Ação e Reação

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Capítulo X

Entendimento


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Na noite imediata, em seguida a serviços rotineiros, Silas procurou-nos para a continuação da tarefa encetada.

De regresso ao lar de Luís, alimentamos conversação comum, sem qualquer alusão aos temas da véspera, e, como que sintonizados em nossa onda mental de respeito mútuo, Clarindo e Leonel receberam-nos com discrição e carinho.

Afiguraram-se-nos, ambos, sobremaneira trabalhados pelas ideias que o Assistente lhes ofertara indiretamente ao espírito.

Em casa do situante, o quadro não se alterara. Luís e os amigos cavaqueavam cordialmente, comentando as pragas do campo e as doenças dos animais, a carestia da vida e os negócios infortunados… Entretanto, os dois irmãos demonstravam-se agora claramente desligados de semelhante painel de sombra.

Cumprimentaram-nos com a gentileza irradiante de quem se punha à vontade para acolher-nos e fitaram Silas com desusado interesse.

Adivinhava-se que haviam tomado a confissão do Assistente para valiosas reflexões.

Observando-lhes a metamorfose com inequívocos sinais de contentamento, o chefe de nossa expedição nem de leve se reportou ao problema de Luís e convidou-os com lhaneza de trato a acompanhar-nos.

Mostrando a renovação de que se achavam possuídos, incorporaram-se, de pronto, à nossa pequena caravana e, atendendo à recomendação de Silas, os dois, de mãos entrelaçadas com as nossas, conseguiram volitar com certa facilidade e segurança.

Findos alguns minutos, chegamos a vasto hospital de movimentada cidade terrestre.

Na portaria, um dos vigilantes espirituais dirigiu-se carinhosamente a Silas, em saudação fraterna, e o nosso dirigente no-lo apresentou, atencioso:

— Este é o nosso companheiro Ludovino, que no momento se encontra encarregado da necessária vigilância, a benefício de alguns enfermos de cuja reencarnação cuida a nossa casa.

Abraçamo-nos todos, irmãmente.

Logo após, o responsável por nossa equipe de trabalho tomou a palavra, indagando:

— E a nossa irmã Laudemira? Recolhemos hoje notícias graves…

— Sim — concordou o interpelado —, tudo faz acreditar que a pobrezinha sofrerá perigosa intervenção. Envolta nos fluidos anestesiantes que lhe são desfechados pelos perseguidores, durante o sono, tem a vida uterina sensivelmente prejudicada por extrema apatia. O cirurgião voltará dentro de uma hora e, na hipótese de os recursos aplicados não surtirem efeito, providenciará uma cesariana como remédio aconselhável…

Nosso amigo mostrou funda preocupação a vincar-lhe o semblante habitualmente calmo, e ajuntou:

— Uma operação dessa espécie acarretar-lhe-á grandes prejuízos para o futuro. Consoante o programa organizado, em favor dela, cabe-lhe receber ainda mais três filhos no templo do lar, de modo a utilizar-se do presente estágio humano, com tanta eficiência quanto se torne possível…

O guarda fixou um gesto de respeito e ponderou:

— Creio, então, que não há tempo a perder.

Silas tomou-nos a dianteira e conduziu-nos a pequena enfermaria, onde jovem senhora se lamentava, aflita.

Simpática matrona de nevados cabelos, em cuja ternura percebíamos a presença materna, velava, atenta, acariciando-lhe as mãos inquietas.

Notando a expressão de pavor que os olhos da doente exibiam em pranto, procurei a palavra de Silas, quanto à causa de tão agoniado padecimento.

— Nossa irmã — esclareceu, prestativo — será novamente mãe, em minutos breves. Encontra-se, porém, algemada a provas difíceis. Demorou-se muito tempo, em nossa Mansão, antes de retornar ao corpo denso de carne, sempre vigiada por inimigos que ela mesma criou em outro tempo, quando se valeu da beleza física para acumpliciar-se com o crime. Bela mulher, atuou em decisões políticas que arruinaram a estrada de muita gente. Padeceu muitos anos nas trevas infernais, entre a carne e a sombra, até que mereceu agora a felicidade de renascer com a tarefa de restaurar-se, restaurando alguns dos companheiros de crueldade que, na feição de filhos, com ela se levantarão para mais amplos serviços regeneradores…

Silas, contudo, lançou-me expressivo olhar e acrescentou:

— Historiaremos o assunto mais tarde. Agora, é indispensável agir…

Sob a atenção de Clarindo e Leonel que nos seguiam, surpresos, convocou-nos, a Hilário e a mim, para o socorro imediato.

