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Visto que
Ἐπειδήπερ (epeidéper) – visto que, considerando que; desde que, depois que – Conj. (1-1), formada pela junção de três elementos: conjunção temporal Ἐπει (epei – depois que, quando, então) + conjunção com sentido conclusivo, adversativo ou aditivo δή, (dé – pois, portanto, por isso; mas, porém, todavia) + sufixo com valor intensivo e extensivo, fortalecendo a palavra à qual adere περ (per). O vocábulo sugere que Lucas, depois de ter acesso a outras fontes escritas, resolveu produzir seu relato, mesmo não sendo uma testemunha ocular dos fatos. Não há qualquer indicação quanto à identidade desses escritores.
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empreenderam
ἐπεχείρησαν - (epekheíresan) – lit. “pôr a mão sobre”, pôr mãos (à obra), empreender (um trabalho); tratar de, procurar fazer algo; tentar – Verb. Indicativo Aoristo Ativo (1-3), formado pela junção da preposição ἐπί, (epí – sobre) + χείρ (kheír – mão). O verbo permite duas ilações:
1) inúmeras pessoas se lançaram ao trabalho;
2) muitos tentaram (sem êxito). No caso, preferimos traduzir por “empreender”, que, de certo modo, deixa em aberto a questão do êxito da empreitada.
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organizar
ἀνατάξασθαι (anatácsasthai) – lit. “colocar na ordem certa”; redigir ou compor (ordenadamente), compilar; narrar (por escrito) – Verb. Infinitivo Aoristo Médio (1-1), composto pela preposição ἀνα, (aná – o contrário; de novo; do início) + verbo τάσσ (tásso – arranjar, organizar, colocar em ordem). O verbo se encontra na voz média ανατάσσομαι (anatássomai), com o sentido de organizar. Na voz ativa ανατάσσο (anatásso) tem o sentido de desordenar, destruir, abolir. No sistema verbal grego, a voz média é uma derivação da voz ativa, logo o verbo organizar, ordenar deriva do verbo desordenar, decompor. Pode parecer incongruente essa derivação verbal, no exemplo em questão, caso não se tenha em mente que é impossível narrar ‘ordenadamente’ sem que antes a matéria tenha sido analisada, decomposta, de forma acurada e meticulosa. Sendo assim, é lícito depreender que, antes de organizar sua narrativa, Lucas decompôs todos os elementos, todos os fatos pertinentes ao assunto que pretendia descrever, realizando uma verdadeira análise do material disponível para consulta.
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narrativa
διήγησιν (diégesin) – narrativa; descrição, relatório, explicação – Sub (1-1), derivado do verbo διεγέομαι (diegéomai – narrar, falar de, explicar, descrever, relatar) que, por sua vez, é composto pela preposição διά , (diá – quando em composição com outro vocábulo expressa a ideia de divisão, distribuição) + verbo εγέομαι (egéomai – guiar, conduzir). O emprego deste termo genérico deixa em aberto se aqueles redatores, consultados por Lucas, escreveram evangelhos ou algum outro tipo de narrativa.
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cumpriram
πεπληροφορημένων (peplerophoreménon) – cumprir, consumar, concluir, finalizar, findar; realizar, executar; preencher, completar; convencer-se – Verb. Particípio Perfeito Passivo Genitivo (1-6), composto pelo adjetivo πλήρες (pléres – cheio, completo, pleno; íntegro, perfeito) + verbo φέρω (féro – levar, trazer, transportar; acontecer, verificar-se). O verbo se encontra na voz passiva do perfeito (tempo verbal grego), indicando que os fatos já estavam consumados no momento da escrita. O vocábulo apresenta acentuado sabor teológico, sugerindo, entre outras coisas, que o propósito Divino se cumpriu na vida e na obra de Jesus; que foi atingida a plenitude dos tempos (mediante o cumprimento das profecias da bíblia hebraica); enfim, a promessa feita aos patriarcas foi cumprida com a vinda do Messias. Muitos estudiosos também vêem nesta expressão uma alusão à “história da salvação”, ou, à intervenção do Altíssimo no curso da história humana.
