E a vida continua...
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Fantini percebeu que a interlocutora havia sido sulcada mentalmente pelo olhar que lhe endereçara e dispôs-se a tranquilizá-la:
— Continuemos, Dona Evelina. Minha presença não lhe fará mal. Observe-me, não direi com a sua gentileza, mas sim com o seu discernimento. Sou um velho enfermo que pode ser seu pai e acredite que a vejo como filha…
A voz dele esmoreceu, de algum modo, entretanto cobrou ânimo e terminou:
— A filha que estimaria ter, em lugar da que possuo.
Evelina adivinhou o sofrimento moral que as palavras dele destilavam e reajustou a posição emotiva, sentenciando:
— O senhor não se alegraria com uma filha doente qual estou. Mas… voltemos ao meu caso, o caso da confissão.
— Não me conte tristezas…
— Certo. Já não dispomos de muito tempo.
E continuou com um sorriso de mofa:
— Conversando com tanta franqueza, num lugar que talvez seja a antecâmara da morte para um de nós dois, desejo dizer-lhe que só um fato me perturba. Tenho as desilusões comuns a qualquer pessoa. Meu pai morreu, quando eu mal completara dois anos; minha mãe, então viúva, deu-me um padrasto, algum tempo depois; ainda na infância, fui internada num colégio de religiosas amigas e, depois disso tudo, casei-me para ter um marido diferente daquele que eu sonhava… No meio do romance, uma tragédia… Um homem, um rapaz digno, aniquilou-se por minha causa, seis meses antes do meu casamento. Precedendo o ato que lhe impôs a morte, tentou o suicídio ao ver-se posto à margem. Compadeci-me. Busquei reaproximar-me, ao menos para consolá-lo, e, quando meu sentimento balançava entre o pobre moço e o homem que desposei, ei-lo que se despede da vida com um tiro no coração… Desde aí, qualquer felicidade para mim é uma luz misturada de sombra. Embora o imenso amor que consagro a meu marido, nem mesmo a condição de mãe consegui. Vivo doente, frustrada, abatida…
— Ora, ora! — aventou Ernesto, diligenciando encontrar uma escapatória otimista — não se julgue culpada. Não fosse supostamente pela senhora e o moço agiria de igual modo por outro móvel. O impulso suicida, tanto quanto o impulso criminoso…
A voz dele empalideceu de novo, qual se o íntimo recusasse certas reminiscências que as palavras em curso lhe suscitavam à memória; contudo, dando a ideia de quem agia fortemente contra si mesmo, prosseguiu:
— São incógnitas da alma. Talvez sejam ápices de doenças psíquicas, demoradamente mantidas no espírito. O suicídio e o crime são de temer em qualquer de nós, porque são atos de delírio, que fundos processos de corrosão mental determinam em qualquer um.
— O senhor procura apaziguar-me com a sua nobreza de coração — exclamou Evelina, cismativa —, decerto não conheceu, até hoje, um problema assim agudo, a conturbar-lhe a consciência.
— Eu? eu? — gaguejou Fantini, desconcertado —, não me faça voltar ao passado, pelo amor de Deus!… Já cometi muitos erros, sofri muitos enganos…
E, no objetivo de contornar a questão sem escalpelá-la, Ernesto sorriu à força, com a maleabilidade das pessoas maduras, que sabem usar várias máscaras fisionômicas, para determinados efeitos psicológicos, e aditou:
— Não conseguiu, porventura, esquecer o moço suicida, com apoio no confessionário? O seu diretor espiritual não lhe sossegou o coração sensível e afetuoso?
