Ave, Cristo!
Versão para cópiaSonhos e aflições
De olhos postos no firmamento que se povoava de constelações, vamos encontrar Basílio, envolvido pelas brisas suaves do rio, falando para os ouvidos de Taciano, admirado:
— A vida para nós ainda representa impenetrável segredo celeste. Não passamos de animálculos que pensam. O poder é uma fantasia na mão do homem, assim como a beleza é um engodo no coração da mulher. Visitei o Egito, em companhia de dois sacerdotes de Amatunte, e ali encontramos variados remanescentes da sabedoria imortal. Estudei minuciosamente, nas pirâmides de Gizé, os problemas da vida e da morte, entrando em cogitações profundas sobre a transmigração das almas. O que aprendemos, em nossos cultos exteriores, é mera sombra da realidade. A truculência política dos últimos séculos prejudicou em toda a parte o serviço da revelação divina. Creio assim que nos abeiramos de tempos novos. O mundo tem fome de fé viva para ser feliz. Não admito estejamos limitados à existência física e o Olimpo há de ampliar-se para responder às nossas aspirações…
— Não acreditas, porventura — interferiu o interlocutor, preocupado —, que nos basta à felicidade coletiva a confiança pura e simples na proteção dos deuses, dentro do culto aos nossos antepassados?
— Sim, sim — considerou o ancião —, simplicidade é também uma das faces do enigma, entretanto, meu caro, no caso do nosso tempo de incomensuráveis desequilíbrios morais, avulta o problema do homem. Não somos bonecos nos tentáculos da fatalidade. Somos almas, usando a vestimenta de carne, em trânsito para uma vida maior. Pesquisei em todas as grandes estradas da fé, nos arquivos da Índia védica, do Egito, da Pérsia e da Grécia e, em todos os instrutores veneráveis, observei a mesma visão da glória eterna a que somos destinados. Tenho de mim para comigo que somos um templo vivo em construção, através de cujos altares se expressará no Infinito a grandeza divina. Nas experiências da Terra, porém, conseguimos edificar tão somente os alicerces do santuário, prosseguindo, além da morte do corpo, na complementação da obra sublime. Nas lutas da existência animal, desenvolvemos as potencialidades do espírito, habilitando-nos a elevação aos pináculos da vida.
E, depois de uma pausa em que parecia refletir quanto aos conceitos que enunciara, ponderou:
— Por isso mesmo, o problema é muitíssimo mais vasto. É indispensável saibamos destacar a dignidade humana, imanente em todas as criaturas. Escravos e senhores são filhos do mesmo Pai.
O amigo que lhe registrava atentamente as palavras, objetou, de chofre:
— Igualdade? isso, porém, viria contrariar a estrutura de nossa organização social. Como nivelar as classes, sem ferir as tradições?
O velho, contudo, sorriu calmo e acentuou:
— Meu filho, não me refiro à igualdade por violência, que viesse enfileirar na mesma categoria bons e maus, justos e injustos. Reporto-me ao imperativo de fraternidade e educação. Compreendo que a vida é semelhante a grande máquina, cujas peças vivas, que somos nós, devem funcionar harmoniosamente. Há quem nasça para determinada tarefa, a distância da nossa, como existe quem veja o caminho comum de maneira diferente dos nossos olhos. Atentos à certeza de que o nosso Espírito pode viver na Terra vezes inumeráveis, modificamos o curso de nosso trabalho, de existência a existência, como o aprendiz de letras primárias evolve, pouco a pouco, para as mais altas expressões de cultura. Não vemos, pois, como nivelar as classes, o que seria impraticável. O esforço pessoal e o mérito resultante são fronteiras naturais entre as almas, aqui e além. A hierarquia existirá sempre como sustentáculo inevitável da ordem. Cada árvore produz, segundo a espécie a que se filia, e cada qual merece mais ou menos estima, segundo a qualidade dessa mesma produção. Substituamos, assim, as palavras “senhores” e “escravos” por “administradores” e “cooperadores” e talvez atinjamos o necessário equilíbrio em nosso entendimento.