Determinando permanecêssemos ambos em oração, com a destra colada ao cérebro da doente, começou a fazer operações magnéticas excitantes sobre o colo uterino.

Substância leitosa, qual neblina leve, irradiava-se-lhe das mãos, espalhando-se sobre todos os escaninhos do aparelho genital.

Decorridos alguns minutos de pesada expectativa, surgiram contrações que, pouco a pouco, se acentuaram intensamente.

Silas, atencioso, controlou a evolução do parto, até que o médico ingressou no recinto.

Longe de registrar-nos a presença, sorriu, satisfeito, reclamando o concurso de competente enfermeira.

A cesariana foi esquecida:

Convidou-nos o Assistente ao regresso, informando-nos mais tranquilo:

— O organismo de Laudemira reagiu brilhantemente. Esperamos possa continuar na obra que lhe compete, com o êxito necessário.

Puséramo-nos, de novo, a caminho.


Leonel, cuja inteligência aguda não perdia os nossos menores movimentos, perguntou a Silas, com ar respeitoso, se os trabalhos a que se dedicava exprimiam alguma preparação, diante do porvir, ao que o Assistente respondeu sem pestanejar:

— Sem dúvida. Ainda ontem lhes falei dos meus erros de médico, que praticamente jamais o fui, e comentei o plano de abraçar a Medicina no futuro, entre os encarnados, nossos irmãos. Todavia, para que eu mereça a ventura de tal reconquista, consagro-me, nas regiões inferiores que me servem de domicílio, ao ministério do alívio, criando causas benéficas para os serviços que virão…

— Causas? causas? — murmurou Clarindo, algo espantado.

— Sim, procurando ajudar espontaneamente além dos deveres que me são impostos, na luta pela recuperação moral de mim mesmo, com a Bênção Divina alongarei a sementeira de simpatia em meu favor.

E, relanceando significativamente o olhar sobre nós, acentuou, em seguida a breve minuto de reflexão:

— Um dia, consoante as dívidas que me pedem resgate, estarei novamente entre as criaturas encarnadas e, para solver minhas culpas, também sofrerei obstáculo e dúvida, enfermidade e aflição… Que mãos caridosas e amigas me amparem daqui, em nome de Deus, porque isoladamente ninguém consegue vencer… E para que braços amorosos se me estendam, mais tarde, é imperioso movimente agora os meus no voluntário exercício da solidariedade.

O ensinamento era precioso, não apenas para os dois perseguidores que o registravam, perplexos, mas também para nós que reconhecíamos, mais uma vez, a Infinita Bondade do Supremo Senhor, que, ainda mesmo nos mais tenebrosos ângulos da sombra, nos permite trabalhar pelo incessante engrandecimento do bem, como abençoado preço de nossa felicidade.


Enquanto volitávamos de retorno, Hilário, antecipando-me na curiosidade, inclinou a conversação para o caso de Laudemira.

Era conhecida de Silas, desde muito tempo? Assumira, assim, compromissos tão graves para com a maternidade? Que papel representavam os filhos junto dela? Credores ou devedores?

Silas sorriu complacente para a arguição cerrada e explicou:

— Inegavelmente, creio que o processo redentor de nossa amiga serve por tema palpitante nos estudos de causa e efeito que vocês vão acumulando.

Entregou-se a longa pausa de consulta à memória e prosseguiu:

— Não podemos, assim de relance, mergulhar pormenorizadamente no pretérito que lhe diz respeito, nem posso de mim mesmo cometer qualquer indiscrição, abusando da confiança que a Mansão me outorga, no exercício de meus encargos. Entretanto, a título de nossa edificação espiritual, posso adiantar-lhes que as penas de Laudemira, na atualidade, resultam de pesados débitos por ela contraídos, há pouco mais de cinco séculos. Dama de elevada situação hierárquica na Corte de Joana 2, Rainha de Nápoles, de 1414 a 1435, possuía dois irmãos consanguíneos que lhe apoiavam todos os planos loucos de vaidade e domínio. Casou-se, mas sentindo na presença do marido um entrave ao desdobramento das leviandades que lhe marcavam o caráter, acabou constrangendo-o a enfrentar o punhal dos favoritos, arrastando-o para a morte. Viúva e dona de bens consideráveis, cresceu em prestígio, por haver favorecido o casamento da rainha, então viúva de Guilherme, Duque da Áustria, com Jaime de Bourbon, Conde de La Marche. Desde aí, mais intimamente associada às aventuras de sua soberana, confiou-se a prazeres e dissipações, nos quais perturbou a conduta de muitos homens de bem e arruinou as construções domésticas, elevadas e dignas, de várias mulheres do seu tempo. Menosprezou sagradas oportunidades de educação e beneficência que lhe foram concedidas pela Bondade Celeste, aproveitando-se da nobreza precária para desvairar-se na irreflexão e no crime. Foi assim que, ao desencarnar, no fastígio da opulência material, nos meados do século XV, desceu a medonhas profundezas infernais, onde padeceu o assédio de ferozes inimigos que lhe não perdoaram os delitos e deserções. Sofreu por mais de cem anos consecutivos nas trevas densas, conservando a mente parada nas ilusões que lhe eram próprias, voltando à carne por quatro vezes sucessivas, por intercessão de amigos do Plano Superior, em cruciantes problemas expiatórios, no decurso dos quais, na condição de mulher, embora abraçando novos compromissos, experimentou pavorosos vexames e humilhações da parte de homens sem escrúpulos que lhe asfixiavam todos os sonhos…

— Mas — perguntou Hilário —, de cada vez que se retirava da carne, nas quatro existências a que alude, continuava ligada às sombras?

— Como não? — exclamou o Assistente — quando a queda no abismo é de longo curso, ninguém emerge de um salto. Ela naturalmente entrava pela porta do túmulo e saía pela porta do berço, transportando consigo desajustes interiores que não podia sanar de momento para outro.

— Se a situação era assim inalterável — ponderou meu colega —, para que retomar o corpo físico? não lhe bastaria sofrer na dolorosa purgação daqui deste lado, sem renascer na esfera carnal?…

— A observação é compreensível — ajuntou Silas, paciente —, entretanto, nossa irmã, com o amparo de abnegados companheiros, voltou ao pagamento parcelado das suas dívidas, reaproximando-se de credores reencarnados, não obstante mentalmente jungida aos planos inferiores, desfrutando a bênção do olvido temporário, com o que lhe foi possível angariar preciosa renovação de forças.

— Mas sempre conseguiu ressarcir, de alguma sorte, os débitos em que se emaranhou?

— De alguma sorte, sim, porque padeceu tremendos golpes no orgulho que trazia cristalizado no coração… Contudo, a par disso, contraiu novas dívidas, de vez que, em certas ocasiões, não conseguiu superar a aversão instintiva, diante dos adversários aos quais passou a dever trabalho e obediência, chegando ao infortúnio de afogar uma criancinha que mal ensaiava os primeiros passos, de modo a ferir a senhora da casa em que servia de ama, tentando vingar-se de crueldades recebidas. Depois de cada desencarnação, regressava habitualmente às zonas purgatoriais de que procedia, com alguma vantagem no acerto das suas contas, mas não com valores acumulados, imprescindíveis à definitiva libertação das sombras, porque todos somos tardios na decisão de pagar nossos débitos, até o integral sacrifício…

— Contudo — tornou Hilário —, sempre que regressava à Esfera espiritual, decerto contava com o auxílio dos benfeitores que procuram refrear-lhe os desatinos.

— Exatamente — confirmou Silas —; ninguém está condenado ao abandono. Vocês não ignoram que o Criador atende à criatura por intermédio das próprias criaturas. Tudo pertence a Deus.

— Ainda mesmo o inferno? — acrescentou Leonel, preocupado.

O Assistente sorriu e aclarou:

— O inferno, a rigor, é obra nossa, genuinamente nossa, mas imaginemo-lo, assim, à maneira de uma construção indigna e calamitosa, no terreno da vida, que é Criação de Deus. Tendo abusado de nossa razão e conhecimento para gerar semelhante monstro, no Espaço Divino, compete-nos a obrigação de destruí-lo para edificar o Paraíso no lugar que ele ocupa indebitamente. Para isso, o Infinito Amor do Pai Celeste nos auxilia de múltiplos modos, a fim de que possamos atender à Perfeita Justiça. Entendido?