— Repito que sempre encontrei na confissão de meus erros menores uma espécie de vacina moral contra erros maiores; entretanto, no caso em apreço, não obtive a paz que desejava. Admito que se não houvesse hesitado, tanto tempo, entre dois homens, teria evitado o desastre. Basta me lembre de Túlio, o infeliz, para que o quadro da morte dele se me reavive na lembrança e, com a lembrança, surja, de imediato, o complexo de culpa…
— Não se agaste. A senhora está muito jovem. Como acontece à mão que, a pouco e pouco, se caleja no trabalho do campo, a sensibilidade também se enrijece com o sofrimento na vida. Certamente se escaparmos, com êxito, no salto que pretendemos dar para a saúde, ainda veremos muitos suicídios, muitas decepções, muitas calamidades…
A senhora Serpa refletiu alguns momentos e, dando a impressão de quem se propunha ganhar ensejo para balsamizar feridas íntimas, indagou com intenção:
— O senhor, que vem estudando as ciências da alma, acredita piamente que reencontraremos as pessoas queridas, depois da morte?
Fantini estampou um gesto de complacência e divagou:
— Não sei porque, mas, à frente de sua inquirição, veio-me à cabeça aquele pensamento do velho Shakespeare: “Os infelizes não possuem outro medicamento que não seja a esperança.” Tenho boas razões para crer que nos reveremos uns aos outros, quando não mais estivermos neste mundo; todavia, compreendo que a precariedade do meu estado orgânico é o agente fixador de semelhante convicção. A senhora já notou que as ideias e as palavras são filhas das circunstâncias? Imagine se nos víssemos hoje em plenitude da força física, robustos e bem apessoados, num encontro social, num baile por exemplo… Qualquer conceito, em torno dos assuntos que nos aproximam agora um do outro, seria imediatamente banido de nossas cogitações.
— É verdade.
— A moléstia aflitiva nos dá direito de entretecer novos recursos e novas interpretações, ao redor da vida e da morte, e, na esfera das novas conclusões que temos à frente, admito que a existência não acaba no túmulo. Estamos intimados a recordar aquela antiga ilação das novelas de amor, “o romance termina, mas a vida continua…” O envoltório de carne tombará consumido; todavia, o Espírito seguirá adiante, sempre adiante…
— O senhor costuma pensar em alguém que estimaria achar na outra vida?
Ele mostrou enigmático sorriso e zombeteou:
— Penso em alguém que estimaria não achar.
— Não consigo entender o trocadilho. Apesar disso, reconforta-me anotar a certeza com que me fala, acerca do futuro.
— A senhora não pode e nem deve perder a confiança no porvir. Lembre-se de que é, sobretudo, cristã, discípula de um Mestre que ressurgiu da campa, ao terceiro dia, depois da morte.
A senhora Serpa não sorriu. O olhar divagou, além, nas nuvens róseas que refletiam o Sol já distante, reconhecendo-se talvez sacudida nas forças profundas de sua fé por aquela inesperada observação.
Findo o longo intervalo, voltou a fitar o interlocutor e preparou a despedida:
— Bem, senhor Fantini, se houver outra vida, além desta, e se for a vontade de Deus que venhamos a sofrer, em breve, a grande mudança, creio que nos veremos de novo e seremos lá bons amigos…
— Como não? se conseguir adivinhar o fim de meu corpo, conservarei firme o pensamento positivo do nosso reencontro.
— Também eu.
— Quando volta a São Paulo?
— Amanhã pela manhã.
— Tem ocasião marcada para o trabalho operatório?
— Meu marido decidirá isso com o médico; no entanto, creio que, na semana vindoura, enfrentarei o problema. E o senhor?
— Não estou certo. Questão de mais alguns poucos dias. Não desejo retardar a intervenção. Posso, acaso, saber o nome do seu hospital?
Evelina meditou, meditou… E concluiu:
— Senhor Fantini, somos ambos portadores da mesma doença, insidiosa e rara. Não será isso o bastante para aproximar-nos um do outro? Esperemos o futuro sem aflição. Se escaparmos do atoleiro, estou convencida de que Deus nos favorecerá com um novo encontro aqui na Terra mesmo… Se a morte vier, a nossa amizade, em outro mundo, ficará também subordinada aos desígnios da Providência.
Ernesto achou graça e ambos regressaram ao hotel, passo a passo, em comovido silêncio.
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