Assim Dizia o Mestre

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CAPÍTULO 31
Ilustração tribal

"TUDO QUE FIZESTES AO MENOR DE MEUS IRMÃOS A MIM É QUE O FIZESTES. "


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O final do capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus é um dos documentos mais grandiosamente trágicos dos livros sacros do Novo Testamento. Nele refere o Cristo que, quando ele vier em sua majestade, em companhia de todos os seus anjos, sentar-se-á no trono da sua glória e reunirá diante de si todos os povos. Colocará à sua direita os bons, e à sua esquerda os maus. E dirá aos bons: "Vinde benditos de meu Pai, possuí o reino que vos está preparado desde o princípio, porque eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; andava estranho, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; estava doente, e me visitastes; estava preso, e me viestes ver.

E perguntarão os da direita: Quando foi, Senhor, que te vimos com forme, com sede, estranho, nu, doente ou preso e te acudimos?

Responder-lhes-á o Filho do homem: Em verdade, vos digo, tudo que fizestes ao menor de meus irmãos, a mim é que o fizestes!

Em seguida dirá aos que estiverem à esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, porque eu estava com fome, e não me destes de comer;

estava com sede, e não me destes de beber; andava estranho, e não me acolhestes; estava nu, e não me vestistes; estava doente, e não me visitastes;

estava preso, e não me viestes ver.

Perguntarão também eles: Quando foi, Senhor, que te vimos com fome, com sede, estranho, nu, doente ou preso, e não te acudimos?

E ele lhes dirá: Em verdade, vos digo, tudo que deixastes de fazer a um desses mais pequeninos, a mim é que deixastes de fazer.

E irão estes para a morte eterna – os justos, porém, para a vida eterna. " Aqui está a Carta Magna da verdade fundamental da nossa vida: Não podemos realizar dentro de nós o Cristo se não lhe servirmos na pessoa de nossos semelhantes. O Cristo interno não ressuscita em nós se não ajudarmos o Cristo externo nos outros – é essa a grande lei da polaridade cósmica! Os bons samaritanos, os Cireneus, as Verônicas, os Francisco de Assis, os Gandhi, os Schweitzer, etc., encontrando o Cristo nos outros, encontram-no dentro de si mesmos; se recusarem a vê-lo nos indigentes e nos doentes, nos cegos, nos surdos, nos mudos, nos leprosos, nunca o verão em sua glória. Ninguém pode ver o Cristo glorioso no Pai quem não o viu chagado em seus irmãos, no "menor de seus irmãos".

Essa grandiosa passagem do Evangelho costuma ser interpretada, geralmente, como um dos documentos máximos da caridade. Entretanto, essas palavras encerram muito mais do que uma dramática recomendação da caridade para com os necessitados de corpo e alma. É um dos grandes documentos da cristificação ou auto-realização do homem. Querem os curiosos saber quais sejam as técnicas idôneas para produzir a auto-realização – aqui temos, em termos lapidares, a mais completa técnica: ninguém realiza o Cristo dentro de si se o não encontrar e abraçar nos outros, fora de si!

Há quem faça caridade a seus semelhantes por simples motivo de simpatia emocional, porque lhe repugna ver sofrer algum ser vivo. Essa filantropia é, certamente, recomendável – mas não é cristificação.

Outros acham que é inútil ocuparmo-nos com as misérias alheias, uma vez que, via de regra, o sofrimento humano é sofrimento-débito, cada um sofre as consequências dos seus erros cometidos, nesta ou em existências anteriores, e é justo que ele pague os seus débitos, que se liberte do seu "carma negativo"; se o não fizer agora, terá de o fazer mais tarde.

Nem esta nem aquela atitude fazem pleno jus à passagem em apreço. O principal da caridade não é socorrer ao sofredor, ao necessitado, ao doente.

Deus poderia, num só instante, acabar com todas as misérias e sofrimentos da humanidade, mesmo sem a nossa intervenção. Por que não o faz? E, se ele não o faz, por que devemos nós fazê-lo?

Mas é que existe, para além de todas as caridades éticas, um grande mistério metafísico e místico. . .

O principal beneficiado da nossa caridade não é aquele que recebe, mas sim aquele que dá o benefício – "Há mais felicidade em dar do que em receber". O sujeito ou autor do benefício é mil vezes mais favorecido do que o objeto ou beneficiado. Deus pode fazer o bem que eu faço – mas Deus não pode ser bom em meu lugar. Muito mais importante do que fazer o bem é ser bom. O beneficiado recebe o bem que eu faço – mas o benfeitor se torna bom pelo bem que ele faz; logo, o principal beneficiado é o benfeitor; antes de realizar qualquer bem no outro, ele o realiza em si mesmo, pelo fato de ser bom; pelo fato de realizar nos outros os dons de Deus, esse homem realiza em si mesmo o próprio Deus. . .