A explicação não podia ser mais clara; entretanto, Hilário parecia interessado em solver qualquer dúvida e, talvez por isso, inquiriu novamente:

— Considera possível venhamos a saber quais seriam as existências de Laudemira, antes de haver ingressado na Corte de Joana 2?

— Sim — elucidou Silas, tolerante —, será fácil conhecê-las, mas não nos convém num simples estudo efetuar o tentame, porque o assunto em si reclamaria largas quotas de atenção e de tempo. Basta lhe pesquisemos a condição referida para definir-lhe as lutas redentoras de agora, porquanto nossos estágios em qualquer eminência social no mundo, seja no campo da influência ou das finanças, da cultura ou da ideia, servem como pontos vivos de referência da nossa conduta digna ou indigna, no usufruto das possibilidades que o Senhor nos empresta, designando com clareza nosso avanço na direção da Luz ou nosso aprisionamento maior ou menor nos Círculos da treva, pelas virtudes conquistadas ou pelos débitos assumidos.

A conceituação luminosa de Silas era verdadeiro jorro solar em meu entendimento…

Ainda assim, meu companheiro insistiu:

— Não obstante os seus valiosos conceitos já expendidos, quanto à memória nas regiões inferiores, será interessante saber se Laudemira, antes da atual reencarnação, chegava a lembrar-se com nitidez dos estágios por que passou nas difíceis provações a que se refere…

Nosso amigo esclareceu com a maior tolerância:

— Estou na Mansão há oito lustros, e acompanhei-lhe a internação em nossa casa, faz precisamente trinta anos. Havia encerrado a existência última, no Plano carnal, no início deste século, e atravessara longos padecimentos, nas Esferas de baixo nível. Ingressou em nosso instituto acusando terrível demência e, submetida à hipnose, revelou os fatos que venho de narrar, fatos esses que constam naturalmente da ficha que lhe define a personalidade, no arquivo das observações que nos orientam. Nossos instrutores, porém, não julgaram necessário mais amplo recuo mnemônico, pelo menos por enquanto, para lhe prestarem auxílio. Sei, no entanto, que Laudemira, conturbada qual se achava, não dispunha de forças para articular qualquer reminiscência na vigília comum, mesmo porque foi trazida à reencarnação atual, sob os auspícios de benfeitores que velam por nossa organização, ainda mentalmente sintonizada com os laços menos dignos do caminho que escolheu. Deve agora receber cinco de seus antigos cúmplices na queda moral, para reerguer-lhes os sentimentos, na direção da luz, em abençoado e longo sacerdócio materno. Do seu êxito no presente, dependerão as facilidades que espera recolher do futuro, para a liberação definitiva das sombras que ainda lhe ofuscam o Espírito, pois, se conseguir formar cinco almas na escola do bem, terá conquistado enorme prêmio, diante da Lei amorosa e justa.

O problema de Laudemira, debatido em nosso regresso, valia por preciosa contribuição no tema “causa e efeito” que nos decidíramos estudar.


E, reparando em que a nossa curiosidade se quedara, satisfeita, Silas voltou-se com mais carinho para Leonel e Clarindo, sondando-lhe os ideais. Decerto, para conhecer-lhes naturalmente as esperanças, reportou-se aos próprios anseios, quanto aos trabalhos médicos do futuro. Não pretendia perder tempo. Tinha agora a sede de aprender e servir, para demandar o campo humano com os melhores valores do espírito, que se lhe exprimiriam na mente, quando encarnado, em forma de tendência e facilidade na chamada “vocação inata”.

Os dois irmãos, sabiamente tocados pela palavra do amigo que lhes ganhara a confiança, sentiam-se agora mais à vontade.

A confissão do Assistente e o exemplo de humildade que nos fornecera, espontâneo, penetrara-lhes, fundo.

Clarindo, impulsivo e franco, falou dos ideais de que se inflamara, anos antes. Possuía entranhado amor ao solo e projetara, quando jovem, a organização de um reduto agrícola em que lhe fosse possível consagrar-se a nobilitantes experiências. Anelaria ter vivido largo tempo na propriedade familiar, criando um setor de ação própria. Entretanto, comentou algo triste, mas sem o tom de revolta de suas anteriores conversações, a criminosa decisão de Antônio Olímpio aniquilara-lhe os sonhos. Vira-se esbulhado dos seus ideais, em tremenda frustração que, depois do sepulcro, lhe dementava a cabeça… Não conseguia disposições mentais para refazer a esperança… Sentia-se como o desespero em pessoa, como alguém que se identificasse irremediavelmente agrilhoado a pelourinho degradante…

E Clarindo mostrava agora inflexão de pranto na voz, revelando-se imensamente transformado.

