Sexo e destino
Versão para cópiaCapítulo XIII
Recolhido à organização assistencial vinculada aos nossos serviços, nas adjacências do Rio, Nogueira desencarnado refazia-se.
Félix, que não sossegou enquanto não lhe admitiu o reequilíbrio perfeito, no-lo entregou aos cuidados, sem retornar a vê-lo.
Desperto agora, Cláudio nos recebia as manifestações de amizade e apreço, vexado, confundido. Momento a momento, acusava-se, denotando excessivo apego a complexos de culpa.
Empregamos todos os meios justos para dissuadi-lo.
Aproveitássemos os erros por lições, anotando-os nos cadernos do passado, para a consulta no ensejo próprio. Arvores alijam folhas mortas, não obstante lhes sirvam de adubo às raízes. As Leis Divinas preceituam esquecimento do mal a fim de que o bem se nos incorpore à individualidade, gerando automatismos de elevação. Também nós atravessáramos crises semelhantes; contudo, acabáramos descobrindo no serviço o remédio para as enfermidades do sentimento. Somos todos obrigados a prevenir-nos contra a agitação constante de sedimentos dos vícios e transgressões do pretérito, no vaso da alma, sob pena de frustrarmos as possibilidades do presente para melhorar o futuro, conquanto a vida nos recomende jamais esquecer a nossa pouquidade, visto que, consciências endividadas que ainda somos, por muito tempo ainda, aonde formos, estaremos carregando no espírito o bagaço de velhas imperfeições. Cultivasse paciência, que ninguém logra aperfeiçoar-se sem paciência, até mesmo consigo próprio. Contava com amigos no “Almas Irmãs”, de onde havia descido às lides da reencarnação. Andava transitoriamente esquecido, sob o efeito natural das experiências a que se condicionara no plano físico; entretanto, oportunamente recuperaria mais amplos potenciais da memória rejubilando-se com reencontros abençoados. Referimo-nos ao irmão Félix, que mostrava para com ele devotamento particular, se nos fosse facultado descortinar inclinações especiais naquele Espírito aberto a todos os apelos da fraternidade sublime.
O companheiro reconfortava-se, esperançado.
No quarto dia, após o transe, comoveu-nas com um pedido. Reconhecia-se amparado por muitos benfeitores, porque, somente à custa de muitos favores — opinava humilde —, pudera acordar, antes da morte, para as realidades da alma… Envergonhava-se, porém, de procurar-lhes imediatamente o convívio, que aspirava a merecer, no porvir. Se a Divina Providência, por amigos tão dedicados, lhe pudesse conceder novas esmolas, a ele que se categorizava por mendigo de luz, anelava permissão para continuar trabalhando, mesmo desencarnado, no seio da família, sem ausentar-se do Rio. Amava os filhos, considerava-os ainda moços e inexperientes, ambicionava converter-se para eles num servidor. Mas não era só… Duas criaturas deixara, junto das quais se reconhecia devedor, Nemésio e Márcia. Não pretendia largar a oficina terrestre na condição de insolvente. Além de suspirar por se redimir, diante dos credores, sonhava auxiliá-los e amá-los. Não lhe competia devotar-se ao bem dos outros e, sobretudo, à felicidade daqueles dois associados do destino, praticando os ensinamentos espíritas-cristãos que teoricamente havia aprendido?
Decerto, por discrição e respeito, na consideração íntima do passado, não fez referências a Marita, cuja imagem se lhe retratava no espelho da mente…
Acrescentou Nogueira que, se atendido, obedeceria lealmente aos programas de ação que lhe fossem traçados, não cobiçava outra coisa senão instruir-se, melhorar-se, compreender e ser útil…
A petição enternecia-nos; entretanto, não detínhamos competência para decidir.
Autoridades do estabelecimento que nos albergava acolheram o assunto com simpatia e ofereceram medida básica à solução do impasse. Desde que se munisse de aprovação, Nogueira residiria ali mesmo, apesar de se manter em atividade na proteção aos parentes.
Agradecemos, felizes, e quase que na mesma hora Percília partiu, com atribuições de mensageira. Advogaria a causa no “Almas Irmãs”, convicta de que Félix lhe emprestaria prestígio e patrocínio.
Com efeito, no dia imediato, regressou com o requerimento referendado.
Permitia-se a Cláudio o período de dez anos de serviço ao pé dos familiares, antes de se elevar aos círculos imediatos da Espiritualidade para julgamento da existência transcorrida, reservando-se à Casa da Providência o direito de corrigir a concessão, fosse dilatando o tempo, se o interessado demonstrasse aplicação ao cumprimento das promessas que formulava, ou cassando a licença, na hipótese de se revelar indigno dela.
O requerente, satisfeito, exultou. Estimulado pelo apoio que recebia, rogou colaboração para voltar ao Flamengo. Sentia-se fraco, vacilante. Pássaro implume, ansiando despencar-se do ninho… Mesmo assim, queria sair de si mesmo, trabalhar, trabalhar…
Ajustaram-se providências.
Moreira, que se mantinha com funções definidas ao lado de Marina, auxiliá-lo-ia.
Admirei sem palavras o mecanismo de amor da Bondade Divina. Aquele que lhe fora assessor no desequilíbrio, ser-lhe-ia, e muito compreensivelmente, o arrimo nas tarefas do reajuste.
Seis dias sobre o acidente que levara Nogueira à desencarnação. Amanhecia, quando pisamos nas areias do Flamengo, reconduzindo-o ao lar.