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transmitiram
παρέδοσαν (parédosan) – transmitir (ensino oral ou tradição escrita); dar, entregar, confiar (algo à alguém) – Verb. Indicativo Aoristo Ativo (17-119), composto pela preposição παρά (pará – junto a; para; em) + verbo δίδωμι (dídomi – dar; entregar; conceder). Lucas utiliza um termo técnico para destacar que sua obra se embasa na tradição, oral e escrita, da comunidade cristã. A primeira etapa da transmissão da vida e do ensino de Jesus foi eminentemente oral. A maioria desse material narrativo se perdeu com o tempo. Parte desta pregação, porém, assumiu formas fixas e padronizadas, à medida que as histórias e os ditos eram narrados. Essa padronização facilitava a retenção do relato na memória do ouvinte e reflete uma prática comum dos rabinos (sábios da Palestina do Séc. I) que tinham o costume de compor seus ensinos em formas propícias à memorização, exigindo que seus alunos as decorassem. A própria composição do Talmud (200d.C a 500d.C) reflete essa prática. Ao longo do desenvolvimento da tradição oral, houve a condensação e concretização desse material memorizado na forma escrita, sendo perfeitamente possível identificar os padrões narrativos (curas, milagres, ditos notáveis, pregação apostólica) no Novo Testamento, trabalho realizado, embora de modo incompleto, pela Crítica das Formas (ramo do estudo bíblico que estudo os padrões narrativos).
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oculares
αὐτόπται (autóptai) – lit. “testemunha ocular”, testemunha direta, alguém que presenciou um fato – Sub (1-1), formado pela junção do pronome reflexivo αυτός (autós – o mesmo, o próprio, transmitindo a ideia de ênfase) + verbo οράο (oráo – ver, observar). O substantivo οπτήρ (optér – observador, espião) também deriva deste verbo. A confiança depositada nas testemunhas e em sua probidade era total e irrevogável, no sistema judicial hebreu. Depois que duas testemunhas tivessem prestado depoimento no Tribunal de Israel, e um veredicto final fosse emitido, elas não poderiam voltar atrás em seus depoimentos. Para os rabinos não era possível apresentar uma nova prova contradizendo um depoimento prestado anteriormente, nem mesmo provas circunstanciais mais conclusivas. Por esta razão, as testemunhas deviam se submeter a investigações (bedicot) e pesquisas (chakirot), detalhadamente descritas na Mishná, antes que seu depoimento fosse aceito pelo Tribunal. O Evangelista menciona testemunhas oculares (pessoas que presenciaram os fatos registrados na sua narrativa), por ele consultadas, invocando autoridade, credibilidade e respeito ao seu trabalho. Lucas pode ser considerado um bom historiador, desde que sua obra seja avaliada segundo os critérios estabelecidos para a produção de literatura histórica da sua época. Evidentemente, não escreve como um historiador científico moderno. Os fatos são registrados com um propósito teológico e religioso, adotando-se, por vezes, formas literárias típicas da época, sobretudo da tradição farisaica.
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servidores
ὑπηρέτῃ (huperétai) - remador, marinheiro, navegador; servido; assistente, auxiliar - Sub (2-20), composto pela preposição νπηρ (hupér - em composição pode indicar ênfase, excesso) + substantivo εταιης (erétes - remador), que por sua vez deriva do verbo ερετης (erétes - remador), que por sua vez deriva do verbo ερεααω (erésso - remar). Trata-se de um humilde servidor, e não de um escravo, já que o indivíduo conserva sua autonomia, sua liberdade. A preposição νπηρ (hupér) sugere a ideia de alguém que está na fronteira que separa o servidor do servo. Em resumo, a palavra grega indica o servidor, na mais exata acepção do termo. O vocábulo foi empregado, no Novo Testamento, para designar diversos tipos de servidores: os assistentes do Rei, os oficiais do Sinédrio, os assistentes dos Magistrados, as sentinelas do Templo de Jerusalém. Na literatura grega, a palavra é empregada para designar remador, marujo, todos os homens sob as ordens de outro, um servidor comum, um servidor que acompanha o soldado de infantaria (na Grécia antiga), ajudante de um general; servidor de Deus.
