Ave, Cristo!

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Capítulo IV

Sacrifício


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Em Lião, mantinha-se a paz inalterável.

A ausência de Helena perdurava, por mais de doze meses, todavia, Taciano, com surpresa para ele próprio, sentia-se bem disposto, feliz.

Acontecimentos expressivos haviam modificado a face do Império.

Décio morrera e o cetro imperial fora empunhado por Galo, que passou a governar o mundo romano com deploráveis espetáculos de inconsciência e devassidão. Orientadores e magistrados, guerreiros e políticos pareciam dominados pela decadência moral, a estender-se, arrasadora.


Terrível epidemia começara a lavrar em todas as províncias.

A peste surgira numa festa em Neocesareia e por toda a parte clamava-se que a doença maligna era fruto da feitiçaria cristã.

Sacerdotes das divindades olímpicas, valendo-se do ensejo, procuravam firmar a superstição, espalhando a notícia de que os deuses flagelavam o povo, combatendo a mistificação nazarena, a alastrar-se, invariável.

Em razão disso, as preces coletivas eram alimentadas nos santuários, dia e noite. Templos numerosos descerravam-se à caridade, acolhendo os enfermos e os agonizantes.

Sacerdotes de , de e de reuniam-se em orações, implorando a assistência e o socorro de , em cujos altares os galos e as serpentes se multiplicavam para os sacrifícios votivos.


Contudo, ao lado da unificação dos cultos e dos crentes, em torno do deus da Medicina, o ódio ao Cristianismo recrudescera.

Edifícios piedosos voltavam a sofrer lapidações e incêndios. Os seguidores de Jesus com mais rigor, eram apedrejados, presos, banidos ou exterminados sem compaixão.

Taciano, que jamais se modificara espiritualmente, embora emudecesse quanto ao Evangelho, em homenagem à memória do pai, no íntimo considerava justo o novo movimento de repressão.

Ignorando deliberadamente o que ocorria fora dos muros domésticos, apesar de o filósofo e a filha ocultarem o coração sangrando de dor, dividia a alma entre a filhinha e os dois amigos, considerando-se o mais feliz dos mortais.

Sentindo-se reviver, parecia buscar no amor, plenamente vivido em espírito, abençoada fonte de energia e revigoramento.


Refletia sobre a conveniência de a esposa demorar-se indefinidamente, em Roma, para a garantia da felicidade de ambos, quando Teódulo chegou da cidade imperial, com visíveis demonstrações de ansiedade, trazendo-lhe a carta em que a companheira lhe suplicava a presença imediata.

Helena parecia vazar todo o coração na longa missiva.

Notificava-lhe que, não obstante desejosa de voltar a casa, lutava com a ingrata moléstia da primogênita que os médicos acreditavam na vizinhança do túmulo. Lucila piorava, dia a dia. Implorava-lhe, por isso, lhe fosse ao encontro, levando Blandina. Descrevia, comovedoramente, os lances críticos de sua preocupação maternal. Desvelava-se, sozinha. Galba, o tio e noivo, permanecia na Campânia atendendo a interesses particulares, e Anacleta padecia inevitável esgotamento. O próprio Vetúrio, exausto e abatido, rogava-lhe esquecer quaisquer dissabores do pretérito, de vez que o aguardava, não como sogro e sim como pai, de braços abertos.


Taciano sentia-se excessivamente distanciado de Helena e Vetúrio para chorar por eles, entretanto, a perspectiva de perder a filha enferma doía-lhe ao coração.

Lágrimas visitaram-lhe os olhos, enquanto meditava naquela primeira flor dos seus ideais de paternidade.

Que fizera ele, genitor responsável pela jovem prestes a morrer? Lucila crescera, absorvida pelos caprichos maternos. Efetivamente, nunca se dispusera ele a devotar-lhe maior atenção.

Não seria razoável compensá-la, agora, com algum carinho?

Todavia, repugnava-lhe a expectativa de qualquer reencontro com o sogro e a volta de Helena não lhe infundia o mínimo prazer.

Debalde, Teódulo lhe aguardou a palavra.

Depois de prolongada espera, observou, desapontado:

— Trago notícias pouco lisonjeiras da jovem Lucila e…

— Já sei — interrompeu Taciano, secamente.


O agente de Opílio rodou sobre os calcanhares e afastou-se, enquanto o interlocutor demandava o seu gabinete particular, aí meditando largos minutos, sem encontrar uma solução para o enigma que o atormentava.

Ao crepúsculo, em companhia da filhinha, buscou a casa do afinador para mais detido exame do assunto.

A carta foi lida carinhosamente.

Lívia empalideceu, mas procurou dominar-se contra qualquer emotividade menos construtiva.

A mensagem de Roma conturbara-lhe a alma.

Aquelas palavras da senhora distante lhe impunham a dolorosa convicção de que a afetividade de Taciano não lhe poderia pertencer. Inopinada amargura, qual se fora avisada de infortúnio próximo, lhe tomou o mundo íntimo. Quis chorar convulsivamente, contudo, a serenidade paterna e a segura polidez do homem amado lhe impunham equilíbrio.


Taciano comentava, por alto as dificuldades que experimentava para reaproximar-se do sogro…

Além disso, desde a mocidade não revia a metrópole e gostaria de lá não voltar.

Não seria mais aconselhável desatender ao chamado?

Que adiantaria a presença dele, junto da filha enferma, se Opílio, fartamente endinheirado, poderia rodeá-la de médicos, enfermeiros e servidores?

Blandina escutava a exposição, sob evidente contrariedade, agarrada ao colo da preceptora entristecida.


O ancião, porém, assinalava-lhe a palavra, com paternal ternura.

Percebendo-lhe a incerteza e instado a pronunciar-se, aconselhou, calmo:

— Mas filho, existem obrigações centrais, no campo dos deveres comuns de nossa vida. Aquelas que se referem à paternidade são de aspecto essencial e inadiável. Não hesites. Se o velho sogro te ofendeu os brios de homem, desculpa e esquece. Aos mais moços cabe entender os mais velhos e ampará-los. Desejo ardentemente que o Céu nos favoreça com a cura de tua filhinha, mas se a morte a recolhe, sem o apoio de teu carinho pessoal e direto, não te julgues livre da sombra do remorso que te acompanhará por verdugo sutil.


