Nos domínios da mediunidade

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Capítulo XXIV

Luta expiatória


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Junto de nós, o cavalheiro que se mantinha entre os enfermos caiu em estremeções coreiformes.

Não fosse a poltrona em que se apoiava e ter-se-ia arrojado ao chão.

Desferia gemidos angustiados e roucos, como se um guante invisível lhe constringisse a garganta.

Não longe, duas entidades de presença desagradável reparavam-lhe os movimentos, sem contudo interferir magneticamente, de maneira visível, na agitação nervosa de que ele se fazia portador.

O doente aparentava madureza física, mas Áulus, esclarecendo-nos com mais segurança, informou, comovido:

— É um pobre irmão em luta expiatória e na realidade mal atravessou a casa dos trinta anos, na presente romagem terrestre. Desde a infância, sofre o contato indireto de companhias inferiores que aliciou no passado, pelo seu comportamento infeliz. E quando experimenta a vizinhança desses amigos transviados, ainda em nosso Plano, com os quais conviveu largamente, antes do regresso à carne, reflete-lhes a influência nociva, entregando-se a perturbações histéricas, que lhe sufocam a alegria de viver. Tem sido aflitivo problema para o templo doméstico em que renasceu. Desde a meninice, vive de médico a médico. Ultimamente, a malarioterapia, a insulina e o eletrochoque hão sido empregados em seu benefício, sem resultado prático. Os tratamentos dolorosos e difíceis, de certo modo, lhe castigaram profundamente a vida física. Parece um velho, quando poderia mostrar-se em pleno vigor juvenil.

Enquanto o enfermo tremia, pálido, nosso orientador e o irmão Clementino aplicavam-lhe recursos magnéticos de auxílio, asserenando-lhe o corpo conturbado.

Findo o acidente paroxístico, notamo-lo suarento e desmemoriado, qual se fora surdo às preces que Raul Silva pronunciava, implorando o socorro divino em seu favor.

Decorridos alguns minutos, a calma no ambiente refazia-se completa.

Abeirava-se a reunião da fase de encerramento, contudo, o rapaz que nos tomara, por último, a atenção, prosseguia apático, melancólico.

Registrávamos a esperança e o encorajamento, em variados tons, em todos os presentes, menos nele, que denotava tortura e introversão.


Áulus, com a tolerância habitual, dispusera-se a ouvir-nos.

— Como interpretar o caso de nosso amigo? — indagou Hilário, curioso. — Não lhe vimos o desdobramento e, ao que nos foi concedido verificar, não assimilou emissões fluídicas de qualquer habitante de nossa Esfera… Enquadrar-se-lhe-á o transe em algum processo mediúnico que desconhecemos?

— O enigma de nosso irmão — elucidou o Assistente — é de natureza mental, considerando-se-lhe a origem pura e simples, mas está radicado à sensibilização psíquica, tanto quanto as ocorrências de ordem mediúnica.

— Ainda assim — aleguei —, poderemos considerá-lo médium?

— De imediato, não. Presentemente, é um enfermo que reclama cuidado assistencial, no entanto, sanada a desarmonia de que ainda é portador, poderá cultivar preciosas faculdades medianímicas, porque a moléstia, nesses casos, é fator importante de experiência.


A dor em nossa vida íntima é assim como o arado na terra inculta. Rasgando e ferindo, oferece os melhores recursos à produção.

— E a doença em si? — tornou meu companheiro admirado — será do corpo ou da alma?

— É desequilíbrio da alma a retratar-se no corpo — falou o instrutor, comovido.

