Crônicas de Além-Túmulo

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Capítulo XXXI

O elogio do operário


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Às portas do Céu bateram, um dia, um político, um soldado e um operário. Mas Gabriel, o anjo que na ocasião velava pela tranquilidade do paraíso, não quis atender-lhes as rogativas sem previamente consultar o Senhor sobre aquelas três criaturas recém-chegadas da Terra.

Depois de inquiri-las quanto às suas atividades na superfície do mundo, procurou o Mestre, a quem falou humildemente:

— Senhor, um político, um soldado e um operário, vindos da Terra longínqua, desejam receber vossas divinas graças, ansiosos de gozar das felicidades celestes.

— Gabriel — disse o Salvador —, que habilitações trazem do mundo essas almas, para viverem na paz da Casa de Deus? Bem sabes que cada homem edifica, com a sua vida, o seu inferno, ou o seu paraíso… Mas, vamos ao que nos interessa: Que fez o político lá na Terra?

O anjo, bem impressionado com a figura do diplomata, que impetrara os seus bons ofícios, exclamou com algum entusiasmo:

— Trata-se de um homem de elevado nível cultural. Suas informações revelaram-me um espírito de gosto refinado no trato da civilização e das leis. Foi um preclaro estadista, cuja existência decorreu nos bastidores da administração pública e nos torneios eleitorais onde consumiu todas as suas energias. Em troca de seus labores, os homens lhe tributaram as mais subidas honras nas suas exéquias. Seu cadáver embalsamado num ataúde de vidro, percorreu duzentas léguas para ficar guardado nos mármores preciosos do Panteão Nacional.

— Mas… — objetou entristecido o Mestre — esse homem teria cumprido as leis que ditava para os outros? Teria observado a prática do bem, a única condição para entrar no paraíso, absorvido, como se achava, na enganosa volúpia das grandezas terrenas?

— A luta política, Senhor, tomava-lhe todo o tempo — respondeu solícito o anjo —; os tratados jurídicos, as tabelas orçamentárias, as fontes históricas, as questões diplomáticas, os compêndios de ciências sociais, não davam lugar a que ele se integrasse no conhecimento da vossa palavra…

— Entretanto, o meu Evangelho deveria ser a bússola de quantos se colocam na direção da humanidade…

E, como se intimamente lastimasse a situação do infeliz, O Mestre rematou:

— Aqui não há lugar para ele. Não se conquistam as venturas celestes com a riqueza de teorias da Terra. Dir-lhe-ás que retorne ao mundo, a fim de voltar mais tarde ao paraíso, pela porta do bem, da caridade e do amor.

E o soldado, que serviços apresenta em favor da sua pretensão?

— Esse — replicou Gabriel — foi um herói na terra em que nasceu. Seus atos de valor e de bravura deram causa a que fosse promovido pelos superiores hierárquicos à posição de chefe das forças militares em operações, na última guerra. Tem o peito coberto de medalhas e de insígnias valiosas, das ordens patrióticas e das legiões de honra; seu nome é lembrado no mundo com carinhoso respeito. Aos seus funerais compareceram representações de vários países do mundo e inúmeras coletividades acompanharam-lhe as cinzas ilustres, que, envolvidas na bandeira da sua pátria, foram guardadas num majestoso monumento de soberbo carrara.

— Infelizmente — exclamou amargurado o Senhor —, o Céu está fechado para os homens dessa natureza. É inacreditável que sejam glorificados no orbe terrestre aqueles que matam a pretexto de patriotismo. Nunca pus no verbo dos meus enviados, no planeta, outra lei que não fosse aquela do — “amai a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a vós mesmos”. Nunca houve uma determinação divina para que os homens se separassem entre pátrias e bandeiras. De sul a norte, do oriente ao ocidente, todos os Espíritos encarnados são filhos de Deus, e qualquer deles pode ser meu discípulo. Os homens que semeiam a ruína e a destruição não podem participar da tranquilidade do paraíso.

E o operário, que fatos lhe justificam a presença nas portas do Céu?

— Esse — elucidou Gabriel — quase nada tem a contar dos seus amargurados dias terrestres. Os sopros frios da adversidade, em toda a existência perseguiram-no através das estradas do destino, e a fé em vossa complacência e misericórdia lhe foi sempre a única âncora de salvação, no oceano de suas lágrimas por onde passava o barco miserável da sua vida. Trabalhou com o esforço poderoso das máquinas e foi colaborador desconhecido do bem-estar dos afortunados da Terra. Nunca recebeu compensação digna do seu trabalho, e consumiu-se no holocausto à coletividade e à família… Entretanto, Senhor, ninguém conheceu as tempestades de lágrimas do seu coração afetuoso e sensível, nem as dificuldades dolorosas dos seus dias atormentados, no mundo. Viveu com a fé, morreu com a esperança e o seu corpo foi recolhido pela caridade de mãos piedosas e compassivas que o abrigaram na sepultura anônima dos desgraçados…

— O Céu pertence a esse herói, Gabriel — disse o Mestre alegremente. — Suas esperanças colocadas no meu amor são sementes benditas que frutificarão na percentagem de mil por um. Se os homens o ignoram, o Céu deve conhecer os seus heroísmos obscuros e os seus sacrifícios nobilitantes. Enquanto o político organizava leis que não cumpria, ele se imolava no desempenho dos deveres santificadores. Enquanto o soldado destruía irmãos, seus braços faziam o milagre do progresso e do bem-estar da Humanidade. Enquanto os despojos dos primeiros foram encerrados nos mármores frios e imponentes das falsas homenagens da Terra, seu corpo de lutador se dissolveu no solo, acentuando o perfumes na Natureza e enriquecendo o grão que alimenta as aves alegres, na mesma harmonia eterna e doce que regeu os sentimentos do seu coração e os atos do seu Espírito. Esse, Gabriel, faz parte dos heróis do Céu, que a Terra nunca quis conhecer.

E, enquanto o político e o soldado voltavam ao caminho das reencarnações dolorosas da Terra, o operário de Deus se cobria com as claridades do Infinito, buscando outras possibilidades de trabalho para o seu amor e para o seu devotamento.


(.Irmão X)


Primeiro de maio de 1937.



Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier

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