O patrício não respondeu, mergulhado nas reflexões que lhe possuíam a alma indecisa.

Lívia, contudo, tentou fortalecer-lhe a desistência da viagem, opinando:

— Mas, papai, imaginemos que Taciano está inspirado por forças de ordem superior, suponhamos que, efetivamente, não deva ir… Não será mais justo confiá-lo à própria intuição? Se ele fosse surpreendido por algum desastre em viagem? se adquirisse a peste sem necessidade?

O velho abanou a cabeça e ponderou:

— Filha, em matéria de bem fazer, penso que nos compete seguir até ao fim. Ainda que o mal nos estraçalhe, ainda que a ignorância nos atraiçoe, admito que o dever nos reclama o esforço pessoal nas mínimas fases de nossa vida. Taciano tem uma filha doente que a própria mãezinha nos afirma avizinhar-se da morte. Ambas lhe suplicam assistência. Que direito lhe assiste para esquivar-se?

Dentro da experiência que os anos lhe haviam conferido ao coração, Basílio aduziu, depois de breve pausa:

— Se fosses tu a esposa atormentada pela aflição, desculpar-lhe-ias a ausência?


A moça desistiu de argumentar, mas Blandina, imprimindo bom humor à cena íntima, interferiu, perguntando:

— Papai, porque não levar vovô Basílio e Lívia conosco? não poderíamos viajar os quatro, juntos?

O ancião afagou-lhe os cabelos aveludados e escuros e observou alegre:

— Não Blandina! Uma viagem longa não pode ser acontecimento para todos. Ficaremos à espera. Quando voltares, teremos novas músicas. É possível regresses trazendo uma harpa nova. Naturalmente, a mãezinha verá o teu progresso artístico e compensar-te-á o esforço com moderno instrumento… Quem sabe?

A menina sorriu, orgulhosa.

Doces melodias rendilharam os sonhos daquelas quatro almas afins, que jamais se separariam, obedecendo à vontade própria.


Taciano pediu a Lívia que cantasse o que lhes havia ensejado o primeiro encontro e a moça atendeu-lhe ao desejo, repetindo a canção, com emotividade e beleza.

Pairava no ar uma sensação de encantamento a misturar-se, porém, de infinita amargura…

Com exceção de Blandina, cujo riso fácil lhe denunciava a despreocupação infantil, os demais pareciam interessados em afivelar ao rosto a máscara de uma tranquilidade em absoluto desacordo com os aflitivos presságios que lhes invadiam os corações.

O genro de Vetúrio nunca se mostrara tão sensível ao despedir-se.

Prometeu a Lívia o retorno, rápido.

Não se demoraria.

Já que a jornada se impunha, inadiável, partiria, no dia seguinte, com o propósito de satisfazer apenas às obrigações estritamente necessárias.

Que ela não temesse. Pretendia estudar com a esposa uma separação honrosa. Ainda que não pudessem desfrutar, Lívia e ele, da ventura nupcial, desejava consagrar-se ao bem estar dela e de Basílio, a quem estimava como pai.

Um sítio aprazível nas vizinhanças era o ideal do momento.


Estava convencido de que Helena, tão logo se realizasse o consórcio de Lucila, caso a doente conseguisse recuperar-se, preferiria o mundo romano, em companhia de Teódulo, de vez que ele, Taciano achava-se decidido a modificar a própria situação em família.

Restituiria, então, a propriedade ao sogro e transferir-se-ia com Blandina para algum recanto em que pudessem viver todos juntos.

Sentia-se moço, robusto.

Podia trabalhar com mais intensidade.

Nunca perdera a brilhante forma física, em razão dos exercícios a que se devotava com escravos de sua casa, alguns deles excelentes gladiadores.

Porque recear o futuro, quando tudo lhe favorecia os desejos?

Enquanto Lívia lhe assinalava os planos, desalentada, Blandina seguia a conversação, de olhos fulgurantes, acreditando que nenhuma força conseguiria contrariar as afirmações paternas.

Abraços e votos afetuosos foram trocados.

Contudo, quando Lívia notou que o vulto de Taciano, enlaçado à filhinha, se perdia nas sombras do arvoredo próximo, deixou que lágrimas quentes e abundantes lhe inundassem os olhos… Incoercível angústia lhe asfixiava o coração, como se estivesse condenada a distanciar-se deles para sempre, de modo a não vê-los, nunca mais…


Dias passaram, entre saudades e esperanças, na florida casinha de Lião, quando, com imensa surpresa para a Vila Vetúrio, Helena chegou, em companhia da filha e do irmão, fazendo-se ainda acompanhar por Anacleta e por reduzido séquito de servidores.

Lucila estava em plena convalescença. Galba, o noivo amadurecido, rodeava-a de atenções.

No lar de Basílio, o inesperado acontecimento foi acolhido com grande estranheza.

A senhora atingira a cidade, na comitiva de Otávio Egnácio Valeriano e de sua esposa Clímene Augusta, que se demorariam nas Gálias, em missão oficial.

Valeriano era um soldado valente e astucioso, que se havia distinguido na Mésia, onde perdera quatro dedos, em combate com os godos. Vinha, na condição de legado especial, com o fim de inspecionar a cidade e libertá-la de elementos subversivos.


O governo de Treboniano Galo espalhara enviados dessa natureza em muitas direções.

As localidades mais importantes das Gálias suportavam-lhes a presença.

Chegavam, cercados pela bajulice dos maiorais que lhes prodigalizavam dádivas particulares em troca de favores políticos, começando por festas espetaculares e acabando por deploráveis extorsões. Empreendiam longos inquéritos, a pretexto de joeirar o Império contra infiltrações revolucionárias, conservando, porém, o objetivo oculto de perseguir cristãos e despojá-los de suas pequenas ou grandes economias.

Os filhos do Evangelho eram então duramente provados na fé. Muitos que ainda se afeiçoavam aos próprios haveres abandonavam a Boa Nova, pagando elevadas quotas à salvação e transferindo-se de moradia, mas os menos favorecidos da sorte ou os que se reafirmavam na confiança em Jesus rendiam-se à morte ou ao cárcere, com a desistência de toda a propriedade particular.

