Ação e Reação

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Capítulo IV

Alguns recém-desencarnados


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Atingíramos largo recinto construído à feição de um pátio interior de proporções corretas e amplas.

Tive a ideia de penetrar em enorme átrio, algo semelhante a certas estações ferroviárias terrestres, porque nas acomodações marginais, caprichosamente dispostas, se encontravam dezenas de entidades em franca expectativa.

A dizer verdade, não vi sinais de alegria completa em rosto algum.

Os grupos variados, alguns deles em discreto entendimento, dividiam-se entre a preocupação e a tristeza.

De passagem, podíamos ouvir diálogos diferentes.

Em círculo reduzido, registramos frases como estas:

— Acreditas possa ela, agora, devotar-se à mudança justa?

— Dificilmente. Centradizou-se, por muito tempo, no descontrole da própria vida.

Mais além, escutamos dos lábios de uma senhora que se dirigia a um rapaz de agoniado semblante:

— Meu filho, guarde serenidade. Segundo informações do Assistente Cláudio, seu pai não virá em condições de reconhecer-nos. Precisará muito tempo para retornar a si.

Em trânsito, não assinalava senão alguns retalhos de conversação como esses.

A certa altura, na praça em movimentação, Druso, generoso, confiou-nos aos cuidados de Silas, mencionando obrigações urgentes que lhe absorveriam a atenção.

Encontrar-nos-íamos no dia seguinte, informou.

A promessa gentil obrigou-me a considerar o aspecto do tempo.

Pela sombra reinante, não poderíamos saber se era dia, se era noite.

Por isso, o grande relógio, ali existente, com largo mostrador abrangendo as vinte e quatro horas, funcionou aos meus olhos como a bússola para o viajante, deixando-me perceber que estávamos em noite alta.

Sons de campanas invisíveis cortavam agora o ar e, assinalando-nos a curiosidade, Silas esclareceu que a caravana-comboio penetraria no recinto em alguns minutos.

Aproveitei os momentos para indagações que julguei necessárias.

Que espécie de criaturas aguardávamos, ali? Recém-desencarnados em que condições? como se organizaria a caravana-comboio? vinha diariamente à instituição atendendo a horário certo?

O companheiro, que se dispusera a assistir-nos, informou que as entidades prestes a entrarem integravam uma equipe de dezenove pessoas, acompanhadas por dez servidores da casa, que lhes orientavam a excursão, tratando-se de recém-desencarnados em desequilíbrio mental, mas credores de imediata assistência, de vez que não se achavam em desesperação, nem se haviam comprometido de todo com as forças dominantes nas trevas. Notificou, ainda, que a caravana se constituía de trabalhadores especializados, sob a chefia de um Atendente, e que viajavam com simplicidade, sem carros de estilo, apenas conduzindo o material indispensável à locomoção no pesado ambiente das sombras, auxiliados por alguns cães inteligentes e prestimosos.

A Mansão contava com dois grupos dessa natureza.

Diariamente um deles atingia aquele domicílio de reajuste, revezando-se no piedoso mister socorrista.

Entretanto — aclarou —, não possuíam horário certo para a chegada, de vez que a peregrinação, pelos domínios das trevas, obedecia comumente a fatores circunstanciais.

Mal terminara o interlocutor e a expedição penetrava o enorme átrio.

Os cooperadores responsáveis estavam aparentemente calmos, evidenciando alguns, entretanto, no olhar, funda preocupação.

Os recolhidos, no entanto, exceção de cinco que vinham de maca, desmemoriados e dormentes, revelavam perturbações manifestas que, em alguns, se expressavam por loucura desagradável, se bem que pacífica.

Enquanto os enfermeiros se desvelavam em ajudá-los, carinhosos e atentos, e os cães se deitavam, extenuados, aqueles seres recém-chegados falavam e reclamavam, demonstrando absoluta ausência mental da realidade e provocando piedade e constrangimento.

Silas convidou-nos à movimentação.

Efetivamente, cabia-nos algo fazer na cooperação.

O chefe da caravana aproximou-se de nós e o Assistente no-lo apresentou num gesto amigo.

Era o Atendente Macedo, valoroso condutor de tarefas socorristas.

Afeiçoados e parentes dos recém-vindos cercavam-nos, agora, com expressões de alegria e sofrimento.

Algumas senhoras que vira, antes, em ansiosa expectativa, derramavam lágrimas discretas.

Notei que as criaturas recém-desligadas do corpo denso, conturbadas qual se achavam, traziam consigo todos os sinais das moléstias que lhes haviam imposto a desencarnação.

Ligeiro exame clínico poderia sem dúvida favorecer a leitura da diagnose individual.