Certificamo-nos de que o amigo se reiniciava confiante. De propósito, atravessamos com ele a pista de asfalto, no sítio em que tombara; no entanto, não fez o mínimo apontamento, com relação ao desastre. Apoiando-se em Percília, junto de mim, penetrou em casa, acolhido por Moreira que nos precedera, cauteloso. Demandou o aposento em que se instalara, observando que os filhos conservavam-no intacto. Sentou-se no leito a refletir.
O despertador anunciou as seis horas, quando Marina se ergueu. Isolou-se no banheiro por instantes, preparou-se e, antes de se entender com Dona Justa, sobre o lanche matinal do marido, penetrou no recinto em que nos achávamos e, em pensamento, dirigiu-se a Jesus, rogando-lhe abençoasse o genitor desencarnado, onde estivesse. Enlevados, ouvimo-la, palavra a palavra, no clima dos pensamentos harmônicos em que nos entrelaçávamos, conquanto a jovem senhora exorasse o amparo do Senhor em silêncio.
Levantou-se Cláudio, abeirou-se dela. Ao tocá-la, fremente de júbilo, percebeu que a filha trazia no corpo e na alma a doce presença de Marita nascitura… Deu um passo à retaguarda, parecendo-nos receoso. Temia conspurcar a excelsitude do quadro sublime que o defrontava. Figurou-se-lhe Marina uma planta luminosa, modelada na carne, encerrando uma flor quase a desabrochar.
A ideia de Cláudio relampeou na oração. Suplicava a Deus não lhe permitisse alçar caprichos acima de obrigações… Em seguida, reaproximou-se dela, abraçou-a brandamente e apelou:
— Minha filha!… Minha filha!.. que é feito de Nemésio? Procuremos Nemésio! É preciso ampará-lo!… Ampará-lo!…
A moça, expectante, não assinalou a advertência com os sentidos físicos, mas, sem que pudesse explicar a si mesma a razão disso, rememorou a solicitação paterna de última hora…
Nemésio, sim… — concluiu mentalmente. Ela e o esposo tinham recebido notícias ao telefone, principalmente da parte de Olímpia. O médico da família procurara Gilberto no banco. As informações eram alarmantes; entretanto, hesitavam… Ela, sobretudo, angustiava-se ao imaginar-se no reencontro. Comentava-se, porém, que o sogro jazia enfermo, em estado grave… Rearticulou, na memória, a rogativa de Cláudio, ao partir, e decidiu-se em espírito. Olvidaria o passado e ajudaria o doente no que lhe fosse possível. Inclinaria Gilberto à reconciliação. Não adiariam por mais tempo a visita.
Os compromissos caseiros, no entanto, povoavam-lhe a mente e afastou-se, conservando, todavia, na forma de intenção consolidada, o pedido que Nogueira lhe insuflara.
Ao café, sugeriu ao esposo as primeiras medidas atinentes ao caso. Cláudio que observava, atento, entrou, direto, em serviço. Alimentou as disposições favoráveis do casal. Que não recuassem. Atendessem. Nemésio era também pai. Marina propunha, Gilberto ponderava. Por fim, o marido concordou. Telefonaria do banco, sondando o médico. Se a doença fosse mesmo grave, embora os constrangimentos da companheira, na gravidez avançada, tomariam táxi à noite, para vê-lo.
Deixando Percília, Cláudio e Moreira entregues à atividade, busquei a vivenda dos Torres, no encalço de Nemésio, que eu não mais vira, desde o trágico instante do carro em disparada.
Entrei.
Silêncio vazio nas peças principais. Espantado, procurei-lhe o quarto, o quarto espaçoso em que lhe conhecera a esposa doente. Junto dele, hemiplégico e afásico no leito, apenas Amaro, o fiel amigo espiritual que velara por Dona Beatriz.
Mobilizei compreensão e resistência para não sensibilizar-me em demasia, prejudicando, ao invés de auxiliar.
Perplexo, ouvi do enfermeiro o resumo da tragédia em que se envolvera aquele homem, dantes tão bajulado e tão rico.
Cedendo à paixão que lhe empolgava os sentidos e excitado pelos obsessores que o abandonaram tão logo lhe vira,m o corpo arruinado e inútil, Torres pai se decidira a exterminar Marina e suicidar-se em seguida. Ao praticar o crime, porém, verificou que atropelara Nogueira e não a filha, entrando em desespero e esse desespero lhe cresceu tanto no espírito que o corpo doente não resistira. Sobreviera o derrame. Ele, Amaro, avisado por amigos, fora encontrá-lo semi-paralítico e sem fala, no automóvel, parado longe do local em que se desenrolara o delito. Parecia prestes a desencarnar, mas Félix aparecera de improviso e requisitara o apoio de todos os órgãos espirituais de assistência, situados nas imediações, acumulando fatores de intervenção em favor dele. Orara, suplicando aos Poderes Divinos não lhe permitissem a saída do Plano físico sem aproveitar o benefício da enfermidade no veículo carnal, que se desarranjara sem probabilidades de conserto. O diretor do “Almas Irmãs” advogara para ele as vantagens da dor, que reputava santas, e o processo desencarnatório tinha sido imediatamente sustado. Quem era ele, Amaro, para censurar as decisões do irmão Félix — alegava o amigo, confidencioso —; no entanto, indagava a si mesmo se valia continuar um homem ativo e inteligente, qual Nemésio atado a um corpo desajustado assim… Desde a intercessão de Félix, o velho Torres era aquilo que eu via, um farrapo de gente, largado à cama. A casa fora devassada pelos credores e empregados desonestos haviam fugido carregando copioso fruto de saque. Baixelas, pratarias, cristais, porcelanas, roupas, telas, pequenos tesouros dos ascendentes das famílias Neves e Torres e até mesmo o piano e as joias de Dona Beatriz jaziam perdidos na voragem. Apenas Olímpia, antiga companheira, vinha até ali duas vezes por dia, a fim de prestar ligeira assistência ao enfermo, que, embora perfeitamente lúcido, não conseguia articular palavra, em vista das alterações nos centros nervosos. E isso tudo — rematava o informante, desencantado — há menos de uma semana…
Condoído, ali aguardei a noite.