Um embaixador dessa espécie, portanto passava a ser admiravelmente quinhoado por largos recursos, locupletando-se com o dinheiro que recebia para acusar ou exilar, para condenar ou silenciar, fazendo-se, destarte, o centro natural do ódio e da intriga, da perversidade e da delação.


Galo elegera esse meio para ajudar, inescrupulosamente, os companheiros de campanha militar, considerando que em Roma os cofres exaustos não ofereciam quaisquer perspectivas de presa fácil. A sociedade lugdunense percebia isso e, receando complicações com o imperador, acorria em massa, a fim de louvar-lhe o representante.

Vários dias de festa solenizaram-lhe a chegada, e Helena, que soubera atrair a intimidade de Clímene, durante a viagem, foi a primeira dama da cidade que ofereceu rico banquete ao ilustre casal.

Os salões da aristocrática residência abriram-se, luminosos, como no passado, assinalando imenso êxito.

Basílio, preocupado, não sabia como explicar a si mesmo as ocorrências em curso.

Por que motivo a esposa de Taciano escrevera uma carta que parecia desmentida pelos acontecimentos?

O ancião e a filha debalde pesquisaram a chave do enigma.


Relegados à margem, desde que Blandina e o pai se haviam ausentado, não fugiram ao culto da gentileza, e, terminadas as festividades do palácio, tentaram uma visita respeitosa e cordial à senhora, que recusou recebê-los.

Teódulo um tanto desconcertado, apresentou escusas em nome de Helena, comunicando que procuraria pai e filha, no dia imediato, para entendimento particular.

O afinador e a moça regressaram, intrigados, sob inquietante decepção.

Que teriam praticado para merecer tamanho desapreço?

A genitora de Blandina sempre fora lembrada entre eles como pessoa digna da mais alta consideração. Nunca lhe haviam ferido o nome, nem mesmo em pensamento.

Por que razão lhes impunha tão incompreensível hostilidade?


Na manhã seguinte, porém, o filósofo e a filha foram ainda mais dolorosamente surpreendidos.

O intendente de Opílio veio ao encontro deles e exibiu a documentação da dívida comprada, alegando que os Carlos eram aparentados com a família Vetúrio e que Helena, ciente de que a pequena Blandina tomava lições em casa do afinador, não vacilara em pagar o enorme débito, atendendo a reclamações de familiares, exigindo, contudo, urgente reembolso.

Basílio empalideceu.

Aquilo era um convite à subserviência ou uma proclamação de cativeiro.

Em que lhe valiam, agora, as lutas de uma existência tão longa? porque vivera tantos anos, julgando-se livre, até à suprema dedicação pela filha que o Céu lhe confiara, a fim de encontrar à beira do sepulcro o fantasma da escravidão?

Nevara-se-lhe a cabeça, buscando na consciência reta o melhor meio de equilibrar-se com o mundo e com a vida.


Sofrera inúmeras privações e dificuldades no percurso da extensa peregrinação terrena, mas nenhuma assim tão angustiosa como a daquela hora em que se presumia a cavaleiro de qualquer humilhação.

Compreendeu tudo.

A senhora devia odiar-lhes a presença.

Provavelmente, soubera em Roma que Taciano e a filhinha se lhes haviam afeiçoado ao lar humilde e considerava-se talvez furtada em seus afetos.

Levou a destra ao coração descompassado, enquanto as lágrimas lhe corriam em fio sobre as grossas rugas.


Lívia percebeu-lhe a aflição e correu a ampará-lo.

O velho abraçou-a, em silêncio, e, depois, com humildade, suplicou a Teódulo a concessão de algum tempo.

Desejava aguardar o regresso de Taciano para entender-se com ele, relativamente à questão.

O enviado de Helena, no entanto, mostrou-se inflexível.

O problema não poderia ser adiado além de uma semana. Determinado portador retornaria à metrópole imperial, conduzindo o dinheiro que Opílio Vetúrio desembolsara.

O ancião, confundido, insistiu para que a genitora de Blandina lhe concedesse a graça de uma audiência, mas o administrador dissipou-lhe a esperança.

Helena não desceria a qualquer entendimento com plebeus, servos ou devedores.


Sem saber o que fazer, Basílio declarou, por fim, que visitaria alguns amigos prestigiosos com o objetivo de estudar a inesperada exigência, prometendo uma solução tão apressada quanto lhe fosse possível.

A sós com a filha, examinou, angustiado, o problema que o destino lhe propunha.

Reconhecia-se extenuado.

Jamais obteria recursos compatíveis com a necessidade do resgate.

Por mais buscasse a moça consolá-lo com observações de carinho e encorajamento, não conseguia subtrair-se ao abatimento que o dominava.


Convicto de que os únicos benfeitores, capazes de auxiliá-lo na travessia do obstáculo, seriam os companheiros da atividade cristã, na noite do mesmo dia procurou a singela residência de Lucano Vestino, antigo presbítero refugiado num casebre onde se reuniria uma assembleia de oração.

Basílio e a jovem não imaginavam, sequer, que Teódulo os seguia, às ocultas. Localizando o pardieiro em que os cristãos se congregavam, o intendente tornou à herdade, arquitetando planos para iniciar a devassa.

A reunião evangélica, no domicílio de Vestino, caracterizava-se por indefiníveis apreensões.

Apenas vinte companheiros participavam do culto.

Muitas famílias, aparentemente devotadas ao Evangelho, haviam fugido, temendo a presença de Valeriano.


A igreja de Lião, tantas vezes amargamente provada, conhecia a extensão da violência romana.

Entre os prosélitos que não haviam desertado, começaram a surgir manifestações de apostasia.

Em razão disso, somente os espíritos bastante valorosos na fé animavam-se a enfrentar a nova perseguição que se esboçava, infalível.

Vestino, tomando a palavra, formulou sentida prece e leu, nos apontamentos sagrados, a excelsa recomendação do Senhor: — “Não se turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim.”