Buscando suavizar o diálogo, o ancião fez pequeno intervalo e acrescentou, sorridente:
— Precisamos de mais humanidade para sermos realmente humanos. Não é justo o cativeiro da sensibilidade e da inteligência e, a fim de que o nosso mundo se adapte à perfeição que o espera, é imprescindível tenhamos bastante coragem de raciocinar em termos diversos daqueles que vão regendo a nossa jornada coletiva, de milênios para cá. As condições de luta e aprendizado na Terra alterar-se-ão totalmente quando compreendermos que somos irmãos uns dos outros.
Taciano, na essência, não esposava semelhantes pontos de vista. Nunca pudera ouvir a palavra “fraternidade”, sem revoltar-se. Contudo, menos impulsivo agora, rememorava as conversações que mantivera com o pai, em outro tempo.
Basílio era um autêntico sucessor de Quinto Varro.
Admitiu que o novo amigo estaria igualmente impregnado da mística dos nazarenos, mas detestava ainda o Cristianismo para fazer qualquer pergunta. Para ele, as Divindades Olímpicas deveriam ser obrigatoriamente objeto de exclusiva adoração. Anos antes, teria explodido em considerações rudes e contundentes, mas o sofrimento moral lhe havia alterado o modo de ser e, no fundo, não desejava desfazer tão bela amizade.
Por essa razão, procurou desviar o entendimento e, fixando-o no aspecto filosófico, inquiriu:
— Julgas então que já vivemos outras vida? que já respiramos juntos em outros climas?
O velho bem humorado afirmou, convicto:
— Não tenho qualquer dúvida. E assevero, ainda mais, que ninguém se encontra sem objetivo. A simpatia ou a antipatia não se fazem num minuto. São obras do tempo. A confiança com que nos entendemos, os laços de afeição que nos aproximam, desde ontem, não constituem simples eventualidade. O acaso não existe. Certamente, forças superiores e intangíveis nos reúnem, de novo, para algum trabalho a realizar. Procedemos do passado, assim como o dia de hoje é a continuação do dia de ontem, na sequência das horas. Na Terra, experimentamos e somos experimentados, em marcha constante para outras esferas e, de mundo em mundo, como de degrau a degrau, alcançaremos a gloriosa imortalidade.
As considerações transcendentes de certo iriam longe, mas Lívia e Blandina surgiram, de súbito, e os convidaram, prazenteiras, para um leve repasto de frutas e refrescos.
Os dois amigos aquiesceram, contentes.
Taciano, naquela segunda noite de palestra, mostrava-se mais alegre, mais expansivo.
Reportou-se ao contentamento da filhinha, na expectativa de afeiçoar-se mais intimamente à mestra e comentou os planos que ele mesmo delineara, feliz.
Basílio passaria a residir numa casa próxima da vila Vetúrio, onde o afinador encontraria amplos recursos para instalar-se condignamente com a filha.
Estariam todos, desse modo, em permanente comunhão.
E o entusiasmo, que é sempre o responsável pelos milagres da alegria, materializou o projeto, sem perda de tempo.
Numa semana, verificou-se a desejada alteração.
Pequeno sítio foi alugado para o filósofo, e a primeira manhã de passeio para Taciano, Lívia e Blandina despertou numa admirável festa de luz.
O bosque orvalhado era fartamente percorrido por brisas frescas, que perpassavam pelas flores, carreando-lhes o perfume para longe.
Aves delicadas atitavam e gorjeavam nas árvores esguias e ramalhosas que se mantinham verdes e lindas, como ofertas vivas da terra ao céu sem nuvens.
Enquanto a menina, corada de sol, perseguia, curiosa, um grupo de borboletas, Taciano parou à frente de um ninho cheio de filhotes implumes e, mostrando-o à companheira de excursão, exclamou emocionado:
— Quanta alegria nesta família feliz!
A moça contemplou o quadro, com grande enlevo, e concordou, contente:
— A Natureza é sempre um livro divino.