Vi quando Gilberto e Marina atravessaram o vestíbulo, seguidos de Percília, Moreira e Cláudio, tomados de surpresa dolorosa.
Imaginando-se sozinhos, o jovem bancário e a esposa não conseguiam dominar as exclamações de assombro, até que à frente do leito, cuja solidão o lustre feérico parecia exagerar, se prosternaram em lágrimas. Nemésio reconheceu-os. Debalde intentou soerguer a carcaça dorida. Quis falar, mas não pôde, apesar do supremo esforço despendido.
— Pois é o senhor que encontramos assim, papai? — arfou Gilberto em desconsolo.
Cabeça trêmula, o interpelado apenas engrolava:
— Ah, ah, ah, ah, ah!…
Nós, porém, que lhe registrávamos os pensamentos, notamos, comovidos, que ele, reacomodado ao equilíbrio próprio, implorava aos filhos benevolência, compaixão…
Contemplou a nora pelo véu de pranto e lastimou na linguagem inarticulada do cérebro: “Marina!.. Marina!… sou um infeliz… Perdão, pelo amor de Deus!… Perdão pelas cartas afrontosas, perdão pelo meu crime!… Eu estava louco, no momento em que arrojei o automóvel no corpo de seu pai!.. Diga, diga se ele morreu… Perdão, perdão!…” A boca franzida, no entanto, somente repetia:
— Ah, ah, ah, ah, ah!…
Para os dois circunstantes, a terrível confissão paterna era simplesmente longa série de interjeições sem sentido.
Vimos então que Nogueira avançava realmente para o bem que se comprometera a dignificar. Somente naquela hora vinha a saber quem fora o autor do atentado que lhe impusera a morte… Longe, porém, de pedir-nos orientações ou conselhos, recordou, instintivamente, outra noite, além daquela em que perdera a existência… A noite na pensão de Crescina, cujas sombras lhe haviam acobertado os ultrajes à filha, compelindo-a ao desastre fatal… Viu Marina, ajoelhada, e, obedecendo aos ditames da própria alma, caiu genuflexo, abraçando-se a ela e, qual se ocupasse o íntimo da jovem senhora, atenazada de sofrimento moral, fê-la buscar a destra de Nemésio para beijá-la com a reverência que os filhos devem aos pais.
O enfermo, tocado no coração por semelhante gesto de respeitosa ternura, tartameleava sons ininteligíveis, implorando mentalmente: — “Perdão!… perdão!…”
Cláudio, testemunhando corajosa humildade, levantou-se, de súbito, e, erguendo os olhos para o alto, clamou em pranto:
— Deus de Imensa Bondade, perdão para mim também!…
Naquela mesma noite, uma ambulância atendia à hospitalização de Nemésio que, após alguns dias de tratamento, sempre custodiado pelos filhos, subia, em cadeira de rodas, no prédio do Flamengo, onde passou a habitar, mudo e inerme, sob os desvelos da nora e incessantemente amparado por Nogueira, no aposento que pertencera àquele que perseguira por rival e que se lhe erigia agora por denodado guardião.
Os êxitos morais de Cláudio, comentados com admiração por alguns amigos no “Almas Irmãs”, estabeleceram para o irmão Félix um problema grave, embora sem qualquer importância na feição exterior. Dona Beatriz, ciente de que o genitor de Marina, já desencarnado, obtivera licença para se demorar ao pé dos familiares em missão de auxílio, queria também; pelo menos, rever o esposo e o filho. Cientificara-se, de maneira superficial, quanto aos acontecimentos desagradáveis em que se envolviam os entes queridos. Muito longe, porém, de abranger-lhes toda a extensão, alegava essa circunstância para reforçar o propósito. Peça viva na engrenagem doméstica, não devia alhear-se, argumentava. Se Marina desposara Gilberto, aceitava-a por filha, e se os pais mantinham contendas, que não conhecia em todos os pormenores, nada mais justo que partilhar as dificuldades, oferecendo mediação.
Estabelecida a pretensão, negou-se Félix a atender.
Dona Beatriz recorreu a Neves, mobilizou a afeição de Sara e Priscila e voltou à carga; entretanto, o diretor se conservou irredutível. Neves, porém, que não se curara, de todo, da impulsividade, destacava o caráter aparentemente razoável do pedido, e colocou tantas relações e tantos empenhos no assunto, que o instrutor não encontrou outra alternativa senão aderir. Conquanto preocupado, determinou providências para que se efetuas se a excursão. Instado a prestigiar Dona Beatriz com a sua presença, escusou-se, delicado, conferindo, àquele que lhe fora genitor, ampla liberdade de ação e tempo. Particularmente, todavia, recomendou-me fizesse companhia aos dois viajantes, pai e filha. Que eu cooperasse com Neves na solução de qualquer emergência. Pressentia obstáculos, receava riscos.
