Almas em Desfile
Versão para cópiaA joia
I
No grande transatlântico em que cento e oitenta pessoas seguiam da América do Sul para a América do Norte, dentre as quais cento e dez brasileiros, o Sr. Zenóbio de Carvalho era cavalheiro dos mais simpáticos. Prestativo. Cordial. Sempre um sorriso bom, distribuindo coragem.
Acompanhava uma filhinha de quatro anos para tratamento de saúde em New York, com o rosto já coberto de rugas, dava a ideia de sessenta anos de idade, quando ultrapassara apenas as faixas dos quarenta.
Exteriorizava, porém, tamanho encanto na convivência, que se tornara por todos estimado.
Entretanto, Carvalho, conhecido como distinto comerciante no sul brasileiro, estava preso a um hábito forte.
Toda manhã e toda tarde era visto no tombadilho compulsando livros espíritas.
Ninguém dava a isso maior interesse, menos o velho professor Marques Botelho, que não ia com semelhante atitude.
E todas as vezes que o negociante saía da cabina para ler diante do mar, o educador tomava uma das obras de Hemingway, que andava recordando para familiarizar-se com o inglês, e postava-se em outra poltrona, ao lado dele, como em desafio, a baforar fumaça espessa, pelo cachimbo encastoado de prata.
II
Às vésperas do desembarque, reuniram-se todos os viajantes no salão de festas, para o lanche em comum.
Carvalho chegou, como sempre, conduzindo um livro espírita e, porque as circunstâncias o colocassem renteando com o cordial adversário, o professor, em meio à festa, apontou o volume, com antipatia evidente, e falou, em voz alta:
— Sinto ojeriza especial por tudo quanto se relacione com Espiritismo…
— Ora, ora, mas por quê? — indagou Zenóbio, humilde.
— Há precisamente vinte e dois anos — comentou o educador —, estive em Buenos Aires, estudando a instrução na Argentina, e hospedei-me com um amigo na rua de Córdova, onde me roubaram precioso anel de brilhantes, lembrança de minha mãe. Meu amigo viu o vulto do ladrão que desapareceu numa construção próxima, onde se praticavam sessões espíritas. Providenciamos a inquirição policial. O bando espírita esteve detido, mas tudo em vão… Desde essa época, não vou com essa droga…
O negociante ruborizou-se e respondeu:
— Sinto-me realmente numa hora de testemunho. Devo confessar que, em minha mocidade, fui ladrão, mas, há vinte anos, após um roubo por mim praticado, alguém se compadeceu de minha juventude viciada e colocou-me nas mãos uma obra de Allan Kardec. Reformei-me. Compreendi que a vontade cria o destino e sou hoje outro homem…
— Oh! Oh!…
Exclamações explodiam de todas as bocas.
— Sr. Carvalho — aparteou o catedrático —, não tive a intenção de ofendê-lo… Não tenho simpatia pelo Espiritismo, mas não creio que o senhor tenha errado alguma vez. Perdoe-me.
Mas Zenóbio, agora sorrindo sereno, enfiou a mão no bolso interno do paletó e arrancou de lá um anel e entregou-o ao educador, exclamando:
— Fui eu que lhe furtei a joia, em Buenos Aires. Há vinte anos eu a trago no bolso, para devolvê-la ao legítimo dono.
Num rasgo de imenso valor moral, fitou os circunstantes e acentuou:
— Creiam que hoje é um dos mais belos dias de minha vida…
E terminou, ante o emocionado silêncio de todos:
— Graças a Deus!
(Psicografia de Francisco C. Xavier)
A JOIA
I
No grande transatlântico em que cento e oitenta pessoas seguiam da América do Sul para a América do Norte, dentre as quais cento e dez brasileiros, o Sr. Zenóbio de Carvalho era cavalheiro dos mais simpáticos. Prestativo. Cordial. Sempre um sorriso bom, distribuindo coragem.
Acompanhava uma filhinha de quatro anos para tratamento de saúde em Nova York e, com o rosto já coberto de rugas, dava a ideia de sessenta anos de idade, quando ultrapassara apenas as faixas dos quarenta.
Exteriorizava, porém, tamanho encanto na convivência, que se tornara por todos estimado.
Entretanto, Carvalho, conhecido como distinto comerciante no sul brasileiro, estava preso a um hábito forte.
Toda manhã e toda tarde era visto no tombadilho compulsando livros espíritas.
Ninguém dava a isso maior interesse, menos o velho professor Marques Botelho, que não ia com semelhante atitude.
E todas as vezes que o negociante saía da cabina para ler diante do mar, o educador tomava uma das obras de Hemingway, que andava recordando para familiarizar-se com o inglês, e postava-se em outra poltrona, ao lado dele, como em desafio, a baforar fumaça espessa, pelo cachimbo encastoado de prata.
II
Às vésperas do desembarque, reuniram-se todos os viajantes no salão de festas, para o lanche em comum.
Carvalho chegou, como sempre, conduzindo um livro espírita e, porque as circunstâncias o colocassem renteando com o cordial adversário, o professor, em meio à festa, apontou o volume, com antipatia evidente, e falou, em voz alta:
—Sinto ojeriza especial por tudo quanto se relacione com Espiritismo. . .
—Ora, ora, mas por quê? – indagou Zenóbio, humilde.
—Há precisamente vinte e dois anos – comentou o educador -, estive em Buenos Aires, estudando a instrução na Argentina, e hospedei-me com um amigo na rua de Córdova, onde me roubaram precioso anel de brilhantes, lembrança de minha mãe. Meu amigo viu o vulto do ladrão que desapareceu numa construção próxima, onde se praticavam sessões espíritas. Providenciamos a inquirição policial. O bando espírita esteve detido, mas tudo em vão. . . Desde essa época, não vou com essa droga. . .
O negociante ruborizou-se e respondeu:
—Sinto-me realmente numa hora de testemunho. Devo confessar que, em minha mocidade, fui ladrão, mas, há vinte anos, após um roubo por mim praticado, alguém se compadeceu de minha juventude viciada e colocou-me nas mãos uma obra de Allan Kardec. Reformei-me. Compreendi que a vontade cria o destino e sou hoje outro homem. . .
—Oh! Oh!. . .
Exclamações explodiam de todas as bocas.
—Sr. Carvalho – aparteou o catedrático -, não tive a intenção de ofendê-lo. . . Não tenho simpatia pelo Espiritismo, mas não creio que o senhor tenha errado alguma vez. Perdoe-me.
Mas Zenóbio, agora sorrindo sereno, enfiou a mão no bolso interno do paletó e arrancou de lá um anel e entregou-o ao educador, exclamando:
—Fui eu que lhe furtei a joia, em Buenos Aires. Há vinte anos eu a trago no bolso, para devolvê-la ao legítimo dono.
Num rasgo de imenso valor moral, fitou os circunstantes e acentuou:
—Creiam que hoje é um dos mais belos dias de minha vida. . .
E terminou, ante o emocionado silêncio de todos:
—Graças a Deus!