Meditando o versículo, ergueu a voz e comentou, inflamado de confiança:

— Meus amigos, acreditamos que a hora é das mais significativas para a nossa família espiritual.

Simpatizantes de nossa causa, funcionários do Governo, avisam-nos que a opressão romperá, cruel.

Nossa fé, tantas vezes selada com o sangue dos nossos antepassados, provavelmente nos reclamará o testemunho de sacrifício!

Olhemos para a vida de mais alto!


Quando o Mestre nos convidou à fortaleza, prevenia-nos quanto às atribulações que nos sitiariam no tempo.

Os filhos da ignorância e os devotos das divindades sanguinárias, que aceitam oferendas de carne viva, poderão desfrutar o domínio terrestre… Gozarão em carros de ouro e púrpura, embriagados de prazer, à maneira de loucos que se regozijassem, inconscientes, sobre cadáveres amontoados, para despertarem, mais tarde, sob o látego ardente da verdade, que os espreita na morte.

Mas nós, os servidores convidados a lavrar, com o Senhor, o empedrado solo da miséria humana, poderíamos acaso, aguardar o descanso?


Desde o dia em que se levantou a cruz no Calvário para o Enviado Celeste, outro caminho de ressurreição não se reservará para nós mesmos.

Até o Cristo, os deuses bárbaros possuíram o mundo. Os templos eram casas de negócio com os gênios infernais. Um pombo sacrificado, um carneiro morto ou as vísceras quentes de um touro constituíam oblações, em troca de favores de ordem material.

Com Jesus, porém, somos chamados a construir o reino glorioso do espírito. O Céu desceu até nós, as algemas que nos encarceravam o raciocínio no círculo estreito da animalidade inferior foram rompidas e a dignidade da alma humana revelou-se, divina, descortinando-nos a sua beleza eterna!


Não admitamos que o Cristianismo esteja na véspera de terminar o apostolado entre as criaturas.

Cristo não encerra exclusividade.

Enquanto houver um gemido de criança desventurada na Terra, a obra do Senhor nos impelirá ao serviço e à renunciação!…

Por isso, enquanto os nossos irmãos mais fracos fogem ao depoimento da realidade e enquanto os menos convictos caem no logro infeliz da descrença e da dúvida, marchemos, destemerosos, na certeza de que o mundo espera por nosso concurso de suor e martírio, a fim de restaurar-se em seus alicerces sublimes…


Por mais de dois séculos, choramos e padecemos.

Nossos pioneiros foram arrancados à família a golpes de traição, calúnia, espancamento e morte.

Somos herdeiros da fé imorredoura de veneráveis apóstolos, que no-la transmitiram com o próprio sangue e com as próprias lágrimas! Porque desmerecer-lhes na confiança, supondo-nos abandonados?

“Não se turbe o vosso coração — disse-nos o Senhor —, credes em Deus, crede também em mim!” (Jo 14:1)

Achamo-nos em paz, porque cremos! o medo não nos aborrece, porque cremos! a vitória espiritual será nossa, porque cremos!…


A inspirada palavra do velho pregador emudecera por longo intervalo.

A acanhada sala parecia repentinamente inflamada de luz e as paredes como se esboroavam aos olhos espirituais de Vestino.

As seis mulheres e os catorze homens presentes contemplaram-se uns aos outros, maravilhados e extáticos. Irmanados num destino comum, experimentavam uma felicidade somente atingível por aqueles que tudo conseguem superar e esquecer por amor a um ideal santificante.


Basílio apertava entre as mãos a pequena destra de Lívia, com o paternal enlevo das grandes afeições que desconhecem a morte.

Junto deles, a viúva Cesídia e as suas filhas Lucina e Prisca entreolharam-se, venturosas.

Hilarino e Marciana, Tibúrcio e Escribônia, dois casais de velhos, que tudo haviam cedido pela causa do Senhor, abraçaram-se, contentes.

Lívia, fitando os semblantes embevecidos que a rodeavam, perdeu o temor que a ameaçara, de princípio. Recordou Taciano e Blandina, os únicos amigos mais íntimos que lhe restavam, registrando soberana tranquilidade no coração.

Como os amava profundamente!


Taciano possuía uma esposa e um lar e Blandina cresceria, naturalmente, para um formoso destino.

Que lhe competia senão resignar-se ante a Vontade de Deus? Não lhe cabia rejubilar-se pelo ensejo de consolar o abnegado pai que a recolhera amorosamente na vida? Não devia sentir-se infinitamente ditosa, por ver-se entre os fiéis seguidores do Cristo, honrada pela oportunidade de provar sua fé?

Fixou a atenção no rosto calmo de Basílio, cujos olhos faiscavam de alegria e esperança…

Nunca o pai adotivo lhe pareceu assim tão belo. Os cabelos brancos como que despediam raios de claridade azulínea.


Refletiu, pela primeira vez, nas aflições e nas lutas que o velho filósofo havia atravessado… imaginou as saudades que, de certo, o acompanhavam, desde a juventude distante, meditou no amor com que ele lhe devotara, a ela que fora abandonada numa charneca ao nascer, e sentiu por aquele homem, curvado pela senectude, um afeto filial mais alto e mais puro, renovado e diferente…

Algo sublimara-se-lhe no espírito.

Instintivamente, retirou a destra das mãos enrugadas que a retinham e abraçou-o com um enternecimento que, até então, lhe era desconhecido.


Sentiu-lhe o pulsar do coração, no peito fatigado, e, beijando-lhe a face, com extrema ternura, falou, baixinho:

— Meu pai!…

Tocado de júbilo misterioso, Basílio deixou cair algumas lágrimas e balbuciou:

— Estás feliz, minha filha?