Dona Beatriz, entusiasmada na contemplação do Rio, embora soubesse que Nemésio passara a residir com o filho, não apenas ansiava por abraçá-lo, como também suspirava reavistar a antiga moradia. Queria sorver o perfume da felicidade que tivera, exclamava, contente. E o pai, satisfeito, incentivava-lhe todos os programas. Acompanhando a dupla, não me permitia opor embargos.
Demandei o Flamengo, ouvindo a senhora Torres e admirando as reservas de sensibilidade e meiguice que lhe vibravam na alma de escol. Exteriorizava o júbilo de ave recém-liberta. Entretanto, logo após recebidos por Moreira e Cláudio, ao divisar o marido desfigurado na postura dos paralíticos, empalideceu, debruçando-se na cadeira de rodas que o albergava. Enleou-se a ele, que lhe não assinalava as caricias, a crivá-lo de perguntas lastimosas… Por que mudara tanto em dois anos apenas? que lhe acontecera para se relegar a semelhante ruína física? que fizera? por que? por quê?!…
Escutando tão somente o ruído de Marina e Dona Justa, nas atividades rotineiras, experimentava-se Nemésio tocado de fundas reminiscências… Não conseguia explicar a si mesmo a razão das ideias que lhe borbulhavam da cabeça, mas pensava em Beatriz. Reconstituía-lhe a imagem no imo do ser. A esposa!.. Ah! — refletia o doente, em cujo espírito a afasia requintara a vida interior — se os mortos pudessem amparar os vivos, segundo a crença de tantos, certamente que a velha companheira se compadeceria dele, estendendo-lhe as mãos!… Rememorava-lhe a compreensão silenciosa, a dignidade irrepreensível, a bondade, a tolerância!…
Ignorando que respondia, mecanicamente, às inquirições da esposa, amarrotada de angústia, ali colada a ele, revisou todos os acontecimentos posteriores à desencarnação dela, como que a lhe prestar severas contas. Gilberto, Marina, Márcia e Cláudio eram os protagonistas principais daquelas cenas que a memória perfeitamente lúcida lhe traçava nos painéis relampagueantes da aura, exibindo para a companheira e para nós outros, qual num filme pujante, a verdade toda, até o instante em que se precipitara no crime. Se Beatriz estivesse no mundo — concluía —, estaria isento de aflições e tentações. Junto dela, teria recolhido defesa, orientação. Profundas saudades lhe acicatavam a alma… Recompunha na imaginação os sonhos da juventude, o casamento, os projetos de ventura concentrados em Gilberto pequenino… Movimentou dificilmente a mão esquerda para enxugar o pranto que lhe encharcava o rosto, sem saber que a esposa o auxiliava, soluçando…
Neves, apreensivo, tentou soerguer a filha que se estirara no pavimento, à maneira de mãe torturada, incapaz de alijar do peito um filho semimorto. Em vão pronunciou palavras de encorajamento, exortações à paciência, conceitos evangélicos, promessas de futuro melhor… A filha magoada respondeu que amava Nemésio, que preferia ser amarrada num catre, ao lado dele, a separar-se de novo. Agradecia o devotamento de que andara cercada no “Almas Irmãs”; entretanto, pedia vênia para considerar que o esposo sofria. Como descansar, lembrando-lhe os suplícios? Jesus também — ponderava chorosa —, carregara a cruz por amor à Humanidade… Como fugir de suportar diminutas contrariedades na Terra, amenizando o martírio do homem a quem adorava? A doutrina cristã ensinara-lhe que Deus é um pai compassivo e um pai compassivo não aprovaria ingratidão e abandono.
O genitor, que não contava com a imprevista resistência, disse-me à socapa que Torres pai nada fizera para merecer semelhante abnegação e inclinava-se ao estouro, mas sugeri-lhe calma. Censuras agravariam a situação sem proveito.
Interferi.
Salientei para a senhora Torres que o filho se preparava a dar-lhe uma neta, que a conformidade da parte dela, no tocante às provações do marido, ser-nos-ia uma bênção.
Acatando-me a solicitação, ergueu-se, contrafeita, acompanhou-nos até Marina, cuja história real na família passara a conhecer pelas memorizações do enfermo.. Alma generosa, porém, compreendeu as ligações havidas e, fitando Cláudio, que lhe perdoara ao esposo tantas injúrias, beijou-lhe a filha com enternecimento de mãe. Abraçou Dona Justa, com simpatia, e, em seguida, retornou em nossa companhia ao quarto de Nemésio, onde nos compartilhou a oração e o trabalho de socorro magnético. Pareceu reconfortar-se, sobremodo, quando viu Gilberto em casa para o jantar, encantando-se ao notar que o filho buscara o doente para a refeição, após afagar-lhe a testa, acompanhando o gesto afetuoso com expressões de bom ânimo e carinho; entretanto, quando Neves falou em regressar, a devotada mulher enrodilhou-se ao marido e, desligada por nós, quase à força, revelava sinais de alienação começante.
Beatriz desceu do prédio abatida, muda. No intuito louvável de reaquecer-lhe o coração, Neves, que conhecia somente por alto a bancarrota comercial do genro, propôs se lhe realizasse naquela hora o desejo de uma visita, ainda que rápida, à antiga moradia. A filha, agora apática, não contestou. Obedeceu, automaticamente.
A noite caíra de todo, quando abordamos a vivenda que se reduzira a um casarão às escuras. A Lua plena assemelhava-se a uma lâmpada enorme que estivesse conscientemente recolhida a distância, envergonhada de apresentar à dona do palacete uma visão assim funesta.