O patrício fitou-a, com indisfarçável ternura, deixando transparecer os sentimentos indefiníveis que lhe afloravam na alma e considerou:
— Lívia, há momentos em que, por mais se nos fixe a confiança nos deuses, mais se nos torna o coração um labirinto de perguntas sem resposta… Por que motivo um pássaro pode fazer a própria casa em harmonia consigo mesmo e um homem é constrangido a sofrer a influência dos outros, na realização dos menores desejos?!… por que razão corre em paz a corrente de um rio para fundir-se no mar largo, enquanto os dias da alma humana se escoam, atormentados na direção da morte? Haverá mais clemência nas Divindades Imortais para os seres inferiores? Seremos, porventura, consciências caídas no integral esquecimento de si próprias, algemadas à Terra para serviços de purgação?
A jovem, que se conturbara ante a chama afetiva que lhe resplendia no olhar, pronunciou alguns monossílabos, evidenciando o propósito de modificar a conversação, mas Taciano, encorajado com o rubor espontâneo que assomara à face da interlocutora, prosseguiu, carinhosamente:
— Sempre admiti que as tradições familiares devem nortear os nossos sentimentos. Casei-me por isso, em obediência a elas e, dentro delas, formei a pequena família que me segue os passos. Procurei na esposa que os deuses me trouxeram uma irmã para a viagem no mundo. Supunha que o amor, tal como o vemos na existência comum, gerando tantos crimes e tantas complicações, não passasse de mero impulso plebeu das almas menos afeiçoadas à dignidade social. Sinceramente não surpreendi em Helena a amiga que meu espírito aguardava. Tão logo se nos fez mais íntima a experiência em comum, percebi a distância moral em que nos situávamos. Contudo nela encontrei amorosa mãe para minhas filhas e conformei-me.
O moço esboçou amargo sorriso e continuou:
— A vida não foi feita de encomenda para nós, de vez que somos subordinados dela, com o dever de aproveitar-lhe as lições. Cerrei, assim, as portas do ideal e passei a existir, como tantos outros existem, apagando em mim mesmo qualquer despertamento do coração. Agora, porém, que nos vimos, tenho noites mal dormidas… Penso em alguma surpresa da sorte que me faculte a felicidade de aproximar-me de ti, com liberdade bastante para oferecer-te o que tenho… É pouco, bem sei. Mas é o coração inteiro que deseja restaurar-se para ver-te feliz. Tenho imaginado uma vida nossa, essencialmente nossa, a distância deste sítio, onde muitas recordações aflitivas me vergastam a alma…Levaríamos conosco Blandina e teu pai, afastando-nos de tudo o que possa alterar o ritmo de nossa ventura. Mas seria justo imaginar um plano tão arrojado sem ouvir-te?
O moço fitou-a com enternecimento, ansioso por verificar-lhe o estado dalma, notando-lhe a ternura nos olhos marejados de lágrimas que não chegavam a cair.
— Conhecemo-nos, há alguns dias — prosseguiu o moço romano, sensibilizado —, entretanto, guardo a impressão de que somos velhos amigos… Minha esposa e a primogênita, que se afinam imensamente uma com a outra, demorar-se-ão largo tempo em Roma… Não desejo acusá-las de ingratidão, mas tenho razões para supor que ambas não registrariam, por muito tempo, a ausência de Blandina e a minha própria ausência… Somos, em casa, duas pessoas colocadas à margem… Tenho refletido, pois, na possibilidade de uma renovação… Não julgas possível a nossa felicidade em outra parte? Abandonaríamos as Gálias e procuraríamos uma terra diferente, na Ásia ou na África…
Relanceando o olhar pelo arvoredo farto, continuou:
— Esta herdade, não obstante a beleza de que se reveste, é o túmulo das mais belas esperanças de minha mocidade…Um sopro de morte aqui me transformou o destino… Há momentos em que desejaria incendiar os bosques, destruir as plantações, derrubar o palácio e dispersar os servos para arrancar um novo mundo de minha própria solidão, todavia, quem, por mais poderoso, fará realmente o que deseja?