Dama simpática abeirara-se de uma jovem senhora que vinha amparada pela ternura de uma das enfermeiras da instituição, e, abraçando-a, chorava sem palavras. A moça recém-liberta recebia-lhe os carinhos, rogando, comovente:

— Não me deixem morrer!… não me deixem morrer!…

Mostrando-se enclausurada na lembrança dos momentos derradeiros no corpo terrestre, de olhos torturados e lacrimosos, avançou para Silas, exclamando:

— Padre! padre, deixa cair sobre mim a bênção da extrema-unção; contudo, afasta de minhalma a foice da morte!… Tentei apagar minha falta na fonte da caridade para com os desprotegidos da sorte, mas a ingratidão, praticada com minha mãe, fala muito alto em minha consciência infeliz!… Ah! por que o orgulho me encegueceu, assim tanto, a ponto de condená-la à miséria?!… Por que não possuía eu, há vinte anos, a compreensão que tenho agora? Pobrezinha, meu padre! Lembra-se dela? Era uma atriz humilde que me criou com imensa doçura!… Concentrou em mim a existência… Da ribalta festiva, desceu a rude labor doméstico para conquistar nosso pão… Tinha a sociedade contra ela, e meu pai, sem ânimo de lutar pela felicidade de todos nós, deixou-a arrastar-se na extrema pobreza, acovardado e infiel aos compromissos que livremente assumira…

A infortunada criatura fez ligeiro interregno, misturando as próprias lágrimas com as da nobre matrona que a conchegava de encontro ao peito e, de mente aprisionada à confissão que fizera “in extremis”, continuou qual se tivesse o sacerdote ao pé de si:

— Padre, perdoe-me, em nome de Jesus, entretanto, quando me vi jovem a senhora do vultoso dote que meu pai me conferira, envergonhei-me do anjo maternal que sobre os meus dias estendera as brancas asas e, aliando-me ao homem vaidoso que desposei, expulsei-a de nossa casa!… Oh! ainda sinto o frio daquela terrível noite de adeus!… Atirei-lhe ao rosto frases cruéis… Para justificar minha vileza de coração, caluniei-a sem piedade!… Pretendendo elevar-me no conceito do homem que desposara, menti que ela não era minha mãe! apontei-a como ladra comum que me roubara ao nascer!… Lembro-me do olhar de dor e compaixão que me lançou ao despedir-se… Não se queixou, nem reagiu… Apenas contemplou-me, tristemente, com os olhos túrgidos de chorar!…

Nessa altura, a dama que a sustentava afagou-lhe os cabelos em desalinho e buscou reconfortá-la:

— Não se excite. Descanse… descanse…

— Ah! que voz é esta? — bradou a moça a desvairar-se de angústia.

E, tateando as mãos afetuosas que lhe acariciavam as faces, exclamou, sem vê-las:

— Oh! padre, dir-se-ia que ela se encontra aqui, junto de mim!…

E, voltando, para o alto os olhos apagados e súplices, rogava em pranto:

— Ó Deus, não me deixeis encontrá-la, sem que pague os meus débitos!… Senhor, compadecei-vos de mim, pecadora que Vos ofendi, humilhando e ferindo a amorosa mãe que me destes!…

Com o auxílio de duas enfermeiras, porém, a simpática senhora que a acalentava situou-a em leito portátil e fê-la emudecer, à força de inexcedível ternura.

Percebendo-me a emotividade, Silas, depois de amparar o serviço de acomodação da doente, explicou:

— A dama generosa que a recolheu nos braços é a genitora que veio ao encontro da filha.

— Que nos diz?! — exclamou Hilário, assombrado. — Sim, acompanhá-la-á, carinhosamente, sem identificar-se, para que a pobre desencarnada não sofra abalos prejudiciais. O traumatismo perispirítico vale por muito tempo de desequilíbrio e aflição.

— E por que motivo teria a doente decidido confessar-se, dessa maneira? — perguntou meu colega, intrigado.

— É fenômeno comum — elucidou o Assistente. As faculdades mentais de nossa irmã sofredora estagnaram-se no remorso, em razão do delito máximo de sua existência última, e, desde que foi mais intensamente tocada pelas reflexões da morte, entregou-se, de modo total, a semelhantes reminiscências. Por haver cultivado a fé católica romana, imagina-se ainda diante do sacerdote, acusando-se pela falta que lhe maculou a vida…

O espetáculo ferira-me, fundo.

A rudeza do quadro que a verdade me oferecia obrigava-me a dolorida meditação.