O genitor, arrependido da instigação infeliz, diligenciou recuar, mas não pôde… Dolorosamente magnetizada pelas próprias recordações, Beatriz avançou apressada, à procura dos tesouros domésticos; todavia, não encontrou, nos lúgubres recintos, senão poeira e sombra do oásis familiar que construíra.. Além de tudo, o elegante domicílio, condenado a leilão, transformara-se em valhacouto de malfeitores desencarnados, aos quais se reconhecia absolutamente sem forças para expulsar. A desesperada criatura correu de peça em peça, de susto em susto, de grito em grito, até que se rojou de borco, nos tacos da espaçosa câmara que lhe merecia a preferência, pronunciando frases desconexas…
Beatriz enlouquecera.
Postei-me de vigia, asserenando-a, enquanto Neves, desolado, recorria aos serviços de amparo urgente, ligados ao “Almas Irmãs”, em local não distante.
O auxílio não tardou.
No dia seguinte, enfermeiras especializadas colaboraram conosco, por determinação de Félix; mas, somente depois de quatro dias sobre o incidente, logramos reentrar no instituto, reconduzindo-a, dementada.
Duas semanas de trabalho vigoroso e atenção constante se esvaíram, infrutiferamente, no lar de Félix, até que um doe orientadores da equipe médica recomendou a internação da enferma em hospital adequado, a fim de que se lhe aplicasse a sonoterapia, com algum exercício de narco-análise, para que se lhe exumassem as recordações possíveis da existência anterior, com a cautela devida, de modo a que se não precipitasse em mergulhos de memória, alusivos a períodos precedentes.
O parecer foi acatado.
Félix convidou-nos, a Neves e a mim, comparecer, junto dele e do irmão Régis, no gabinete em que se efetuaria a pesquisa.
No momento indicado, ao pé de Beatriz, que dormia num leito, cujo travesseiro se achava munido de recursos eletromagnéticos especiais, permanecíamos, Félix, o irmão Régis, o distinguido psiquiatra que aventara a medida, acompanhado de dois assistentes, o chefe de arquivo do “Almas Irmãs”, Neves e eu, ao todo, oito companheiros observando a paciente, sendo forçoso explicar que as autoridades ali reunidas dispunham de aperfeiçoado sistema de comunicação, para consulta rápida às repartições a que se mantinham vinculadas.
Félix circunspecto, Neves sob nervosismo, os médicos diligentes e nós outros em expectação…
Iniciada a experiência, Beatriz, denotando voz e maneiras diversas das que lhe eram habituais, revelou-se num ponto indeterminado de existência anterior, reclamando contra uma certa Brites Castanheira, mulher à qual imputava os infortúnios que lhe devastavam a alma… Pelas considerações amargas, via-se que o analista esbarrara com expressivo foco de exacerbação, facultando-lhe fácil penetração nos domínios recônditos da mente. Prevalecendo-se disso, o médico indagou onde conhecera Brites, em que época e em que circunstâncias. Beatriz, sempre em sono provocado, replicou que para isso precisaria lembrar a juventude e, devidamente estimulada, elucidou que nascera no Rio, em 1792, e se chamava Leonor da Fonseca Teles, nome que lhe adviera do homem com quem se consorciara em segundas núpcias. Informou haver nascido na rua de Matacavalos, numa casa singela em que vivera descuidosa meninice. Em 1810, porém, modificara-se-lhe o destino. Desposara um rapaz português, de nome Domingos de Aguiar e Silva, que se demorava no Brasil, em serviço do Duque de Cadaval, na Corte de D. João 6. Dessa união tivera um filhinho, que recebera o nome de Álvaro, em 1812. O marido, no entanto, falecera prematuramente no Caminho do Boqueirão da Glória, quando se responsabilizava pela condução de alguns potros bravos, adquiridos para as cocheiras reais. Referiu-se com gratidão às manifestações de estima com que se vira brindada por personalidades influentes da época e às promessas articuladas em favor do pequenino que ficara órfão. Viúva aos vinte e dois de idade, foi requestada por rico ourives, que montara estabelecimento na rua Direita, Justiniano da Fonseca Teles, moço mais velho que ela apenas três anos, cuja proposta de casamento aceitou. Alegrara-se por verificar enteado e padrasto em abençoada camaradagem.
Álvaro cresceu afetuoso e inteligente e, como não possuía rebentos do segundo matrimônio, a criança se levantara entre ela e o esposo por laço de luz e amor. Ainda assim, aos quinze de idade, em 1827, o menino embarcara no rumo da Europa, sob o patrocínio de fidalgos amigos do pai, tendo realizado estudos brilhantes em Lisboa e Paris…
A magnetizada narrava sucessos da época, exteriorizando impressões, acerca de pessoas, coisas, realizações e ocorrências, qual se trouxesse a imaginação recheada de crônicas vivas. Confidenciou que o filho regressara em 1834. Para ela e Justiniano, a casa transformara-se, de novo, num mar de rosas, até que certa noite…
Diante das reticências, o irmão Félix, visivelmente comovido, solicitou que o serviço de análise se detivesse nas possíveis recordações da noite mencionada.
O orientador da pesquisa atendeu.