Contemplou a filha adotiva do filósofo, com intraduzível esperança a fluir-lhe do olhar, e tomando-lhe, de leve, a destra, rogou:
— Que me dizes de tantas e tão amargurosas confidências?
Lívia, que a ruborização do rosto fizera mais singular e mais linda, respondeu com tristeza e simplicidade:
— Taciano, meu pai costuma dizer que as almas capazes de tecerem a perfeita ventura conjugal habitualmente se encontram tarde demais. Quando não são surpreendidas pela morte que as separa em plena alegria, são detidas por insolúveis compromissos que lhes inibem a aproximação…
— Meu casamento não é obstáculo intransponível — atalhou o moço, algo perturbado — Helena desvencilhar-se-ia de mim, como quem se livrasse de um fardo.
A moça, contudo, embora serena, acentuou com amargura:
— O grilhão não pesa, entretanto, somente numa das conchas da balança. Eu também sou casada…
O interlocutor sentiu que uma onda de frio lhe gelava o coração, mas permaneceu firme, à escuta.
— Quando meu pai se referiu aos dissabores que nos defrontaram em Massília, reportava-se ao meu inquietante problema pessoal.
A moça fez pequena pausa, dando a ideia de quem acordava a memória, e prosseguiu:
— Há quase dois anos, houve em Massília uma festa ostentosa, em homenagem ao patrício Aulo Sérgio Tuliano, de passagem pela cidade. Instado por amigos, meu pai permitiu que eu me incumbisse de vários números musicais na noite de maior regozijo público. Nessa ocasião, conheci Marcelo Volusiano, um moço que, de imediato, se interessou por minha companhia e que, em poucos meses, se fez meu esposo. Meu pai sempre alegou a necessidade de conhecer-lhe os antecedentes, antes de formular a sua aprovação ao matrimônio, todavia, sentindo-se idoso e enfermo, procurou satisfazer aos meus anseios de moça, porquanto eu não alimentava qualquer dúvida quanto à correção do rapaz que me despertara para as alegrias do amor. Ele asseverava proceder de nobre família, com recursos suficientes para garantir-se em variados negócios e aparentava tanta prosperidade financeira que não vacilei em aceitar como verdade pura as informações com que se nos fazia conhecer. Marcelo, porém, logo após o matrimônio, mostrou-se irresponsável e cruel. Desapareceram dele os modos aristocráticos do amigo de Aulo Sérgio. Além de tirano bem posto, era um jogador impenitente do anfiteatro, mergulhado em atividades escusas. A princípio, meu pai e eu tudo fizemos por subtrair-lhe o vício que o subjugava e, para alcançar esse fim, não hesitei em trabalhar como harpista em festas pagas, acreditando cooperar com ele na solução de débitos numerosos, contudo, cedo reconheci que ele me usava os dotes artísticos para atrair relações importantes, junto das quais obtinha vultosas aventuras financeiras, cuja extensão nunca pude conhecer.
A moça suspirou, magoada pelas dolorosas reminiscências, e prosseguiu:
— Se o problema estivesse limitado aos desgostos de ordem material, provavelmente ainda nos achássemos em Massília, tentando o reajuste. Marcelo entretanto, apesar de minha dedicação afetiva, em seis meses de convivência parecia entediado de meu carinho, e, apaixonando-se por Sublícia Marcina, inteligente poetisa e bailarina de renome, passou a viver em companhia dela, sem abandonar a nossa casa. Tantos espetáculos deprimentes presenciamos que meu pai deliberou a nossa transferência para cá, buscando a nossa renovação…
— E qual é a tua atitude, à frente do patife que assim procedeu? — atalhou Taciano, sob forte impulsividade.