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palavra
λόγου (lógou) – palavra, verbo, discurso, narrativa; razão, raciocínio, inteligência; conta, cálculo – Sub (33 -331), derivado do verbo
λέγω (légo – narrar, dizer; reunir; contar, enumerar), e possui uma ampla gama de significados. Lucas utiliza, neste trecho, uma expressão incomum, não encontrada em nenhuma outra passagem do Novo Testamento, cujo significado, inicial, pode ser “homens que pregavam o evangelho”. Todavia, não podemos perder de vista que, na obra de Lucas, as expressões “pregar a Palavra” e “pregar a Jesus” se equivalem (
Atos 8:4-9:20, 10:36). Nesse caso, seu emprego do substantivo
λόγος (lógos – palavra, verbo) se aproxima muito do uso feito por João, no prólogo do seu Evangelho, onde Jesus é considerado a Palavra de Deus. Em respeito ao contexto e às peculiaridades do emprego deste vocábulo pelo Evangelista, optamos por traduzir como “servidores da Palavra”. A ideia subjacente é de personificação do
λόγος (lógos – palavra, verbo). Nos evangelhos,
λόγος (lógos – palavra, verbo) é visto como o mediador da revelação divina, a palavra encarnada, ou seja, o próprio Jesus Cristo. (Vide nota 4 – João 1:1).
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investigado
παρηκολουθηκότι (parekoluthekóti) – seguir, acompanhar; seguir de perto, seguir fielmente; investigar; compreender (lit. acompanhar um pensamento) – Verb. Particípio Perfeito Ativo Dativo (1-4), composto pela preposição παρά (pará – junto a; para; em) + verbo ακολοθεο (akoluthéo – seguir, acompanhar; imitar). O vocábulo expressa não apenas a ação de acompanhar fisicamente algo/alguém, mas também o acompanhamento, cuidadoso e atencioso, de um pensamento ou, ainda, a investigação de um fato; condutas que são, em última análise, responsáveis pela compreensão (um dos sentidos do verbo). O verbo permite concluir que Lucas, em determinadas ocasiões, presenciou alguns fatos, noutras, examinou, pessoalmente, lugares, documentos (tradição escrita), mas, sobretudo, ouviu, com atenção e cuidado, o depoimento de testemunhas oculares e servidores do Cristo (tradição oral), entre eles, o Apóstolo Paulo, com quem realizou inúmeras viagens. Em resumo, “seguiu a pista”, investigou cuidadosamente.
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início
ἄνωθεν (ánothen) – expressando ideia de lugar: do alto, de cima (especialmente do céu); expressando ideia de tempo: desde o início, desde o princípio (sugerindo o ponto mais alto no tempo); de novo, outra vez; por um longo tempo – Adv (1 -13), formado pela junção do advérbio άνο (áno – para o alto, para cima; sobre, em cima) + sufixo θεν (then – indica direção). A gama de significados deste advérbio exige do tradutor especial atenção para determinar o seu sentido exato em determinado contexto, não obstante seja imperioso reconhecer que, nalguns pontos, a ambiguidade é intencional (do alto X de novo), e parece ter sido explorada com propósitos religiosos, como acontece em João 3: 3 e No caso em tela, Lucas revela seu desejo de iniciar a narrativa a partir das origens mais remotas do cristianismo, ou seja, do nascimento do Precursor, seguido do nascimento do próprio Messias.
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ordem
καθεξῆς - (kathecses) – em ordem, ordenadamente; em sequência, um depois do outro (do ponto de vista temporal, espacial ou lógico); em seguida, depois disso – Adv. (2-5), composto pela preposição
κατά (katá – em composição indica sucessão e distribuição; realização, efetividade) + advérbio
έσσης (hecses – sucessivamente; seguinte). A utilização deste advérbio revela que o Evangelista tinha em mente compor uma narrativa ordenada, não apenas sob o aspecto cronológico, mas, sobretudo, sob o aspecto lógico. Fica evidente, mais uma vez, o propósito religioso do narrador, confessado na parte final desta passagem (
Lc 1:4): “...para que confirmes a segurança das palavras...”. Desse modo, como salientado por alguns comentaristas, estamos diante de “um arranjo lógico e artístico”.