— Muito feliz…

Ele osculou-lhe os cabelos ondeados e escuros que dourada rede envolvia, e afirmou, ciciante:

— Não se turbe o nosso coração!… os que se amam, em Cristo, moram acima da separação e da morte…


Nesse instante, porém, Vestino ergueu a fisionomia serena, inundada por traços de uma ventura ignorada na Terra, e continuou a falar:

— Nosso recinto permanece gloriosamente visitado pelos mártires que nos antecederam…

E, com a voz quase embargada pelo pranto nascido da alegria em que se lhe desabotoava o coração, prosseguiu:

— Ofuscam-me o olhar com a bendita luz de que se vestem! À frente, entrou Ireneu, o nosso pastor inesquecível, trazendo nas mãos um rolo resplendente… Depois dele, outros amigos espirituais, glorificados no Reino, penetraram nossa porta, com sorrisos de amor!… Vejo-os a todos… Conheço-os, de minha primeira mocidade! São velhos companheiros nossos, trucidados ao tempo dos imperadores Séptimo Severo e Caracala!… Aqui se encontram Ferréolo e Ferrúcio, com radiantes auréolas, a começarem da boca. Lembrando o suplício da língua que lhes foi violentamente arrancada!… Andeolo, o valoroso subdiácono, traz sobre a fronte um diadema formado de quatro estrelas, recordando a flagelação da cabeça, partida em quatro partes pelos soldados… Félix, a quem subtraíram o coração vivo do peito, traz no tórax um astro irradiante! Valentiniana e Dinócrata, as virgens que suportaram pavorosos insultos dos legionários, envergam peplos alvinitentes!… Lourenço, Aurélio e Sofrônio, três rapazes com os quais brinquei em minha infância e que foram varados por espadas de pau, são portadores de palmas liriais!… Outros chegam e nos saúdam, vitoriosos… Ireneu aproxima-se de mim e destaca um dos fragmentos do rolo de luz… Recomenda-me a leitura em voz alta!…


Vestino faz breve pausa e exclama, admirado:

— Ah! é a segunda epístola do apóstolo Paulo aos coríntios!

Com voz entrecortada pela emoção, passou a ler:

— “Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos; trazendo sempre por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus em nosso corpo, para que a sua gloriosa vida se manifeste igualmente em nós…”


Em seguida a certo intervalo, anunciou:

— Comunica-nos o amado orientador que a nossa hora de testemunho está próxima. Pede-nos calma, coragem, fidelidade e amor… Nenhum de nós será lançado ao abandono… Alguns terão a morte adiada, mas todos conheceremos o cálice do sacrifício…

Após ligeira pausa, notificou que os visitantes cantavam um hino de graças, em louvor ao Mestre Amantíssimo.

O pregador permaneceu em longo silêncio, como se se pusesse a escutar a melodia inacessível à percepção dos companheiros.

Torrentes de lágrimas corriam-lhe pela face envelhecida.


Antes de encerrar a reunião memorável, Lucano convidou:

— Meus irmãos, somos pequeno rebanho confiante no Céu!… Muitos de nossos confrades que a fortuna protege retiraram-se da cidade sob o pagamento de valiosas contribuições ao enviado de César. Acredito que raros daqueles que vivem na abastança estarão habilitados à vitória sobre a tormenta próxima… Achamo-nos divididos em grupos de fé, nos bairros pobres, à espera da Bondade Divina… Não possuímos recursos que nos inspirem qualquer convite à preocupação. O Senhor livrou-nos dos inquietantes compromissos com o ouro da Terra… Porque não nos reunirmos diariamente à noite por algum tempo, em nosso santuário de confiança? Este casebre pode ser o nosso reduto de oração e a oração é a única arma que podemos manejar no trato com os nossos perseguidores…


Júbilo geral aplaudiu-lhe a ideia e prece comovedora marcou o término da reunião.

Entendimentos fraternos foram levados a efeito.

Os amigos concordaram entre si.

Regressariam cada noite para o serviço da fé.

Enquanto algumas frutas eram servidas com tigelas de vinho fraco, cada qual relacionava essa ou aquela experiência individual.


Chegada a vez de Basílio, o velho comentou o problema com que se defrontava. Era liberto sob pesado compromisso e devia resgatar, sem detença, a dívida que o afligia.

Entreolharam-se os irmãos, penalizados.

Ninguém ali possuía o dinheiro suficiente para ajudá-lo.

Consultado, Lucano informou que a caixa de socorro achava-se exausta.

As derradeiras disponibilidades haviam desaparecido na véspera com o amparo inadiável a três viúvas necessitadas de assistência.


Vestino, porém, convidou o filósofo e a filha a se demorarem com ele pelo tempo que desejassem.

Na casinha singela cabia muita gente.

O velho, com assentimento da jovem, aquiesceu.

Não confiava em Teódulo e receava algum assalto à dignidade do lar. Junto dos amigos, ainda que sofressem, teriam a vantagem da dor repartida. Lívia não se veria só. As companheiras do grupo fortalecer-lhe-iam o coração.

Prometeram voltar, no dia imediato e, mais confortados, passaram a noite edificados na fé.


Na manhã seguinte, Basílio procurou Teódulo, a fim de penhorar o próprio domicílio.

Refletiu bastante e concluiu que essa seria a medida mais acertada. Se permanecessem retendo a casa, provavelmente seriam vitimados pela violência, de vez que não dispunham de recursos para o resgate, ao passo que, confiando a moradia ao administrador, talvez lhe sossegasse a exigência. Considerando, ainda, a hipótese de serem detidos, em razão do culto a que se devotavam, o lar humilde nada perderia em sua feição mais íntima, porque, em regressando da capital do Império, Taciano teria conhecimento da situação e, decerto, conservar-lhe-ia os manuscritos que lhe constituíam a única riqueza.

O intendente, impassível, ouviu o afinador que lhe falou com humildade.


Pretendia ausentar-se por alguns dias e rogava permissão para deixar, intacta, a residência, como garantia parcial da importância por ele devida a Opílio Vetúrio.

Não olvidaria o compromisso.

Diante da inopinada solicitação, Teódulo, intrigado, pediu ao filósofo alguns momentos de espera.

Não poderia responder sem uma consulta à senhora.

A simplicidade do ancião desarmava-o.

Seria justo desconfiar dele — pensava o astucioso capataz —, mas para onde seguiria Basílio, sem prestígio e sem dinheiro, a não ser para o miserável tugúrio de Lucano Vestino? A petição era formulada sem qualquer intenção oculta, porque o velho não poderia ignorar que ele, Teódulo, possuía elementos para segui-lo à socapa, de modo a descobrir-lhe o paradeiro novo.