O veículo manifestativo do amor é a caridade. Pode haver caridade sem amor, mas não pode haver amor sem caridade. Pelo fato de eu fazer caridade a alguém, desperto em mim o amor, que estava dormente, ou semidormente. E, como toda a potência cresce com sua atualização, o meu amor cresce com a minha caridade.

E, para preservar a minha caridade de qualquer laivo de egoísmo, autocomplacência, vanglória, sentimentalismo doentio, ou outro elemento negativo, deve a minha caridade, segundo as palavras do Mestre, ser feita "ao menor de seus irmãos", isto é, aos mais imperfeitos e menos atraentes de meus semelhantes. Fazer caridade a uma criança simpática, a uma creatura bem formada, bela, amável e grata, é relativamente fácil; adotar uma criança sadia e bem educada pode ser até um ato de secreto egoísmo, mas querer bem e fazer bem a um mendigo esfarrapado, a alguma ruína humana sem esperança, a uma creatura humana feia e repelente, isso exige a morte de toda e qualquer espécie de egoísmo. São esses os "menores" dentre os irmãos do Cristo – e é aqui que está o caminho mais seguro e curto para a cristificação.

Quando Francisco de Assis beijou as chagas fétidas daquele leproso, escolheu o último e ínfimo dos irmãos de Jesus – e nesse momento supremo realizou ele em si o nascimento do Cristo, rompeu a muralha de granito que o separava da sua verdadeira auto-realização; sobre as ruínas do ego humano exultou o Eu divino.

Pode ser que os pobres e doentes não necessitem de mim – mas eu necessito deles. Pode ser que eu não os "realize", que não lhes dê saúde e bem-estar – mas é certo que eu me realizo e conquisto grande saúde e bem-estar espirituais.

Pode ser que nenhuma dessas ruínas humanas aproveite com os meus benefícios, que todos continuem pobres, doentes, ingratos – mas isso não é da minha conta. Um homem, pelo menos, aproveitou da minha desinteressada caridade – e esse homem sou eu mesmo.

Será que o Sol escolhe meticulosamente os terrenos férteis para irradiar a abundância da sua luz e do seu calor benéfico? Não é verdade que a maior parte dos seus benefícios solares cai nos oceanos ou nos desertos, onde não brotam plantas? E os raios que não atingem a nossa Terra nem outro planeta em condições de produzir vida! Dizem os cientistas que a temperatura intersideral dos espaços cósmicos é de 273 graus abaixo de zero – o "frio absoluto" –; entretanto, há milhões e bilhões de anos que o Sol derrama a abundância da luz e do seu calor para dentro desses desertos, onde nenhuma plantinha responde a seus constantes benefícios.

Tenho de servir ao Cristo nos outros para que o Cristo possa acordar em mim – só isso depende de mim, o resto fica para além do meu alcance. . .

Em servindo a alguma creatura simpática corro sempre o perigo de servir, secretamente, ao meu próprio Lúcifer, em vez de servir ao Cristo;

possivelmente, faço cálculos de secreto egoísmo sobre o modo como o meu beneficiado venha a ser um dia o meu benfeitor, ou, pelo menos, se encha de reconhecimento e gratidão por mim – tamanha é a perversidade do nosso egoísmo camuflado em altruísmo! Para evitar a possibilidade de futuras decepções e ingratidões, muitas damas aristocráticas preferem adotar cachorrinhos a crianças, porque o ser humano pode, um dia, vir a ser ingrato ou consagrar o seu principal amor a outra pessoa, o que seria doloroso para o secreto egoísmo da sua sentimental benfeitora. O animal, porém, não é ingrato nem infiel.

Albert Schweitzer resolveu dedicar a sua vida ao serviço direto e imediato da parte mais infeliz da humanidade, para que ninguém lho pudesse retribuir, nem sequer avaliar a grandeza do seu sacrifício; assim não havia perigo de que agisse em virtude de algum perverso e bem disfarçado egoísmo; assim não havia nenhum perigo de reconhecimento, de aplausos ou gratidão da parte de seus beneficiados. Enquanto o homem conserva um resquício de espírito interesseiro e mercenário, não realizou o Cristo dentro de si; serve ao Satanás em si, julgando ser o Cristo. Prestar benefícios à humanidade a fim de ver e ouvir o seu nome nos jornais, nas emissoras, na televisão, ou saborear os louvores do alto dos púlpitos, dos lábios dos amigos, ou fulgurar numa placa de mármore ou bronze à entrada de algum templo, figurar em algum "livro de ouro" como exímio benfeitor desta ou daquela obra filantrópica – tudo isso é egoísmo disfarçado em altruísmo, e tanto mais perverso quanto mais camuflado de virtude.

Não há nada que tão seguramente preserve de contágios mórbidos a saúde da nossa alma como esse contato direto com as misérias humanas. Quem tem de suportar diariamente as costumadas brutalidades da sociedade, as ingratidões dos seus beneficiados, dificilmente correrá perigo de cair vítima de orgulhosa autocomplacência ou misticismo doentio. As durezas duma ética sincera e desinteressada são um profilático infalível contra as bactérias do misticismo sentimental.



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