E a vida continua...
Versão para cópiaInformações de Alzira
— Conversemos — convidou a nova amiga.
Receosa, ante os serviços de vigilância, manifestava a intenção de despistar. Dispunha-se a todo custo demonstrar naturalidade, temendo que alguém pudesse haver assinalado o choque da companheira.
Fantini compreendeu e esmerou-se a coadjuvá-la.
Pretendendo ignorar a lividez com que a senhora Serpa os ouvia, fez as apresentações com aparente serenidade.
— Sou Alzira Campos — identificou-se a matrona, recém-chegada ao grupo —, e moro em São Paulo.
Deu o endereço, reportou-se à família, caracterizou o bairro em que residia e adiantou:
— Desde que caí em casa, trouxeram-me desacordada para este hospital e, pelas contas que faço, há quase dois meses espero alta.
Estabeleceu-se o diálogo entre ela e Ernesto, enquanto Evelina se reasserenava, lentamente.
— A senhora já se sente restabelecida?
— Completamente.
— Já travou relações com alguma autoridade que lhe possa orientar com indicações precisas, quanto ao futuro?
— Sim. A irmã Letícia, que me assistiu, de início, nos banhos medicinais, avisou-me anteontem que não está longe o dia em que me será possível decidir, relativamente a permanecer aqui ou não…
— Que terá ela desejado dizer com esse “permanecer aqui ou não”?
— Realmente, sabendo-se quanto anseio voltar a casa, muito me encabulei ao receber-lhe esse apontamento.
— Nada mais indagou?
— Sim. Roguei mais claras instruções, pedi minudências. Ela, contudo, apenas me disse, gentil: “você compreenderá melhor, mais tarde”.
— Dona Alzira — sussurrou Ernesto, com firmeza —, a senhora não acredita que estamos numa organização de saúde mental, num asilo de loucos?
A matrona relanceou o olhar em derredor, à feição de doente amedrontada com a vigilância de guardas severos, e opinou:
— Se vamos examinar assuntos graves, não nos convém isolar a companheira. Nossa amiga Evelina pode acelerar o próprio refazimento. Peçamos para ela um tônico adequado.
Conjugando ação à palavra, premiu diminuto botão que se incrustava à mesa e surgiu um rapaz de serviço, diligenciando saber em que lhes poderia ser útil.
Alzira encomendou refresco para três.
— Qual o sabor?
— Maçã.
Num átimo, o portador trazia três taças com róseo líquido aromatizado em safirina bandeja.
— Este, a meu ver, é o melhor refrigerante que encontrei aqui, até agora, porque tem pretensões a sedativo — avisou a dama quando se viram, de novo, a sós.
Evelina sorveu um gole, avidamente, com a impressão de haver bebido um néctar, mais vaporoso que líquido.
O inesperado reconstituinte revigorava-lhe as forças, ao mesmo tempo em que lhe reacomodava os pensamentos.
— Estou melhor — notificou de súbito —, graças a Deus!…
Alzira sorriu e confirmou a disposição de palestrar, dando aos amigos todos os esclarecimentos que se lhe fizessem possíveis.
Fantini segredou:
— Voltando ao assunto, não considera a senhora que nos achamos sob assistência especializada, do ponto de vista da mente?
— A princípio — aclarou Alzira —, também pensei assim. Notem que nos sentimos aqui de pensamento mais leve e cabeça sempre mais clara por dentro. As ideias fluem com tanta ligeireza e espontaneidade que parecem tomar corpo, junto de nós. Concordo em que nos encontramos num tipo de vida espiritual diferente, muito diferente daquela em que vivíamos, até a nossa vinda para cá. Apesar disso, porém, não creio estejamos nós num manicômio. Certamente já sabem que estamos rodeados por vida citadina muito intensa. Residências, escolas, instituições, templos, indústrias, veículos, entretenimentos públicos…
— Quê?. — disseram Evelina e Ernesto a um só tempo.
— É como lhes digo. Isto aqui é uma cidade relativamente grande. Nada menos de cem mil habitantes e, ao que dizem, com administração das melhores.
— A senhora já conseguiu alguma experiência lá fora? já se afastou alguma vez destes muros? — interrogou Ernesto, a desfazer-se em curiosidade.
— Sim, na semana finda, obtive permissão para visitar uma família que não conhecia, acompanhando duas amigas. Até agora, essa foi a única vez em que me ausentei do hospital. E posso afirmar que a excursão foi realmente deliciosa, conquanto o pasmo de que me vi tomada, ao fim do passeio…
— Que viu e a quem viu? — sondou Ernesto.