— Como toda mulher — esclareceu Lívia, cuja profundez filosófica, aliada à frescura juvenil, tornava admirável naquela hora —, sofri muito, a princípio, mas, com o auxílio do Céu, o meu ciúme acabou em piedade. Julgo Marcelo demasiadamente infeliz para condená-lo. Não creio possa ele desfrutar a tranquilidade de uma vida digna.
Taciano fitou-a com admiração e pesar e considerou, afetuoso:
— Por que razão pensas desse modo? Não é comum semelhante atitude numa jovem que ainda não alcançou os vinte anos!… Acaso, não serás tão mulher quanto as outras?
Lívia, porém, sorriu algo triste e observou:
— Não tive mãe que me quisesse. Devo a minha compreensão ao pai que me acolheu! Desde cedo, habituei-me a acompanhá-lo nas digreções filosóficas e a interpretar a vida, segundo as realidades que o mundo nos oferece. Na época em que quase todas as meninas estão perturbadas pela ilusão, fui conduzida à responsabilidade e ao trabalho. Em Massília, tudo nos custou caro ao esforço pessoal e, por isso, aprendi que não atingiremos a paz sem desculpar os erros alheios que, em outras circunstâncias, poderiam ser nossos…
— Não sentes, então, saudades do homem que amaste? não lhe disputarias a posse?
— Porquê? — indagou a interlocutora, serena. — As saudades que eu possa experimentar não devem impedir o Céu de mostrar-me o melhor caminho. Bom seria se eu pudesse partilhar a felicidade com meu esposo, entretanto, se esse convívio me constrangesse a cometer um crime, em desacordo com a retidão de minha consciência, não será mais justo o benefício da ausência? Quanto a disputar atenções e carinhos de outrem, não creio seja o amor objeto de leilão. O afeto, a confiança e a ternura, a meu ver, devem ser tão espontâneos quanto as águas cristalinas de um manancial.
— Não acreditas, porém, na sobrevivência da felicidade noutros moldes? — E, baixando o tom de voz, que se fizera mais doce, o marido de Helena perguntou: — Não admites a nossa capacidade de construir novo ninho, em novo campo de compreensão e ventura?
Lívia, extremamente enrubescida, lançou-lhe inesquecível olhar e concordou:
— Sim, creio! Sinto em tua dedicação nobre e calma uma praia linda e segura, capaz de proteger o barco de meu destino contra todos os vendavais. Amo-te muito! Descobri esta verdade, logo que nos vimos pela primeira vez! Compreendo, agora, que Marcelo me trouxe os encantamentos da menina, ao passo que, em tua companhia, assinalo em mim os anseios da mulher… A nenhuma glória feminina poderia eu aspirar mais alta que a de compartir de teus sentimentos, entretanto, não mais nos pertencemos…
Anotando-lhe a última frase, marcada de desapontamento e amargura, o filho de Varro interrompeu-lhe a palavra, considerando, impulsivo:
— Se me queres e se eu te quero tanto, porque nos prendermos aos que nos desprezam? Renovaremos a própria sorte, seremos felizes, teu pai entender-nos-á…
Lívia desatou o pranto de emotividade que lhe dominava o coração, e falou em voz entrecortada:
— Possuis, ligada ao teu nome, a esposa que te premiou com duas filhinhas…
— Minha esposa? — ponderou o interlocutor, inquieto — e se eu te dissesse que ela não encontrou em mim o homem que esperava? e se eu te afirmasse, com provas inequívocas, que ela se consagrou a outra espécie de amor?
A moça suspirou, aflita, e comentou:
— Não duvido de teus informes, contudo, o tempo e o espírito de sacrifício podem modificar a situação…
E, indicando a menina que brincava, distante, acrescentou com firmeza:
— Blandina é também um amor que confia em nós. Se adotássemos uma conduta igual à daqueles que nos ferem, talvez lhe envenenássemos irremediavelmente o coração. De que nos valeria arrebatá-la aos braços maternos? Estaria presa, em espírito, a estas árvores da sua primeira infância… A separação lhe faria ver uma heroína inolvidável na mãezinha que lançaríamos com o nosso gesto ao menosprezo, e a devoção que desejaríamos dela receber, pura e simples, provavelmente estaria transformada em desconfiança e dor… Se algum dia deve provar o fel da verdade, que o cálice de angústia lhe seja imposto por outras mãos…
Taciano fitou a pequena, de longe, e calou-se, de voz embargada pela comoção.