Não havia, então, males ocultos na Terra!…

Todos os crimes e todas as falhas da criatura humana as revelariam algum dia, em algum lugar!…

Silas entendeu a amargura de minhas reflexões e veio em meu socorro, observando:

— Sim, meu amigo, você repara com acerto. A Criação de Deus é gloriosa luz. Qualquer sombra de nossa consciência jaz impressa em nossa vida até que a mácula seja lavada por nós mesmos, com o suor do trabalho ou com o pranto da expiação…

E ante os apelos agoniados e afetivos nos reencontros a se processarem, ali, sob nossos olhos, em que filhos e pais, esposos e amigos se reaproximavam uns dos outros, o Assistente acrescentou:

— Geralmente a estas plagas de inquietação aportam aqueles que em si mesmos cavaram mais fundos sulcos infernais e que se cristalizaram em perigosas ilusões, mas a Bondade Infinita do Senhor permite que as vítimas edificadas no entendimento e no perdão se transformem, felizes, em abnegados cireneus dos antigos verdugos. Como é fácil verificar, o incomensurável amor de nosso Pai Celeste cobre, não somente os territórios glorificados do paraíso, mas também as províncias atormentadas do inferno que criamos…

Pobre mulher prorrompeu em choro convulso, junto de nós, cortando a palavra de nosso amigo.

De punhos cerrados, reclamava a infeliz:

— Quem me libertará de Satã? quem me livrará do poder das trevas? Santos anjos, socorrei-me! Socorrei-me contra o temível Belfegor!…

Silas convocou-nos ao amparo magnético imediato.

Enfermeiros presentes acorreram, solícitos, impedindo o agravamento da crise.

— Maldito! Maldito!… — repetia a demente, persignando-se.

Invocando o socorro divino, através da oração, procurei anular-lhe os movimentos desordenados, adormecendo-a pouco a pouco.

Asserenado o ambiente, convidou-nos Silas a sondar-lhe a mente conturbada, agora sob o império de profunda hipnose.

Busquei pesquisar-lhe a desarmonia em rápido processo de análise mental, e verifiquei, espantado, que a pobre amiga era portadora de pensamentos horripilantes.

Como que a se lhe enraizar no cérebro, via escapar-lhe do campo íntimo a figura animalesca de um homem agigantado, de longa cauda, com a fisionomia de um caprino degenerado, exibindo pés em forma de garras e ostentando dois chifres, sentado numa cadeira tosca, qual se vivesse em perfeita simbiose com a infortunada criatura, em mútua imanização.

Diante da minha pergunta silenciosa, o Assistente informou:

— É um clichê mental, criado e nutrido por ela mesma. As ideias macabras da magia aviltante, quais sejam as da bruxaria e do demonismo que as igrejas denominadas cristãs propagam, a pretexto de combatê-los, mantendo, crendices e superstições, ao preço de conjurações e exorcismos, geram imagens como esta, a se difundirem nos cérebros fracos e desprevenidos, estabelecendo epidemias de pavor alucinatório. As Inteligências desencarnadas, entregues à perversão, valem-se desses quadros mal contornados que a literatura feiticista ou a pregação invigilante distribuem na Terra, a mancheias, e imprimem-lhes temporária vitalidade, assim como um artista do lápis se aproveita dos debuxos de uma criança, tomando-os por base dos desenhos seguros com que passa a impressionar o ânimo infantil.

O esclarecimento se me deparava como oportuna chave para a solução de muitos enigmas, no capítulo da obsessão, em que os doentes começam atormentando a si mesmos e acabam atormentados por seres que se afinam com o desequilíbrio que lhes é próprio.

Hilário, que observava atentamente o duelo íntimo entre a enferma prostrada e a forma-pensamento que se lhe superpunha à cabeça, falou comovido:

— Lembro-me de haver manuseado, há muitos anos, na Terra, um livro da autoria de Collin de Plancy, aprovado pelo arcebispo de Paris, trazendo a descrição minuciosa de diversos demônios, e creio haver visto uma figura gravada nessa obra, semelhante à que temos sob nossa direta observação.

Silas adiantou, confirmando:

— Isso mesmo. É o demônio Belfegor, segundo as anotações de Jean Weier, que imprevidentes autoridades da Igreja permitiram se espalhasse nos círculos católicos. Conhecemos o livro a que se refere. Tem criado empecilhos tremendos a milhares de criaturas que inadvertidamente acolhem tais símbolos de Satanás, oferecendo-os a Espíritos bestializados que os aproveitam para formar terríveis processos de fascinação e possessão.

Refletia quanto ao problema dos moldes mentais na vida de cada um de nós, quando o Assistente, certo me surpreendendo a indagação, acentuou bem-humorado:

— Aqui, é fácil reconhecer que cada coração edifica o inferno em que se aprisiona, de acordo com as próprias obras. Assim, temos conosco os diabos que desejamos, segundo o figurino escolhido ou modelado por nós mesmos.