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confirmes
ἐπιγνῷς (epignos) – tornar-se consciente de algo; confirmar, reconhecer; conhecer plenamente, completamente – Verb. Subjuntivo Aoristo Ativo (7-44), composto pela preposição ἐπι, (epí – em composição indica além; sobre) + verbo γινώσκω (ginósko – conhecer; reconhecer; aprender; entender). Ao que tudo indica, o evangelista acredita que sua narrativa pormenorizada e organizada forneça elementos para confirmar a veracidade da tradição oral e/ou possibilite um conhecimento abrangente, completo dos fatos. As duas possibilidades estão implícitas no campo semântico do verbo grego. No entanto, o contexto nos levou a optar pela tradução “confirmes”, que prioriza o primeiro sentido do vocábulo (confirmar, reconhecer).
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segurança
ἀσφάλειαν (aspháleian) – segurança, firmeza, solidez; certeza, veracidade – Sub (1-3), derivado do adjetivo εσφαλες (asphalés – firme, seguro; que não cai; que não vacila) que por sua vez deriva do verbo σφάλιο (sphállo – fazer escorregar, fazer cair) + prefixo de negação αν (a – negação). A autenticidade da tradição bíblica apoiava-se sobre a confiança depositada na palavra daqueles que eram os responsáveis pela transmissão oral. Os sábios de Israel emprestavam caráter sagrado às palavras de um homem, tanto que os Tribunais Judaicos não exigiam juramento das testemunhas: a palavra era evidência suficiente para o Tribunal. Por esta razão, as interpretações da bíblia somente eram confiáveis quando fosse possível remontá-las a uma geração de sábios responsáveis pela sua transmissão ao longo do tempo. Talvez seja esta a razão de Lucas ter mencionado sua consulta às testemunhas oculares, ou seja, provavelmente, sua intenção era demonstrar a seriedade do seu trabalho, deixando claro que recorreu a fontes (testemunhas) que gozavam de respeito e confiabilidade naqueles primeiros dias da comunidade cristã.
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palavras
Nesta oração, a expressão: “palavras a respeito das quais foste instruído” reflete um semitismo, que poderia ser substituído por “ensinos a respeito dos quais foste instruído”, mas, nesse caso, se perderia uma nuance importante da afirmativa: trata-se de ensino oral, de palavras.
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instruído
κατηχήθης (katekhéthes) – lit. “fazer ecoar no ouvido”, instruir de viva voz; ensinar, instruir, catequizar – Verb. Indicativo Aoristo Passivo (1-8), composto pela preposição κατά (katá – que pode indicar “do alto para baixo”, quando em composição com um verbo) + verbo εκρεώ (ekhéo – ecoar, ribombar, ressoar), expressando a ideia de uma voz que, ressoando, desce da boca do transmissor para o ouvido do receptor. O Evangelista, neste trecho, revela o processo de transmissão do ensino cristão nos primeiros tempos, confirmando a importância da tradição oral na Palestina do primeiro século. No mundo antigo, quase toda leitura, pública ou privada, era feita em voz alta, ou seja, os textos eram frequentemente convertidos para o modo oral. Em decorrência disso, os autores antigos escreviam tanto para o ouvido quanto para os olhos. Naqueles tempos a palavra falada reinava soberana, ao passo que o texto ocupava papel secundário. Platão menciona em sua obra (Fedro, 274c –
275) a advertência de Sócrates contra a substituição das tradições orais pela palavra escrita, porque as pessoas deixariam de usar a memória. Nesse contexto, não é difícil entender que, para os hebreus, as escrituras eram palavras, frases ditadas pelo Todo-Poderoso ao profeta, no monte Sinai. Moisés, por sua vez, após escutar todas as instruções, foi incumbido de registrá-las. A porção ditada era conhecida como Torah Oral, enquanto o registro em Pergaminho (rolo) era conhecido como Torah Escrita (Pentateuco).