— Não se aflijam. Vocês conhecerão tudo a seu tempo. A cidade é linda. Uma espécie de vale de edifícios, como que talhados em jade, cristal e lápis-lazúli. Arquitetura original, praças encantadoras recamadas de jardins. Creiam vocês que caminhei, fascinada, de rua em rua. O irmão Nicomedes, pois assim se chama o dono da casa, acolheu-nos com muita gentileza. Apresentou-me a filha Corina, uma bela jovem, com quem para logo simpatizei. Íntima de uma das amigas que eu seguia e com a qual entraria em combinação sobre assuntos de serviço, salientou a alegria festiva do lar, falando-nos de esperados júbilos domésticos. Mostrou-nos os lustres novos, as telas e os vasos soberbos… Tudo seguia num crescendo de doces surpresas para mim, quando surgiu a bomba… Achávamo-nos no terraço, admirando um canteiro de jasmins suspensos, quando ouvimos o “Sonho de Amor”, de Liszt, tocado ao piano. Corina informou-nos de que o pai dedilhava o instrumento com grande mestria. Enterneci-me de tal modo que manifestei o desejo de ouvi-lo, mais de perto. A nossa anfitriã conduziu-nos, de imediato, à sala de música. E foi um deslumbramento. O irmão Nicomedes, absorto, revelava-se num mundo de alegrias profundas, que se lhe irradiavam da vida interior, em forma de melodias, das notáveis melodias que se sucediam umas às outras. Em dado momento, apontei: “ele parece mergulhado num longo êxtase, toca como quem ora”, ao que a filha respondeu: “estamos efetivamente muito felizes; minha mãe, ao que sabemos, deverá chegar nesta semana”. “Ela está de viagem?” perguntei. Com a maior naturalidade, a moça esclareceu: “minha mãe virá da Terra”. Quando ouvi isso, experimentei horrível choque, como se acabasse de receber uma punhalada no peito. Faltou-me o ar, entrei, desprevenida, numa terrível crise de angústia… A simples ideia de que nos situávamos em lugar fora do mundo que sempre conheci, me fazia voltar às dores anginosas que, desde muito tempo, não registrava. Corina me entendeu sem palavras e trouxe um calmante. Meu estado de perturbação, ao que observei, se comunicou a todo o ambiente, porque o dono da casa interrompeu-se, de improviso, quando executava um belo noturno… Via-me prestes a desmaiar. O pequeno grupo congregou atenções junto de mim e fui levada para o ar livre. Sentaram-me numa poltrona de pedra, semelhante ao mármore. Tateei com força o respaldar da curiosa cadeira e, ao verificar a dureza do material sob minhas mãos, comecei a tranquilizar-me… Em seguida, olhei para o céu e vi a lua cheia, fulgindo com tanta beleza que me asserenei de todo. Percebi a sem-razão do meu susto. E refleti, de mim para comigo: “porque não existirá uma cidade, uma vila, um lugarejo qualquer de nome Terra” O quadro que me cercava era positivamente um recanto do mundo… Indiscutivelmente, a esposa de Nicomedes estaria sendo esperada de alguma aldeia anônima… Ruminava minhas conclusões, quando o chefe do lar indagou, compadecido: “há quanto tempo nossa irmã Alzira está conosco?” “Pouco mais de dois meses”, participou uma de minhas guardiãs. Nada mais se comentou a meu respeito. A visita foi encerrada. De retorno ao hospital, as irmãs a quem seguira, por sinal duas excelentes enfermeiras, não fizeram a mínima referência ao meu sobressalto…
— Não tem trocado ideias com mais ninguém? objetou Fantini, interessado.
— Apenas durante os banhos, ouço uma que outra companheira. Em cada uma, encontro a dúvida, pairando… A maioria supõe que nos vemos defrontados por outra vida…
— Nenhuma delas tem certeza absoluta? — interveio a senhora Serpa.
— Unicamente a senhora Tamburini se mostra plenamente convencida de que não mais nos situamos no domicílio terrestre. Contou-me que vem frequentando um gabinete de estudos magnéticos, aqui mesmo em nossa organização hospitalar, e sujeitou-se a testes que lhe deram a confirmação de que não está de posse do corpo físico. Escutei-a com atenção e ela acabou convidando-me para algumas experiências, mas agradeci a gentileza, sem aceitá-la. Essas histórias de clarividências e reencarnações não se afinam com a minha fé católica.
— Ah! a senhora é católica? — interrompeu-a Evelina.
— Oh! sim…
— E já que respiramos no clima de grande cidade, não temos aqui sacerdotes?
— Sim, temos.
— Já se entendeu com algum deles?
— Estou convidada para visitar uma igreja e farei isso, logo obtenha permissão. Devo, porém, dizer-lhe que, segundo informações de boa fonte, os padres são muito diferentes nestas paragens…
— Em que sentido?
— Dizem que são sacerdotes médicos, professores, cientistas e operários e não se restringem aos serviços da fé. Prestam socorro espiritual, eficiente e positivo, em nome de Jesus.
Fantini observou que o pátio esvaziava.
Todos os doentes se recolhiam.
Alzira, a nova amiga, apalavrou novo encontro para depois, enquanto cumprimentava às despedidas. Logo após, Ernesto e Evelina regressaram aos aposentos, na expectativa de se reverem no dia seguinte.
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