O serviço assistencial, porém, exigia cautelosa atenção e, por isso, removemos a enferma para o aposento limpo e bem-posto que a esperava.


Decorridos alguns minutos, voltamos ao átrio, então descongestionado e silencioso.

Apenas algumas sentinelas da noite velavam, infatigáveis e atentas.

Os tormentos entrevistos compeliam-me a pensar. Muito já estudara acerca de pensamento e fixação mental, todavia, a angústia daquelas almas recém-desencarnadas me infundia compaixão e quase terror.

Confiei ao amigo que nos acompanhava, bondoso, a indefinível tortura de que me via objeto e o Assistente esclareceu com sabedoria:

— Em verdade, estamos ainda longe de conhecer todo o poder criador e aglutinante encerrado no pensamento puro e simples, e, em razão disso, tudo devemos fazer por libertar os entes humanos de todas as expressões perturbadoras da vida íntima. Tudo o que nos escravize à ignorância e à miséria, à preguiça e ao egoísmo, à crueldade e ao crime é fortalecimento da treva contra a luz e do inferno contra o Céu.

E talvez porque desejasse ardentemente mais alguma anotação, em torno do transcendente assunto, Silas ajuntou:

— Recorda-se de haver lido alguma memória, alusiva às primeiras experiências de Marconi, nos albores do telégrafo sem fio?

— Sim — respondi —, lembro-me de que o sábio, ainda muito jovem, se consagrou ao estudo das observações de Henrique Hertz, o grande engenheiro alemão que realizou importantes experiências sobre as ondulações elétricas, comprovando as teorias da identidade da transmissão entre a eletricidade, a luz e o calor irradiante, e sei que, certa feita, tomando-lhe o oscilador e conjugando-o com a antena de Popoff e com o receptor de Branly, no jardim da casa paterna, conseguiu transmitir sem fio os sinais do alfabeto Morse. Mas… que tem isso a ver com o pensamento?

O Assistente sorriu e falou:

— A referência é significativa para as nossas considerações. Além dela, volvamos à televisão, uma das maravilhas da atualidade terrestre…

E acrescentou:

— Reporto-me ao assunto para lembrar que na radiofonia e na televisão os elétrons que carreiam as modulações da palavra e os elementos da imagem se deslocam no espaço com velocidade igual à da luz, ou seja, a trezentos mil quilômetros por segundo. Ora, num só local podem funcionar um posto de emissão e outro de recepção, compreendendo-se que, num segundo, as palavras e as imagens podem ser irradiadas e captadas, simultaneamente, depois de atravessarem imensos domínios do espaço, em fração infinitesimal de tempo. Imaginemos agora o pensamento, força viva e atuante, cuja velocidade supera a da luz. Emitido por nós, volta inevitavelmente a nós mesmos, compelindo-nos a viver, de maneira espontânea, em sua onda de formas criadoras, que naturalmente se nos fixam no espírito quando alimentadas pelo combustível de nosso desejo ou de nossa atenção. Daí, a necessidade imperiosa de nos situarmos nos ideais mais nobres e nos propósitos mais puros da vida, porque energias atraem energias da mesma natureza, e, quando estacionários na viciação ou na sombra, as forças mentais que exteriorizamos retornam ao nosso espírito, reanimadas e intensificadas pelos elementos que com elas se harmonizam, engrossando, dessa forma, as grades da prisão em que nos detemos irrefletidamente, convertendo-se-nos a alma num mundo fechado, em que as vozes e os quadros de nossos próprios pensamentos, acrescidos pelas sugestões daqueles que se ajustam ao nosso modo de ser, nos impõem reiteradas alucinações, anulando-nos, de modo temporário, os sentidos sutis.

E, depois de ligeira pausa, concluiu:

— Eis por que, efetuada a supressão do corpo somático, no fenômeno vulgar da morte, a criatura desencarnada, movimentando-se num veículo mais plástico e influenciável, pode permanecer longo tempo sob o cativeiro de suas criações menos construtivas, detendo-se em largas faixas de sofrimento e ilusão com aqueles que lhe vivem os mesmos enganos e pesadelos.

A explicação não podia ser mais clara.

Calamo-nos, Hilário e eu, dominados por igual sentimento de respeito e reflexão.

Silas percebeu-nos a atitude interior e generosamente convidou-nos ao descanso em que, por algumas horas, conseguiríamos repousar e… pensar.




Reportamo-nos a regiões encravadas nos domínios do próprio globo terrestre, submetidas às mesmas leis que lhe regulam o tempo. — (Nota do Autor espiritual.)



André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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