Leonel, cuja inteligência refinada nos infundia cauteloso respeito, estimulado por Silas, começou a dizer de sua inclinação para a música…

Quando menino entre os homens, acreditava-se talhado para a arte sublime. Jovem, apaixonara-se pela obra de Beethoven, cuja biografia guardava de cor. Em razão disso, não buscava tão somente o título de bacharel para o qual se preparava, mas também os louros de pianista, com o que se sentiria sumamente feliz…

No entanto, e exprimia-se carregando a voz de insofreável amargura, o homicídio de que fora vítima turvara-lhe a visão. Albergava no íntimo tão somente o ódio que passara a reger-lhe a existência e, com o ódio no coração, não sabia rearquitetar os castelos do princípio…

Leonel fez longa pausa e acentuou com agradável surpresa para nós:

— Entretanto, em nossos contatos pessoais nos dias últimos, começo a perceber que, se tivemos a experiência física ceifada em plena juventude do corpo, indubitavelmente possuíamos débitos que justificavam provação assim tão rude, embora isso não exima Antônio Olímpio, o irmão ingrato, da culpa que carrega, esposando a responsabilidade do horrível assassínio com que nos precipitou nas sombras.

— Exatamente — acrescentou Silas, emocionado —, seu argumento denuncia grande renovação…

Contudo, o Assistente não pôde continuar, porque Leonel mergulhou a cabeça nas mãos e clamou em lágrimas:

— Mas, ó Deus, por que só conhecemos a alta virtude do perdão, quando já nos enodoamos no crime? por que só tão tarde o desejo de restaurar o campo de nossas aspirações, quando a vingança já nos crestou a vida no incêndio do mal?!…

Enquanto Clarindo lhe acompanhava a explosão de dor e remorso, com sinais de aprovação, e Silas o acolhia, generoso, de encontro ao peito, pressentimos que Leonel se reportava à morte de Alzira, debaixo da obsessão que, sem dúvida, ele e o irmão haviam comandado.

O orientador de nossa excursão, todavia, deu-se pressa em consolá-lo, exortando, bondoso:

— Chora, meu amigo! Chora, que as lágrimas purificam o coração!… Ainda assim, não permitas que o pranto te esmague a lavoura de esperança… Quem de nós, aqui, jaz sem culpa? Todos temos compromissos a resgatar e o Tesouro do Senhor jamais se empobrece de compaixão. O tempo é a nossa bênção… Com os dias coagulamos a treva ao redor de nós e, com os dias, convertê-la-emos em sublimada luz… Entretanto, para isso, é indispensável perseveremos na coragem e na humildade, no amor e no sacrifício. Levantemo-nos na direção do futuro, dispostos à reconstrução dos nossos destinos.

Notamos que Leonel, naquela hora, propunha-se vazar o coração em nossos ouvidos. Queria desabafar, confessar-se…

Silas, no entanto, restituindo-o à meditação, convidou-nos ao regresso, prometendo voltar na noite seguinte.


Os dois companheiros, completamente modificados, reinstalaram-se no lar de Luís, e prosseguimos de retorno.

A caminho, o Assistente rejubilava-se. O processo Antônio Olímpio, a nós confiado, atingia bom termo.

A renovação dos obsessores coroara-se de êxito.

E o chefe da nossa expedição dizia aguardar para a noite imediata o entendimento entre Alzira e aqueles que lhe seriam filhos no porvir, depois do qual seriam ambos internados na Mansão, com o pleno assentimento deles mesmos, tendo em vista a preparação do futuro… Na casa dirigida por Druso, trabalhariam e reeducar-se-iam, encontrando novos interesses mentais e novos estímulos para a necessária recuperação…

Assim que o nosso amigo entrou em silêncio, Hilário indagou, preocupado:

— Quanto tempo gastarão Clarindo e Leonel, aplainando os caminhos para a volta ao corpo físico?

— Provavelmente um quarto de século…

— Por que tanto?