— Estaremos juntos! — esclareceu a moça, reanimando-o — o amor, acima de tudo, é entendimento, carinho, comunhão, confiança, manifestação da alma que pode perdurar sem qualquer compromisso de ordem material… Encontrar-nos-emos em Blandina, que será nosso ponto de referência afetiva. Os dias passarão sobre nós como vagas de beleza e esperança e… quem sabe o futuro? Talvez o tempo…
Antes, porém, que pudesse terminar a frase, a menina alcançou-os, com belo sorriso, a oferecer-lhes soberbo ramo de gerânios encarnados.
O genitor refugiou-se no silêncio e a pequenina dominou a conversação, contando graciosas aventuras.
Daí a instantes, o trio retomava o caminho de volta.
No átrio da modesta casa que passara a habitar, Basílio aguardava-os com visíveis sinais de impaciência.
Em reduzidas palavras deu conta da preocupação que o afligia.
Marcelo aparecera, inesperadamente.
Lívia empalideceu e tentou, com delicadeza, evitar um encontro entre os dois homens; todavia, Taciano, de semblante nublado, resolveu entrar e conhecê-lo, de perto.
O rapaz, que se abeirava dos trinta anos, era alto, de compleição elegante, mostrando formosa cabeleira a emoldurar-lhe os olhos móveis na fisionomia enigmática.
Abraçou a esposa, com alegria, como se nada houvesse acontecido de grave entre os dois, e saudou Taciano, efusivamente, chegando a desconcertá-lo. Parecia até satisfeito em observar a mulher, em companhia de um amigo novo, como quem se aliviava de um fardo na consciência.
Em minutos, relacionou o objetivo da viagem que o trazia.
Viera a Lião, acompanhando alguns cantores de renome que se destinavam a grandes exibições artísticas.
Entretanto — acrescentava ele, talvez para prevenir indiretamente a esposa —, não podia demorar-se.
Diversos companheiros aguardavam-lhe o regresso em Viena. Uma bela festa em casa de Tito Fúlvio, abastado patrício de suas relações, compelia-o a retorno imediato.
O pai de Blandina percebeu no recém-chegado um espírito inteiramente diverso da família a que se afeiçoara.
Marcelo era turbulento, exibicionista, palrador.
Dava a ideia de um menino inteligente a brincar de viver. Não apresentava, no verbo fácil, qualquer frase que denotasse madureza de raciocínio.
Trazia a mente apaixonada pelos assuntos do anfiteatro, do qual era frequentador inveterado. Sabia o número de feras enclausuradas nas jaulas de Massília, quantos gladiadores podiam ali brilhar na arena e quantas bailarinas viviam na cidade, dignas do aplauso público, mas ignorava o nome de quem governava a próspera Gália Narbonense onde vivia, e desconhecia completamente as suas indústrias e tradições.
Taciano, que o escutava, a princípio, com disfarçado rancor, depressa lhe reconheceu a fatuidade e passou a examiná-lo com mais calma e menos severidade.
No fundo, porém, sentia-se aborrecido.
Aquele visitante inesperado era um trambolho no caminho. Se pudesse, exilá-lo-ia no fim do mundo.
A ideia de liquidá-lo em alguma emboscada bem feita agitou-lhe o pensamento, contudo, não nascera com a vocação de assassino e, por isso, expulsou a tentação que se lhe insinuava na cabeça.
Não vacilaria, porém, na mobilização de todos os recursos para afastá-lo.
Enquanto Marcelo se detinha, loquaz, na descrição das próprias bravatas, o filho de Varro refletia sobre a melhor maneira de empenhar amigos no afastamento do intruso.