Beatriz franziu a testa, patenteando o sofrimento de quem esbarrava com uma ferida no próprio corpo, sem meios de extirpá-la, e respondeu, descontente:
— Devo explicar que Brites era casada com Teodoro Castanheira, rico negociante que morava na rua da Valinha. Ambos moços, com uma filha única, Virgínia, pequenota de onze anos… Embora eu tivesse ultrapassado os quarenta, junto de Brites que ainda não alcançara os trinta, queríamo-nos intensamente, enquanto que nossos maridos nos copiavam a afeição, com a mesma diferença de idade… Eles unidos pelos negócios e nós pelos sonhos caseiros…
E continuou:
— Na noite que comecei a mencionar, meu esposo e eu apresentávamos Álvaro à sociedade, num sarau do Comendador João Batista Moreira, na Pedreira da Glória… Senti horríveis pressentimentos quando Álvaro e Brites se cumprimentaram, parando extáticos, de olhos um no outro, para ouvir as sonatinas… Debalde inventei motivos para retirar-nos cedo… Voltamos tarde com o rapaz, devaneando. Supunha impossível que ela fosse casada e mãe de uma filha… Parecera-lhe simples menina de salão na graça de que se enfeitava. Fiz quanto pude para evitar o desastre, mas o destino… Ambos tomados de paixão recíproca, iniciaram-se em passeios… Voltas pelo Mangrulho e brincadeiras na praia de Botafogo, excursões de caleça para a Fazenda do Capão, passeios para lá da Muda da Tijuca… Isso tudo acontecia pacificamente, até que Teodoro os descobriu juntos num quarto do Hotel Pharoux. Escandalizado, o marido desinteressou-se da mulher, embora não se retirasse do lar por amor à filha… Mas, mesmo nessa posição, cortejou a menina Mariana de Castro, a que chamávamos Naninha, jovem de bons costumes, que residia com os pais na rua do Cano… Brites, longe de se magoar, até mesmo facilitou quanto pôde a ligação, para ver-se livre… Naninha acabou cedendo às escondidas, mas enjeitou dois filhos do comerciante nas portas da Misericórdia, como é do conhecimento público…
A senhora Torres entrou em crise de lágrimas e seguiu contando que o filho, depois de quatro anos, se enfadou de Brites e só então comunicou à família que deixara uma prometida em Lisboa… Suspirava por voltar, mas receava que a amante se despenhasse no suicídio. Depois de muitas negaças em vão para retirar-se, arquitetou um plano maquiavélico, de que resultara para ela, mãe amorosa, a infelicidade irremediável. Percebendo, a pouco e pouco, a fraqueza de Brites pelas joias, insinuou ao padrasto que ela ansiava possuir-lhe a dedicação, fantasiando recados e armando embustes. Justiniano, vencido pelas sugestões do enteado, pôs-se em ação, conseguindo impressionar Brites com presentes raros, até que no primeiro encontro, forjado pelo próprio Álvaro, interferiu ele na cena, assumindo o papel de companheiro ultrajado, afastando-se, enfim, para Portugal, deixando várias tragédias em andamento.
O golpe infundira na senhora Castanheira uma nova personalidade. Convertera-se em pavorosa mulher, calculista, cruel. Nunca mais se lhe vira um gesto de piedade. Metamorfoseara Justiniano num homem de sexualidade pervertida, extorquindo-lhe dinheiro e maia dinheiro, até ao ponto de entregar-lhe a própria filha, Virgínia, que atravessara os quinze de idade, vendendo-a ao amante, homem já velho, para senhorear terras e haveres. Ainda assim, não contente com os próprios desvarios, desencaminhava moças de nobre formação, atirando-as no prostíbulo, estimulava infidelidades, vícios, crimes, abortos…
Virgínia, com quem Justiniano passara a viver, em definitivo, abandonando a esposa, transfigurara-se em pomo de discórdia entre o senhor de Fonseca Teles e Teodoro Castanheira, que se atormentaram mutuamente em onze anos de conflitos inúteis, até que o marido de Dona Brites, então vivendo maritalmente com Naninha de Castro, desde muito, aparecera morto a punhaladas, na rua da Cadeia, atribuindo-se o homicídio a escravos foragidos. Naninha, porém, não ignorava que Justiniano fora o mandante e tramou desforço. Uniu-se a outro homem, em cujo espírito insuflou despeito e ódio contra o ourives da rua Direita, e os dois, então morando num recanto da praia de Botafogo, planejaram assassiná-lo num suposto acidente. Justiniano, já idoso e enfermo, adquirira o hábito da visita domingueira à Bica da Rainha, no Cosme Velho. Quando regressava de uma dessas jornadas, à noitinha, guiando o carrocim em que se fazia conduzir, Naninha e o companheiro, ocultos na sombra, crivaram o cavalo de pedras revestidas de farpas, depois de escolherem local que favorecesse o desastre… O animal desembestado arrojou-se ladeira abaixo, rebentando freios e arremessando o velho do cimo de um barranco sobre um monte de lajes que se empilhavam em baixo, onde Justiniano encontrara a morte, quase que instantânea.
E Dona Beatriz rematou, lacrimosa:
— Ah! meu Deus, tudo por na.da, porque Álvaro, de retorno a Portugal, achou a prometida casada com outro, por imposição dos pais, regressando, mais tarde, ao Brasil, onde acabou na condição de professor solteirão… Ah! meu filho, meu filho!… Por que te fizeste o autor de tantas calamidades?!…
Nesse tópico das revelações, o irmão Félix solicitou dos cientistas um intervalo para explicações, antes de se retirar.
A doente foi restituída ao sono e o instrutor pediu ao chefe do Arquivo a certidão da saída de Beatriz, já que se ausentara dali mesmo, quase cinquenta anos antes, para a reencarnação no Rio. O interpelado, atento ao caso em exame, trouxera consigo a ficha de Dona Beatriz Neves Torres.
