amargura, como se mãos intangíveis lhe houvessem lavado a mente, conferindo-lhe uma compreensão mais clara da vida.

Recordou Jovino e a mulher que o hipnotizava, compadecidamente, como pessoas a lhe exigirem tolerância e piedade.

Profundo entendimento brotava-lhe agora do espírito. A compreensão da irmã superara o desequilíbrio da mulher.

E pensava: “Que lhe adiantaria a revolta ou o desânimo, quando lhe competia a defesa do lar? Fazendo justiça com as próprias mãos, não prejudicaria aqueles que lhe constituíam a riqueza do coração?! Em qualquer parte, o escândalo é a ruína da felicidade… Não devia render graças a Deus por sentir-se na condição da esposa digna? Sim, decerto a pobre criatura que lhe perturbava o marido não havia acordado ainda para a responsabilidade e para o discernimento. Necessitava, pois, de compaixão e de amparo, ao invés de crítica e azedume…”

Consolada e satisfeita, passou à medicação da genitora.


Hilário, admirado, exaltou os méritos da oração, ao que Áulus enunciou:

— Em todos os processos de nosso intercâmbio com os encarnados, desde a mediunidade torturada à mediunidade gloriosa, a prece é abençoada luz, assimilando correntes superiores de força mental que nos auxiliam no resgate ou na ascensão.

Indicando a dona da casa, agora em serviço no aposento, meu colega observou:

— Vemos, então, em nossa amiga preciosa mediunidade a desenvolver-se…

— Como acontece a milhões de pessoas disse o orientador —, ela detém consigo recursos medianímicos apreciáveis, que podem ser inclinados para o bem ou para o mal, competindo-lhe a obrigação de construir dentro de si mesma a fortaleza de conhecimento e vigilância, na qual possa desfrutar, em pensamento, as companhias espirituais que mais lhe convenham à felicidade.

— E pela prece busca solução para os enigmas que lhe flagelam a existência…

Áulus sorriu e ajuntou:

— Encontramos aqui precioso ensinamento acerca da oração… Anésia, mobilizando-a, não conseguiu modificar os fatos em si, mas logrou modificar a si mesma. As dificuldades presentes não se alteraram. Jovino continua em perigo, a casa prossegue ameaçada em seus alicerces morais, a velhinha doente aproxima-se da morte, entretanto, nossa irmã recolheu expressivo coeficiente de energias para aceitar as provações que lhe cabem, vencendo-as com paciência e valor. E um espírito transformado, naturalmente transforma as situações.

O Assistente, contudo, interrompeu-se e lembrou-nos o horário de volta.

Por solicitação de Teonília, examinou a doente e concluiu que a desencarnação de Dona Elisa estava próxima.

Externei o desejo de analisar-lhe o campo orgânico; todavia, o instrutor recordou-nos a hora avançada e prometeu voltar conosco, em tarefa de assistência à velhinha na noite próxima.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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