Com semelhantes reflexões, procurou Helena, que lhe escutou a notícia, encantada. Não parecia guardar as mesmas apreensões. Mostrava-se, aliás, satisfeita e tranquila.

Ante a perplexidade do amigo, observou, contente e maliciosa:

— Tudo corre, segundo a encomenda. Não te aborreças. O assunto da dívida é o fator de aflição de que necessitávamos para deslocar os intrusos. Se pudermos apanhá-los, como aves desprevenidas, na ilegalidade, tanto melhor. Presos e executados como cristãos, desaparecem do caminho de Taciano e de Blandina, sem qualquer preocupação de vulto para nós. Meu esposo odeia os nazarenos. Informado de que os amigos se retiraram constrangidos pelo expurgo, ainda que sofra, saberá reprimir-se.


Teódulo sorridente indagou, admirado:

— E a casa? recebe-la-emos, então?

— Sem dúvida — respondeu a senhora, resolutamente —, é o próprio Basílio quem no-la oferece. Será razão sólida para conquistarmos a simpatia de Taciano para os nossos esclarecimentos. Diremos que o velho, estribado na afeição de nossa casa, veio solicitar-nos apoio moral, colocando a residência sob a nossa guarda, que tudo fizemos, em vão, por salvá-lo, e, por fim, conservaremos o domicílio sem qualquer alteração para que os nossos ausentes o encontrem nas mesmas disposições em que o deixaram… Isso constituirá nossa demonstração de sinceridade, impondo a Taciano a justa resignação ante os fatos consumados.

— Magnífico! — comentou o administrador, sob a impressão de haver encontrado feliz solução para o delicado problema.


Bem humorado, voltou a Basílio e notificou que a decisão fora bem recebida, que a senhora concordava com o alvitre e que a residência seria atenciosamente tratada até à sua volta.

O liberto de Carpo sorriu, aliviado.

A aprovação significava liberdade.

Poderia agora, demandar a casa de Lucano, junto da filha, sem sobressalto ou constrangimento.

O filósofo e Lívia azafamaram-se para colocar em ordem velhos arquivos e objetos de arte, partindo no mesmo dia, ao crepúsculo…

Abraçados um ao outro, comentavam a beleza do céu, no qual corriam nuvens solitárias, tingidas pelo poente afogueado, e referiram-se ao perfume ativo de algumas flores, para não se concentrarem no sofrimento moral da despedida.

Enternecidos, fitaram a paisagem, cada qual enovelando no próprio íntimo as reminiscências mais doces do coração. Com o propósito de não se atormentarem mutuamente, com palavras de queixa, fingiam distração e serenidade, à frente da Natureza, ignorando que Teódulo lhes espreitava os passos, infatigavelmente…


Informada quanto ao local em que o afinador se refugiara, Helena, no dia seguinte, solicitou uma audiência a Egnácio Valeriano, alegando a necessidade urgente de entender-se com o enviado de Augusto.

O alto dignitário recebeu-a sem reservas.

A sós com o legado, expôs a questão sem preâmbulos.

As famílias mais altamente colocadas na cidade — disse, com inflexão de orgulho ferido na voz — lutavam com insuperáveis obstáculos na sustentação da ordem doméstica. O Cristianismo, pregando impraticável fraternidade, perturbava as melhores cabeças, pervertendo escravos e servidores. Generalizara-se a indisciplina. Fomentava-se a discórdia. Homens válidos e mulheres fortes fugiam ao trabalho, depois do contato mental com os ensinos do profeta crucificado que, no fundo, se fizera temível adversário do Império. As tradições eram desrespeitadas e o lar romano desarvorava-se nos mais legítimos fundamentos.


O legado ouviu, atencioso, e, com reverência, indagou:

— Mas, poderíamos, acaso, receber sugestões para a obra corretiva? A devassa realiza-se, metódica, desde minha chegada. Já conseguimos advertir a muitos prosélitos de importância, que se prontificaram a retirar-se.

E, dando ideia da extorsão efetuada acentuou:

— Tenho tido a máxima paciência, compreendendo que um homem representativo não pode esquecer, sem dano, a responsabilidade de que se investe. Assim considerando, determinei que todos os simpatizantes da causa detestada fossem ouvidos… Tive o prazer de registrar-lhes, a reafirmação de fidelidade aos deuses e a César e, de quase todos, recebi generosas ofertas, destinadas ao nosso magnífico imperador. A medida surtiu favoráveis resultados, coroando-nos o inquérito de pleno triunfo. Agora, admito seja possível joeirar as classes mais baixas de nossa estrutura social. A justiça não se fará tardia.

— Estamos ansiosos! — asseverou Helena, satisfeita — nunca presenciamos tantas manifestações de revolta! jamais assistimos a tamanhos espetáculos de rebeldia e degradação! Há quem saiba da existência de variados núcleos de conspiradores contra a legalidade, nos bairros pobres. Nosso administrador, por exemplo, conhece um dos pontos em que pessoas desprezíveis articulam os golpes que nos ameaçam. Nossa própria casa tem um escravo fujão, com a filha, nesse couto de morcegos humanos. Tramam, nas sombras, contra a vida dos patrícios e contra os senhores de terras. Não será de espantar uma rebelião de sangue e morte, a qualquer instante próximo…


Antes que o interlocutor pudesse formular qualquer nova interrogação, acrescentou, de maneira significativa:

— Tenho comigo a documentação probatória.

Valeriano coçou a cabeça, intrigado, e ponderou:

— A denúncia é realmente grave. O administrador da Vila Vetúrio pode colaborar com as autoridades?

— Perfeitamente.

— Começaremos o expurgo sem demora. Posso esperar o concurso dele, hoje à noite?

— Teódulo comparecerá — concordou a senhora, resoluta.


Efetivamente, ao anoitecer, o intendente de Opílio visitou a caserna, sendo aí apresentado a Liberato Numício, chefe de coorte, designado pela Propretura, sob a inspiração de Valeriano, para iniciar o movimento punitivo.