Sim, precedendo-lhe o nome atual, aparecia o de Leonor da Fonseca Teles, que desencarnara no Rio, estivera, por algum tempo, em regiões inferiores, morara por vinte e oito anos em colônia espiritual de reeducação não distante, e passara apenas dois meses no “Almas Irmãs”, em 1906, por solicitação do próprio irmão Félix, que lhe patrocinara o renascimento no lar de Pedro Neves, ali presente.
Félix, porém, rogou as informações possíveis, acerca de personalidades referidas por Beatriz, que estivessem vinculadas ao Instituto.
Aparelhos funcionaram e o Arquivo respondeu com presteza. Justiniano da Fonseca Teles, Teodoro Castanheira, Virginia Castanheira e Naninha de Castro estavam reencarnados no Rio. Todos com certidão de saída do “Almas Irmãs”. Justiniano era Nemésio Torres, negociante, com débitos agravados; Teodoro Castanheira apresentava-se com o nome de Cláudio Nogueira, já desencarnado, mas ainda em serviço na Terra, com melhoras sensíveis; Virgínia Castanheira respondia agora por Marina Nogueira Torres, com índices promissores de reforma íntima; Naninha de Castro fora Marita Nogueira, que estivera recentemente desencarnada num dos parques de repouso da organização, e que se achava em processo de novo renascimento no Plano físico, por pedido expresso do próprio diretor do Instituto, enquanto que Brites Castanheira envergava na Terra o nome de Márcia Nogueira, cuja ficha era desoladora. O registro dessa mulher somava longa série de abortos e deserções do dever, além de vários compromissos indiretos em lares destruídos e existências sacrificadas. Anotações das piores nas piores anotações da instituição.
Um dos médicos presentes, talvez empolgado com o depoimento de Beatriz, indagou por notícias de Álvaro. O Arquivo elucidou que Álvaro de Aguiar e Silva não possuía atestado de saída para a reencarnação pelo “Almas Irmãs”. Achava-se apenas cadastrado no departamento de queixas. Leonor, que lhe fora mãe carnal, Justiniano, o padrasto, e a própria Brites Castanheira, antes do regresso a novas lides terrenas, haviam inscrito severas acusações contra ele, embora os dois últimos tivessem estado, apenas de modo ligeiro, no Instituto, ao saírem de colônia penal.
O irmão Félix perguntou se constava dos apontamentos de Márcia algum gesto nobre, por onde se ensaiasse eficiente auxílio a ela. Constava, sim, aclarou a repartição competente. Um dia, empenhara-se, com os melhores impulsos maternais, a garantir casamento digno à filha enferma. (Vide dois capítulos atrás.)
O instrutor, então, conjugando dignidade e modéstia, levantou-se, e, arrasando-nos com a valorosa humildade de que dava testemunho, participou-nos que Álvaro de Aguiar e Silva e ele eram a mesma pessoa, o mesmo Espírito, que ali se erguia diante de Deus e diante de nós, num julgamento em que a consciência lhe exigia implorar, voluntariamente, a reencarnação, a fim de se colocar ao encontro de Brites, então na personalidade da viúva Nogueira… Esforçar-se-ia na regeneração de si mesmo e dar-lhe-ia a existência, já que se reconhecia o verdugo, categorizando-a por vítima.
Um raio não nos fulminaria com tanta força.
Os médicos jaziam cabisbaixos, o irmão Régis tinha lágrimas, Neves empalidecera e eu mal conseguia respirar…
Corajoso, Félix continuou elucidando que a Misericórdia Divina, à medida que o Espírito se esclarece, entrega ao tribunal da consciência o dever de se corrigir e de se harmonizar com as leis do Eterno Equilíbrio, sem necessidade do apelo a disposições compulsórias, e que, em razão disso, daquela hora em diante tornaria pública a decisão de se recolher aos trabalhos preparatórios do renascimento na arena física.
Confessou que a delinquência sexual gerara para ele responsabilidades semelhantes às de um malfeitor que dilapidasse um edifício ou uma cidade, através de explosões em cadeia. Lesando os sentimentos de Brites Castanheira, mulher respeitável até à ocasião em que lhe transtornara o coração e o cérebro, identificava-se, diante dos princípios de causa e efeito, culpado, até certo ponto, por todos os delitos de natureza emotiva por ela cometidos, de vez que após abandoná-la, impelindo-a deliberadamente à deslealdade e à aventura, podia compará-la a uma bomba, por ele preparada na direção de quantos a pobre criatura prejudicara, como querendo vingar no próximo o duro revés que lhe infligira.
Rogava-nos, ele, a quem devíamos tanta felicidade, apoio fraterno para que se lhe conseguisse um lugar de filho no lar de Gilberto, assim que Marina restaurasse o claustro materno, após o renascimento de Marita. Idealizara encontrar-se com Márcia, na ternura de um neto… Ser-lhe-ia o companheiro nos tempos áridos da velhice corpórea, recolher-lhe-ia o amor puro, sofreriam juntos, dar-lhe-ia o coração. Não lhe competia a indiferença, persuadido qual se achava de que a Infinita Bondade de Deus poderia conceder à viúva de Cláudio um valoroso resto de tempo na estância física… Se o Senhor lhe facultasse o favor que impetrava, que o auxiliássemos a ser fiel nos compromissos, desde o raciocínio infantil; que o amparássemos nos dias de tentações e fraquezas, que lhe perdoássemos as rebeldias e as faltas, e que, por amor à confiança que ali nos congregava, não lhe patrocinássemos, em tempo algum, qualquer mergulho em facilidades nocivas, a titulo de amizade…
Austero e doce, dirigiu-se particularmente ao irmão Régis, inteirando-o de que ambas as irmãs, Priscila e Sara, se achavam em preparativos para o retorno à Terra, que partiriam antes dele, que contava com a possibilidade de se retirar da direção do Instituto, dentro de aproximadamente seis meses, a fim de aprontar-se, e que não anelava outra coisa que não fosse a experiência e a felicidade do companheiro à frente da organização.