Absolutamente distanciado da conversação, imaginava como desterrar o marido de Lívia para algum ponto remoto.
Não lhe suportaria a presença.
Remove-lo-ia a qualquer preço.
Foi quando o próprio Marcelo lhe ofereceu o ensejo desejado, exprimindo o propósito de voltar a Roma.
Sentia-se asfixiado por dificuldades financeiras.
Só a grande metrópole lhe facultaria lucro fácil, à altura de sua expectativa.
Taciano surpreendeu a brecha que buscava.
Mostrou radiante expressão no rosto e esclareceu que podia apresentá-lo a Cláudio Lício, sobrinho do velho Eustásio que a morte já havia levado, e que, em Roma, se fizera acatado na organização e direção de jogos no circo. Crescera em Lião, de onde partira demandando aventuras coroadas de êxito, e fizera-se benquisto de muitos políticos que lhe não negariam cooperação e favor. Marcelo, decerto, encontraria excelente colocação para os seus dotes intelectuais, orientando artistas diversos.
Havia tanta segurança na palavra do novo amigo que o genro de Basílio, entusiasmado, lhe aceitou a proposta sem hesitar.
Expressiva mensagem foi escrita.
O filho de Quinto Varro pedia ao companheiro de mocidade ocupasse o recomendado em algum encargo rendoso e condigno.
Lida a carta, Marcelo prorrompeu em bombásticos agradecimentos e, sem qualquer consideração para com a mulher e para com o sogro, decidiu a viagem para Viena no mesmo dia. Prometeu tornar, em breve, a fim de combinar com os familiares quanto ao futuro. Referiu-se às virtudes da companheira, como se devesse alimentar-lhe o carinho à custa de elogios e reafirmou ao velho mil protestos de amizade e admiração.
E à feição de um pássaro inquieto, feliz por ver-se livre, despediu-se, ruidosamente, descendo com outros amigos para a cidade próxima.
Começou, então, para a vila Vetúrio formoso período de harmonia e restauração.
Três noites por semana, o palácio era abrilhantado com música primorosa e conversação sadia. Enquanto Lívia e Blandina cantavam ao som de harpas e alaúdes, Taciano e Basílio comentavam Hermes e Pitágoras, Vergílio e Ulpiano, em preciosos torneios de inteligência.
Semanas e semanas de felicidade corriam, céleres, quando Teódulo regressou à herdade, trazendo notícias.
Helena dirigia ao esposo longa carta, comunicando-lhe a determinação de permanecer em Roma, por alguns meses, não só para satisfazer ao genitor doente, como também para solucionar o problema da filha. Galba, fatigado de prazeres, parecia disposto a desposar Lucila. Era simples questão de tempo.
Taciano não prestou maior atenção ao assunto e passou a dispensar ao preposto de Opílio glacial tratamento.
Teódulo percebeu-lhe a frieza e jurou vingar-se.
Astuto e malicioso, compreendeu que entre o marido de Helena e a filha de Basílio existiam os mais entranhados laços de afeto e imaginou-lhes as relações mais íntimas, segundo os pensamentos escuros de que se alimentava.
Absteve-se de qualquer visita pessoal ao filósofo, mas, ciente de que o velho e a jovem se ausentavam de casa, uma noite por semana, com destino ignorado, acompanhou-os, sutilmente, certa feita, vindo a saber que ambos eram cristãos, frequentando, discretamente, o culto detestado. Guardou segredo e entrou em regime de grande reserva e não menor isolamento, apenas comunicando a Taciano que trazia ordens de Vetúrio para viajar entre Lião e Roma, enquanto Helena estivesse no domicílio paterno, tantas vezes quantas se fizessem necessárias.
A vida prosseguia sem surpresa e sem saltos.
O filho de Varro, novamente feliz, não suspeitava que a dor lhe sitiava o destino, com dureza implacável.
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João 3:7
Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo.
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João 14:2
Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito: vou preparar-vos lugar.
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Marcos 9:43
E, se a tua mão te escandalizar, corta-a: melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga;
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