— Precisarão reconstituir as ideias, no campo do bem, plasmando-as de modo indelével na mente, a fim de que se consagrem à efetivação dos novos planos. Refugiar-se-ão no serviço ativo, ajudando aos outros e criando, assim, preciosas sementeiras de simpatia, que lhes facilitarão as lutas na Terra, amanhã… No trabalho e no estudo, tanto quanto nos empreendimentos da pura fraternidade, amealharão incorruptíveis valores morais, e a reeducação, dessa forma, aperfeiçoar-lhes-á as tendências, predispondo-os à vitória de que necessitam nas provações remissoras.

— E Antônio Olímpio? — insistiu Hilário — pelo que deduzo, permanecerá. muito menos tempo na Mansão…

— Sim — aprovou o Assistente —, Antônio Olímpio, depois de breve reconciliação com os manos, renascerá, sem dúvida, dentro de dois a três anos.

— Por que tão grande diferença?

— Não podemos esquecer — explicou Silas, sereno — que foi ele quem começou a criminosa trama sob nosso estudo. Por isso, do grupo de reencarnantes, será o companheiro menos favorecido na Lei, durante a viagem prevista à Esfera humana, pelas agravantes que lhe marcam o problema individual. Com o espírito ainda sombreado de angústia e arrependimento, ressurgirá no berço da família que ele prejudicou, pela prática da usura, movimentando-se num horizonte mental muito restrito, de vez que, instintivamente, a sua maior preocupação será devolver aos irmãos espoliados a existência física, o dinheiro e as terras que deles furtou… Em razão disso, apenas disporá de facilidades íntimas para a cultura e o aprimoramento de si mesmo, na idade madura do corpo, quando houver encaminhado os filhos para o triunfo que a eles compete alcançar.

— Entretanto — ponderou meu colega —, Clarindo e Leonel também mataram…

— E decerto pagarão por isso; contudo, não podemos negar-lhes atenuantes no lamentável delito… Antônio Olímpio planejou o crime, friamente, para acomodar-se nas vantagens materiais que lhe adviriam da crueldade e da violência, e os irmãos infelizes agiram no pesadelo do ódio, traumatizados de pavorosa dor… Inegavelmente, Clarindo e Leonel padecem angústia e remorso, devendo sofrer doloroso resgate, em momento oportuno, mas, ainda assim, são credores do irmão que lhes retardou os passos evolutivos…

— E Alzira nessa história?

— Alzira já conseguiu entesourar bastante amor para entender, perdoar e auxiliar… Por esse motivo, dispõe, diante da Lei, do poder de ajudar, tanto ao esposo como aos cunhados, até agora infelizes, tanto ao filho Luís, ainda na carne, como a todos os descendentes de sua organização familiar, porque, quanto mais amor puro no Espírito, mais amplos recursos da alma perante Deus…

E, lançando expressivo olhar sobre nós, acentuou:

— Aqueles que amam realmente, governam a vida.

Sentia-me satisfeito. Os conceitos não poderiam ser mais claros.

Hilário, contudo, pedindo desculpas pela insistência, levantou ainda nova questão.

Por que sofrera Alzira aflitiva desencarnação no lago?

Silas, no entanto, considerou:

— Compreendendo-se que nossa amiga já conquistou a felicidade do perdão irrestrito, filho do amor que não se preocupa em ser amado, não nos convém mais profunda imersão no pretérito, tornando nosso estudo fastidioso.

E sorrindo:

— Alzira, diante de nós outros, já é alguém que possui larga faixa de Céu no coração… Os assuntos que lhe dizem respeito devem ser analisados no Céu…

Atingíramos a Mansão e, recolhidos a nós mesmos, passamos a digerir as lições da hora em curso… As peças de amor e ódio, sofrimento e vingança do processo Antônio Olímpio eram as mesmas de nossos dramas pessoais, destacando a necessidade de amor e perdão em nossas vidas, para que, através do sentimento puro, pudéssemos avançar da sombra para a luz…


Nessas graves reflexões, aguardamos ansiosamente a noite seguinte.

E, em chegando a hora abençoada de nossos estudos, o Assistente entendeu-se com a irmã Alzira, em longa conversação particular, solicitando-lhe nos reencontrasse, a determinada hora, no lago em que ocorrera a desencarnação dela. Em seguida, recomendou a duas cooperadoras da casa lhe acompanhassem a viagem, instruindo-as para que nossa amiga somente viesse até nós quando chamada por nosso grupo em serviço.

Depois da costumeira excursão, entrávamos no lar de Luís, onde Clarindo e Leonel nos aguardavam com carinhoso interesse.