E, acariciando a fronte do moço triste, continuou:

— Nosso amigo em reajuste, antes da presente imersão na carne, vagueou, por muitos anos, em desolada região de trevas. Aí foi vítima de hipnotizadores cruéis com os quais esteve na mais estreita sintonia, em razão da delinquência viciosa a que se dedicara no mundo. Sofreu intensamente e voltou à Terra, trazendo certas deficiências no organismo perispiritual. É um histérico, segundo a justa acepção da palavra. Acolhido pelo heroísmo de um coração materno e por um pai que lhe foi associado de insânia, hoje também na travessia de amargosas provas, vem procurando a própria recuperação. Aos sete anos da nova experiência terrena, quando se lhe firmou a reencarnação, sentiu-se tomado pela desarmonia trazida do mundo espiritual e, desde então, vem lutando no laborioso processo regenerativo a que se impôs. Algemado à perturbação em que se enleou, supõe haver nascido com o fracasso congenial. Não se acredita capaz de qualquer serviço nobre. Crê-se derrotado, antes de qualquer luta. Apraz-lhe tão somente a solidão em que se nutre dos pensamentos enfermiços que lhe são arremessados ao Espírito pelos antigos companheiros de viciação. Enfim, vive em deploráveis condições patológicas do sistema nervoso, numa crise de longo curso, a caracterizar-se por estranhas perturbações da inteligência e contraturas repentinas, que o inutilizam temporariamente para o trabalho digno.


As preces terminais convidaram-nos ao silêncio.

Finda a reunião, ofereceu-se Áulus para acompanhar o rapaz doente, até a casa, medida essa que Clementino aprovou, satisfeito.

O moço parecia anestesiado, inerte…

Depois de meia hora, durante a qual buscamos assisti-lo nas eventualidades da via pública, atingimos singela casinha suburbana.

Ao chamado insistente do rapaz, simpática velhinha veio atender.

— Américo, meu filho, graças a Deus vejo-o de volta…

A ternura materna vibrava, iniludível, naquela voz clara e reconfortante.

E a genitora conduziu-o, sem delonga, para a intimidade doméstica, onde um rapaz embriagado desferia palavrões.

Fitando-o, disse preocupada:

— Márcio, infelizmente, excedeu-se de novo…

E, porque reparasse a apatia do recém-chegado, ajuntou:

— Mas, primeiro, tratemos de acomodar você.

O moço não relutou.

Deixou-se arrastar pelo carinho materno e envolveu-se nas cobertas do leito, em acanhado telheiro aos fundos.

Américo dormiu sem detença, surgindo junto de nós em desdobramento natural. Não nos pressentiu, porém, nem de longe. Registrava tão somente a perturbação mental de que se via possuído.

Amedrontado, espantadiço, avançou para estreita câmara, a pequena distância, e rojou-se ao lado de um velho paralítico, choramingando:

— Pai, estou sozinho! sozinho!… quem me socorre? Tenho medo! medo!…

O doente, vigilante e calmo, assinalou-lhe a presença, de algum modo, porque mostrou no semblante dolorida expressão, como se lhe estivesse ouvindo as queixas.

Áulus recomendou-me auscultar a fronte pensadora do enfermo, atado ao catre limpo, e, buscando sintonizar-me com ele, escutei-lhe a mente, conversando de si para consigo:

— Ó Senhor, sinto-me cercado por Espíritos inquietos… Quem estará junto de mim? Dá-me forças para compreender-te a vontade e acatar-te os desígnios… Não me abandones! Tristes são a velhice, a doença e a pobreza quando nos avizinhamos da morte!…

E, sob a influência do rapaz, cujos pensamentos assimilava sem perceber, vimo-lo também dobrar a cabeça e chorar copiosamente.

Fixando-os, de maneira significativa, nosso orientador esclareceu:

— Achamo-nos à frente de pai e filho. Júlio, o genitor de Américo, foi acometido, faz muitos anos, de paralisia das pernas, vivendo assim amarrado à cama, onde ainda se esforça pela subsistência dos seus, em trabalhos leves. Entregue à provação e à soledade, começou a ler e a refletir com segurança. Apreendeu a verdade da reencarnação, encontrou consolo e esperança nos ensinamentos do Espiritismo e, com isso, tem sabido marchar com resignação e fortaleza nos dias ásperos que vem atravessando…

Sentindo-nos a sede de maiores informes, o instrutor prosseguiu, depois de ligeira pausa:

— Sustentado pelo devotamento heroico da esposa, trouxe ao mundo cinco filhos, dos quais uma jovem que lhe foi abençoada irmã noutra vida terrestre, e os demais, inclusive Américo, são quatro rapazes de trato muito difícil. Márcio, que já conhecemos, é cliente da embriaguez, Guilherme e Benício estão consumindo a mocidade em extravagâncias noturnas, Laura que é abnegada companheira dos pais, e o nosso Américo, o primogênito, que ainda está longe de recuperar o equilíbrio completo…

— E observando o dono da casa em semelhante posição — interferiu Hilário —, somos levados a pensar nas dificuldades que se desenrolam aqui…

— Indubitavelmente, a expiação do grupo doméstico sob nossa vista é rude e dolorosa… Em passado próximo, o paralítico de hoje era o dirigente de pequeno bando de malfeitores. Extremamente ambicioso, asilou-se num sítio, onde se transformou em perseguidor de viajantes desprevenidos, dedicando-se ao furto e à vadiagem… Conseguiu convencer quatro amigos a acompanhá-lo nas aventuras delituosas a que se entregou pela cobiça tiranizante, comprometendo-lhes a vida moral, e esses quatro companheiros são hoje os filhos que lhe recebem nova orientação, crivando-o de preocupações e desgostos. Desviou-os do caminho reto, agora busca recuperá-los para


A torturada conformação do velhinho sensibilizava-nos as fibras mais íntimas.

Tivemos, contudo, nossa atenção atraída para novo fenômeno.

Uma jovem, de fisionomia nobre e calma, penetrou o quarto em Espírito, passou rente a nós sem notar-nos e, reanimando Américo, retirou-o para fora.

Percebendo-nos a silenciosa indagação, o Assistente informou:

— É Laura, a filha generosa, que ainda mesmo durante o sono físico não se descuida de amparar o genitor doente.

— Então está domiciliada aqui mesmo? — perguntou meu colega, admirado.

— Sim, dormindo em aposento próximo.

E, depois de ministrar recursos vitalizantes ao enfermo em lágrimas, o Assistente acrescentou:

— Quando o corpo terrestre descansa, nem sempre as almas repousam. Na maioria das ocasiões, seguem o impulso que lhes é próprio. Quem se dedica ao bem, de um modo geral continua trabalhando na sementeira e na seara do amor, e quem se emaranha no mal costuma prolongar no sono físico os pesadelos em que se enreda…


— Pelo que analisamos — disse Hilário —, os fatos mediúnicos no lar são constantes…

— Justo! — confirmou o orientador. — Os pensamentos daqueles que partilham o mesmo teto agem e reagem uns sobre os outros, de modo particular, através de incessantes correntes de assimilação. A influência dos encarnados entre si é habitualmente muito maior que se imagina. Muita vez, na existência carnal, os obsessores que nos espezinham estão conosco, respirando, reencarnados, o mesmo ambiente. Do mesmo modo há protetores que nos ajudam e elevam e que igualmente participam de nossas experiências de cada dia. É imprescindível compreender que, em toda a parte, acima de tudo, vivemos em espírito. O intercâmbio de alma para alma, entre pais e filhos, cônjuges e irmãos, afeiçoados e companheiros, simpatias e desafeições, no templo familiar ou nas instituições de serviço em que nos agrupamos, é, em razão disso, a bem dizer, obrigatório e constante. Sem perceber, consumimos ideias e forças uns dos outros.


Dispúnhamo-nos à retirada, quando Hilário, como quem se valia do ensejo, curiosamente indagou:

— Voltando, contudo, ao caso de Américo e reconhecendo-o como portador da histeria, haverá vantagem na frequência dele ao grupo em que outros médiuns se aperfeiçoam?

— Como não? — obtemperou o Assistente. O progresso é obra de cooperação. Consagrando-se à disciplina e ao estudo, à meditação e à prece, ele se renovará mentalmente, apressando a própria cura, depois da qual poderá cooperar em trabalhos mediúnicos dos mais proveitosos. Todo esforço digno, por mínimo que seja, recebe invariavelmente da vida a melhor resposta.

Áulus, a seguir, lembrou afazeres a distância e considerou por finda a valiosa lição.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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