Viram-se e de imediato simpatizaram um com outro através dos sentimentos que lhes eram afins. Teódulo comunicou ao novo amigo que indicaria a casa de Vestino, sem comprometer-se. Alegou que a rebelião dos nazarenos se processava em diversos grupos de ação conjugada e, conhecendo outros centros da conspirata, poderia ser valioso colaborador na repressão, se permanecesse oculto no serviço de inteligência.

Liberato concordou, loquaz, e depois de bebericarem, alegremente, tragando várias taças de vinho, puseram-se em atividade.


Comandando pequena expedição de soldados e beleguins atrevidaços, Numício, sob a orientação do empregado de Vetúrio, cercou o casebre dos seguidores do Evangelho, quando o dono da casa proferia as últimas palavras da oração ensinada pelo Mestre:

—…não nos deixes cair em tentação e livra-nos do mal, porque teu é o reino, o poder e a glória para sempre, assim seja!…

Lucano descerrou os olhos, e tão grande era a serenidade que neles se estampava, que mais parecia ter despertado de alguma visão celestial. Neste instante, o emissário da perseguição, quase ébrio, se postou diante da assembleia cristã, bradando para os esbirros, afoitos:

— Entremos! É aqui mesmo. A malta de raposas está no covil!…

Ninguém respondeu.


Os agentes armados penetraram ruidosamente o recinto.

Sarcástico, Numício observou:

— Já visitei agrupamentos como este. Nunca vi uma raça tão acovardada como a dos aprendizes do Judeu Crucificado. Tomam bofetadas entregam mulheres, sofrem o cárcere e morrem debaixo de insultos, sem qualquer reação! Asquerosos morcegos!…

Cuspinhou algumas pragas e, relanceando o olhar pelos circunstantes, interrogou com estardalhaço:

— Quem é o chefe do bando?

Vendo que ninguém respondia, reajustou a frase e renovou a pergunta:

— Quem é aqui o chefe da casa?

Lucano ergueu-se, digno, e apresentou-se:

— O chefe da casa é Jesus e eu sou o responsável.

— Jesus? Ora, ora… — gritou Numício, gargalhando — sempre os mesmos loucos!…


Parou o olhar irônico em Vestino e continuou:

— Velho detestável, vejamos a tua noção de responsabilidade. Se tens miolo na cabeça abjura a bruxaria! Rende culto aos deuses e afirma a tua fidelidade aos nossos imperadores. Provavelmente, assim, o quadro desta noite poderá modificar-se.

— Não posso! — informou o apóstolo, sereno — sou cristão. Não tenho outro Deus que não seja Nosso Pai Celestial, cuja grandeza e cujo amor se manifestaram na Terra por Nosso Senhor Jesus-Cristo.

— Renega os teus sortilégios, feiticeiro! — clamou Liberato, de faces congestas — abjura ou sentirás o peso de minha decisão!…

— Não posso alterar minha fé — tornou Lucano, com simplicidade e calma.


O punho cerrado do cruel interlocutor desceu sobre o rosto venerável.

Vestino cambaleou, mas, amparado por dois irmãos que se apressaram a socorre-lo, recompôs a fisionomia, enxugando um filete de sangue que a pancada lhe provocara num dos cantos da boca.

Lívia, Lucina e Prisca, as mulheres mais jovens do recinto, prorromperam em pranto, contudo, o ancião, retomando a palavra, confortou-as, exclamando:

— Filhas, não choremos por nós! Choremos pelos nossos perseguidores, orando por eles… Haverá maior desventura que a de confiar-se alguém ao engano do poder para acordar nos braços terríveis da morte?

Fitou o olhar compadecido no verdugo e esclareceu:

— O homem que nos espanca é Liberato Numício, chefe de uma coorte romana. Já lhe vi as mãos, por duas vezes, flagelando os tutelados do Evangelho… Pobre irmão nosso! Acredita ser senhor da vida, quando os prazeres criminosos lhe possuem o coração! Debalde procura debater-se contra os golpes da enfermidade e os achaques da velhice, que presentemente lhe rondam o corpo… Amanhã, precipitado ao vale fundo da meditação pelo desfavor político, talvez se incline para Jesus, procurando justiça e amparo moral!


Os companheiros de Numício ouviam estupefatos.

O agente de Valeriano em vão tentou reagir. Forças intangíveis imobilizavam-lhe a garganta.

Lucano, de semblante iluminado pela fé, prosseguiu, em voz firme:

— É possível que os perseguidores nos imponham a morte. Talvez sejamos conduzidos, de imediato, aos mais aflitivos testemunhos!

Fez breve pausa e continuou, voltando-se para os amigos:

— Não temamos, porém, a visitação do martírio! Todos fomos chamados a seguir Nosso Senhor, de cruz pesada aos ombros doloridos. O Calvário está erguido, o madeiro jaz levantado, a flagelação continua… Ufanemo-nos da nossa condição de cireneus do Eterno Amigo! É uma honra morrer pelo bem num mundo em que o mal ainda reina vitorioso… Envergonhar-nos-íamos da felicidade, ao lado de tantos corações sepultados na miséria, na escravidão e no sofrimento!… Tudo passa! Os imperadores que nos humilharam, ensoberbecidos com as pompas do triunfo, nunca refletiram nos pesadelos que os aguardavam no sepulcro!… Hoje, nossos adversários nos reduzem a carne a lodo sangrento, mas o Espírito do Senhor, renovando o mundo para a felicidade eterna, espalhar-nos-á as cinzas sobre o campo em que eles, desorientados e desditosos, se guerreiam inutilmente!… Agora, são dominadores empinados ao trono da ilusão que os subjuga, todavia, depois, esmolarão a paz, carregando as úlceras da mendicância em plena casa de Deus!… Infelizes! para eles, a luta na Terra ainda significa o mergulho em lama dourada… Atropelam-se uns aos outros, disputando o túmulo em que os seus sonhos de grandeza se reduzem a punhados de pó; matam-se mutuamente, na aquisição do ódio em que se anulam; despedaçam-se em concursos de sangue para incorporarem a ruína aos seus dias escuros!… Choremos, assim, por eles! Deploremo-los! quanto tempo gastarão para conseguirem aquecer a própria alma, ao sol da fé?!…


Em seguida, porque o silêncio pesasse, Vestino afrontou o olhar acovardado de Numício e exclamou:

— Dá trabalho aos teus cooperadores! Se tens a missão de abrir-nos a porta da masmorra, não te detenhas! O espírito do Evangelho brilha acima do cárcere.