Silas reconduziu-nos ao hospital que visitáramos na véspera, administrando passes magnéticos em Laudemira e no filhinho recém-nato e, findas essas ligeiras atividades de assistência, transportou-nos para vasto domicílio, em cujo umbral um velhinho desencarnado, de fisionomia simpática, recebeu-nos amavelmente.

— É o nosso irmão Paulino, que vem amparando as obras do filho, dedicado à engenharia na Terra explicou o orientador de nossas tarefas.

E Paulino deu-nos acesso ao interior familiar, situando-nos num espaçoso gabinete em que um homem maduro jazia debruçado sobre um livro.

O generoso anfitrião no-lo apresentou como sendo o filho encarnado, cuja missão técnica assistia com invariável desvelo. E, porque indagasse ao diretor de nossa excursão em que poderia servir-nos, Silas rogou-lhe os bons ofícios, junto ao filho, para que nos fosse propiciado, ali, o prazer de alguns momentos de música, solicitando-lhe, se possível, alguma página especial de Beethoven.

Com surpresa, vimos nosso amigo abeirar-se do engenheiro, segredando-lhe algo aos ouvidos. E, longe de assinalar-nos a presença, qual se estivesse constrangido por si mesmo a ouvir música, o cavalheiro interrompeu a leitura, dirigiu-se à eletrola e consultou pequena discoteca, de que retirou a Pastoral do grande compositor a que nos referimos.

Em breves momentos, o recinto povoava-se para nós de encantamento e alegria, sonoridade e beleza.

Silas, com alma e coração, ouvia conosco a sinfonia admirável, toda ela estruturada em bênçãos da Natureza sublimada.

Com Clarindo, atraído para as lides campestres, sentíamos mentalmente a presença do bosque, repleto de pássaros cantores sobrevoando um regato cristalino a deslizar sobre leitosos seixos, e, qual se a paisagem imaginária obedecesse à narração melódica, vimo-la transformar-se, de repente, dando-nos a ideia de que o céu, dantes azul, se cobria de nuvens pesadas e pardacentas, a despejarem faíscas e trovões, para depois retornar ao quadro florido, entre cânticos e preces… E, com Leonel, apaixonado pela arte divina, registrávamos o império da música, em sua majestade soberana, arrebatando-nos às mais sublimes emoções.

Aqueles minutos valiam para nós como abençoada oração.

Os lances da magnífica sinfonia como que nos elevavam a círculos harmoniosos de ignota beleza e todos trazíamos lágrimas abundantes, de vez que os encantadores acordes em movimento possuíam a faculdade de lavar-nos, miraculosamente, os refolhos do ser.

Findas as notas derradeiras, despedimo-nos, maravilhados.

Nossos pensamentos vibravam em sintonia mais pura, e os nossos corações pareciam mais fraternos.


Por solicitação de Leonel, que parecia atender instintivamente à sugestão de Silas, demandamos o lago na velha propriedade dos Olímpios.

O plenilúnio coroava o campo de prateadas fulgurações.

A noite ia alta…

Tomando a iniciativa, o irmão de Clarindo passou, então, a relatar-nos quanto já sabíamos, detendo-se em copioso pranto, ao referir-se à morte da cunhada, sobre quem atirara as farpas da sua ira…

Extremamente surpreendidos, Hilário e eu anotávamos a paciente atenção de Silas em lhe ouvindo a confissão, qual se o assunto lhe fora absoluta novidade.

Depois de mais de uma hora, em que nosso companheiro sofredor se mantivera com a palavra, o Assistente, em particular, chamou-nos a mais nobre compreensão, declarando a Hilário e a mim que o nosso amigo tinha necessidade de expungir do coração ferido as suas dores, e que, de nossa parte, embora lhe conhecêssemos o drama íntimo, não nos cabia cercear-lhe a confissão e sim recolhê-la fraternalmente, partilhando-lhe a carga de aflição, para que se lhe aliviassem as chagas do pensamento.

Logo após, Silas envolveu a ambos os irmãos numa interessante palestra, propondo-lhes o reajustamento por meio de luta reparadora.

Não desejariam retomar, porventura, o caminho terrestre? por que não abraçarem trabalho novo, buscando o renascimento na mesma família de que provinham? não seria mais agradável e mais fácil conquistar a reconciliação e, com isso, reentrar na posse das antigas aspirações, marchando com elas, no Plano físico, ao encontro de preciosos degraus para a Vida Superior?