Nenhum de nós, contudo, dispunha de energias para largar o silêncio. Os médicos requisitaram substitutos que assegurassem o descanso de Beatriz; Régis, mudo, afastou-se dando o braço ao chefe do Arquivo; Neves abeirou-se da filha inerte, dando a ideia, de quem ansiava esconder-se para meditar na lição. Vi-me só diante do instrutor. Alçando para ele os olhos, como na primeira vez que o fitara, na residência de Nemésio, procurei recompor-me, ao fixar-lhe o rosto imperturbável. Era o mesmo homem que eu não saberia dizer se amava como sendo meu pai ou meu irmão. Ele me percebeu o estado de alma e abraçou-me. Através daquele olhar firme e percuciente, compreendi que não me desejava sensibilizado, e tentei reequilibrar-me. Apesar disso, incapaz de controle total, pus a cabeça, que a emoção desgovernava, naquele ombro que me habituara a venerar, mas, antes que eu chorasse, senti-lhe a destra a me afagar, de leve, os cabelos, ao mesmo tempo que me perguntava pela aula de fluidoterapia, de que não me seria lícito ausentar.
Saímos juntos.
Lá fora, ao vê-lo caminhar ereto e calmo, tive a impressão de que o Sol rutilando nos céus era uma advertência da Sabedoria Divina a que sustentássemos lealdade na marcha constante para a Luz.
(Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.)
[A forte emoção sofrida por Dona Beatriz no contato com as lembranças de Nemésio, rompeu-lhe o equilíbrio emotivo e desencadeou o processo alienatório concluído ao visitar a casa que lhe pertenceu. Observar porém, que tal desequilíbrio tem suas raízes na zona traumática subconsciente, reveladas pela narco-análise a que foi submetida.]
ANEXO
ANÁLISE DA RELAÇÃO EXISTENTE ENTRE A VIDA DOS PERSONAGENS DESSA HISTÓRIA COM A VIDA DOS MESMOS PERSONAGENS EM EXISTÊNCIA ANTERIOR
I — Beatriz, outrora Leonor da Fonseca Teles casada em segundas núpcias com Justiniano da Fonseca Teles na existência precedente, volta a associar-se ao mesmo segundo marido daquela existência, com o nome atual de Nemésio Torres.
II — Nemésio, outrora Justiniano, comprometera-se na existência precedente com Brites Castanheira e depois com sua filha Virginia Castanheira. Novamente associado a Leonor na pessoa de D. Beatriz é fortemente atraído a Marina, filha de Nemésio e Márcia, com a qual se compromete, tanto quanto com Márcia, a ex-Brites Castanheira.
III — Márcia, outrora Brites Castanheira, por questões econômicas relacionara-se naquela existência com Justiniano, chegando a entregar-lhe a própria filha. Na atual existência, é igualmente atraída a Justiniano na pessoa de Nemésio Torres, tendo grande interesse pelas vantagens financeiras do parceiro de aventuras. Márcia, outrora Brites, continua seus desvarios sexuais iniciados ao sentir-se abandonada por Álvaro (VII), desvarios estes, novamente retomados, na presente existência, quando, associada a Cláudio viu-se por este desrespeitada. (Vide caso com Aracélia narrado por Márcia no da 1ª Parte) Márcia, que outrora incentivara Justiniano a perversão, chegando mesmo a entregar-lhe a filha, encontra-o hoje, como sedutor de Marina, a mesma Virgínia de então.
IV — Marina, a Virginia Castanheira de outrora, convivera com Justiniano estando aquele já idoso, atualmente volta a manter relação com Justiniano, agora Nemésio Torres, homem também idoso. Marina, como Virginia, fora a causa da discórdia entre Justiniano, seu amante, com Teodoro, seu pai de outrora. Novamente Virginia como Marina, torna-se o motivo principal da antipatia entre Nemésio e Cláudio. Justiniano outrora, por Virginia, assassinou Teodoro. Atualmente Nemésio por Marina comete o mesmo crime contra Cláudio, embora seu desejo tenha sido o de eliminar Marina e não Cláudio.
V — Cláudio, outrora Teodoro Castanheira ao ser abandonado por Brites, sua esposa, voltou-se para Naninha de Castro com quem passou a manter relações. Atualmente Cláudio, outra vez casado com Brites na pessoa de Márcia, novamente sente-se for temente atraído por Marita, sua filha agora, ex-amante de então.
VI — Marita, outrora Naninha de Castro, enjeitara dois filhos seus nas portas da Casa da Misericórdia no Rio, frutos de seu relacionamento com Teodoro Castanheira. Marita experimenta a prova da orfandade, considerando-se enjeitada pelo destino (vide seu “” com a cachorrinha Joia).
VII — Félix, outrora Álvaro Aguiar e Silva, o causador indireto das tragédias desencadeadas por Brites, atualmente regenerado atingindo grande iluminação espiritual, transforma-se em tutor do colégio de Espíritos envolvidos no mesmo drama vivencial.
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João 11:35
Jesus chorou.
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