Leonel e Clarindo, porém, quase que de modo simultâneo, lamentaram-se quanto ao problema de Alzira… Em verdade, no desespero da própria causa, haviam aceitado as sugestões da loucura, gastaram anos a fio estendendo a crueldade nas trevas; entretanto, nada lhes doía tanto como a violência praticada contra a esposa de Antônio Olímpio que, horrorizada ante a perseguição deles, se havia arrojado naquelas águas de terríveis reminiscências…

Mas… e se Alzira lhes trouxesse em pessoa o abraço de entendimento e de auxílio?

E como sorrissem de esperança, no turbilhão das próprias lágrimas, o Assistente afastou-se por alguns minutos e voltou, trazendo em sua companhia a generosa irmã que, envergando cintilante roupagem, lhes estendeu as mãos, a ofertar-lhes o colo maternal, resplendente de amor.

Leonel e Clarindo, qual se fossem feridos de morte, caíram genuflexos, esmagados de medo e júbilo… Alzira, no entanto, afagou-lhes as cabeças submissas e falou em tom comovente:

— Filhos de minhalma, rendamos graças a Deus por esta hora de bênção.

E porque Leonel tentasse debalde pedir-lhe perdão, ensaiando monossílabos cortados pelos soluços, a genitora de Luís suplicou, humilde:

— Sou eu quem deve ajoelhar-se, implorando-lhes caridoso indulto!… O crime de meu esposo é também meu crime… Vocês foram espoliados dos mais belos sonhos, quando a mocidade terrestre começava a sorrir-lhes. Nossa desregrada ambição, contudo, furtou-lhes os recursos e as possibilidades, inclusive a existência… Perdoem-nos!… Pagaremos nossas dívidas, Ajudar-nos-á o Senhor na recuperação de nossa casa… Em breve, Antônio Olímpio e eu estaremos novamente no Plano físico e, com o apoio da Misericórdia Divina, restituiremos a vocês o sítio que não nos pertence… Permitam, meus filhos, possa honrar-se minha alma com o privilégio de ser-lhes amorosa mãe no mundo… Para restaurar-lhes a esperança e refazer-lhes o ideal, ofereço-lhes o meu coração… Conceder-me-á o Senhor a bênção de agasalhá-los em meu seio, criando-os com o hálito de meus beijos e com o orvalho de minhas lágrimas… Para isso, porém, é necessário que o olvido de nossos pesares nasça, puro, do amor que devemos una aos outros… Esqueçamos ressentimentos e Deus nos suprirá de recursos para que venhamos a solver nossos débitos… Ergam-se, filhos queridos… Sabe Jesus que desejo conchegá-los de encontro ao meu peito e guardá-los nos meus braços!…

Alzira, porém, não conseguiu continuar. Copioso pranto orvalhava-lhe a face, mas algo como que se lhe represava na garganta, abafando-lhe a voz.

Ainda assim, vimos a gloriosa vitória do amor, naqueles momentos rápidos… Do tórax de Alzira, chispas flamejantes emergiam em sucessivas ondas de safirino esplendor, dando-nos a ideia de que a sua grandeza íntima se havia transformado em fonte de imensa luz. Amparados por ela, Clarindo e Leonel levantaram-se, à maneira de duas crianças atraídas pela ternura materna, e enlaçaram-na em comovedores soluços.

Nossa companheira, acariciando-os, reconhecida, acolheu-os no regaço, como se passasse a reter consigo dois tesouros do coração.

Atendendo a mudo sinal do orientador de nossa excursão, auxiliamo-la como se fazia preciso, e, depois de algum tempo, transportando conosco os dois novos amigos, dávamos entrada no grande instituto.

Após interná-los em departamento adequado, falou Silas, contente:

— Graças a Deus, nossa tarefa está cumprida. Agora, esperemos se habilitem todos, ante a nova batalha que ferirão na Terra, para o serviço salvador em que se misturam afeto e aversão, alegria e dor, luta e dificuldade, em busca da redenção.

Em meu entendimento, perguntas diversas nasciam, imperiosas, mas compreendi que a lei de causa e efeito agiria, infatigável, para as personagens de nossa história, e meditei nas minhas próprias dívidas… Foi então que, ao invés de indagar, beijei, respeitoso, as mãos do Assistente, na condição do aprendiz reconhecido ao instrutor generoso, e recolhi-me à prece em silêncio, agradecendo a Jesus a valiosa lição.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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