Vendo que Lucano lhe estendia, valoroso, as mãos engelhadas, Liberato avançou, pronunciando algumas palavras do cerimonial, em nome do Estado, e atou-lhe os pulsos.

Os colaboradores seguiram-lhe os movimentos, algemando os demais. Alguns membros da expedição oficiosa deitaram olhares lascivos às moças trêmulas, mas a presença de Vestino, cujas palavras lhes haviam lançado tantas verdades ao rosto, como que lhes impunha forçado respeito.

O trajeto fez-se em silêncio.


Os cristãos, à maneira de animais pacientes, não reagiram, sustentando-se em preces fervorosas, mas, quando penetraram o pátio da prisão, entreolharam-se, angustiados.

Algo aconteceu correspondendo-lhes à expectativa.

A voz seca de Numício determinou parada breve e Lívia, Lucina e Prisca foram rudemente separadas do grupo.

Existia antiga lei que vedava o sacrifício de virgens nos espetáculos e, sob esse pretexto, era costume apartar dos recém-detidos as mulheres mais moças, a fim de que a crueldade dos verdugos lhes subtraísse a pureza corpórea, antes de qualquer interrogatório mais rigoroso.


O velho afinador abraçou Lívia, cujos olhos se mantinham velados de pranto que não chegava a cair, e falou emocionado:

— Adeus, minha filha! Creio não mais nos veremos nesta vida mortal. Esperar-te-ei, porém, na eternidade… Se te demorares na Terra, não te sintas a distância de meus passos. Permaneceremos juntos, em espírito… Somente a carne mora à sombra do túmulo… Se fores ultrajada, perdoa… O progresso do mundo é feito com o suor dos que padecem, e a justiça, entre os homens, é um santuário levantado pela dor dos vencidos… Não te consternes, nem te suponhas abandonada!…

Ergueu os olhos para o Alto, como quem indicava no Céu a última pátria que lhes restava, e concluiu:

— Um dia, reunir-nos-emos, de novo, no lar sem lágrimas e sem morte!…

Sorriso amargo assomou-lhe ao rosto.


A moça enlaçou-o, carinhosamente, e osculou-lhe a face pálida sem articular palavra alguma. Incoercível emoção constringia-lhe o peito.

Liberato gritou contra a demora, enquanto dois legionários insistiam com as jovens, que por fim se deixaram levar sem resistência.

Ao se retirarem, caminhavam as três, aflitas e hesitantes, mas Cesídia, viúva e mãe, clamou para elas, em tom comovedor:

— Filhas do meu coração! não nos rendamos ao mal… Procuremos, com valor, a vontade do Cristo! Deus nos assiste, e a verdade nos guia… Mais vale a morte com liberdade que a vida com escravidão! Avancemos resolutas! as feras do anfiteatro são nossas benfeitoras!… Adeus! Adeus!…

Prisca e Lucina, com os rostos lavados em pranto sem desespero, demandaram a senda imunda que lhes era apontada, atirando beijos aos amigos que ficavam atrás.


Os prisioneiros retomaram a marcha.

Um pouco adiante, as matronas foram igualmente arrebatadas a celas diferentes, enquanto os catorze homens, amargurados mas firmes na fé, se viram conduzidos a extenso salão escuro e úmido.

Algumas tochas passaram a brilhar.

Um legionário de aspecto repelente aproximou-se do chefe e perguntou, em voz baixa, pelo cubículo onde as três jovens se achavam internadas.

Numício gargalhou irônico e observou, irreverente:

— Não te atrevas! Estamos certos de que todas são virgens e, assim, o legado tem direito à primeira escolha. Valeriano vê-las-á amanhã. Depois dele, então…

E, despreocupado e desrespeitoso, acrescentou:

— Jogaremos a sorte.

Risinhos abafados estenderam-se entre os servidores da justiça imperial.


Transcorridos alguns momentos, Egnácio Valeriano penetrou solenemente o recinto.

O mensageiro de Galo propunha-se imprimir a maior importância ao trabalho iniciado. Comentava-se, por toda a parte, a probabilidade de uma rebelião das classes inferiores e temia-se uma rápida junção dos grupos insurrectos.

Vivia, por isso, cercado de insidiosas reclamações.

As casas abastadas pediam-lhe drásticos preventivos e os denunciados de Teódulo eram os primeiros detidos da grande rede de coação que pretendia desdobrar.

Seguido por vários assessores, dirigiu-se aos presos humildes, em tom altivo e arrogante:

— Plebeus!— notificou áspero — tenho praticado, com largueza, nesta cidade, a retidão e a tolerância, em obediência às tradições dos nossos antepassados, entretanto, queixam-se os patrícios probos e respeitáveis de que a vossa atitude, nos últimos tempos, constitui grave ameaça a tranquilidade dos cidadãos. Sois acusados, não somente de cultivar a magia nefanda dos nazarenos, mas também de conspirar contra o Estado, com o objetivo de usurpar a posição e o patrimônio dos eleitos de Augusto que vos dirigem. Não posso, pois, adiar a reprimenda exigida por nossa comunidade. O expurgo é indispensável.


O mensageiro romano interrompeu-se, vagueou os olhos coruscantes pela assembleia humilhada e indagou:

— Quem de vós cooperará conosco, indicando os centros da indisciplina? nossa magnanimidade responderá com a libertação de todos os que colaborarem na empresa benemérita em que nos empenhamos.

Os cristãos permaneceram emudecidos.

Exasperado com o silêncio reinante, que tomou por desconsideração à sua autoridade, Valeriano dirigiu-se a Vestino e a Basílio, os mais velhos, e exclamou:

— Em Roma, supomos encontrar nos anciães a palavra credenciada pela experiência, que nos compete ouvir em primeiro lugar.

Concentrou a atenção em Vestino e perguntou a ele, diretamente:

— Que informais do movimento subversivo em preparação?

Lucano, todavia, respondeu sem vacilar:

— Venerável embaixador de César, nós não somos delatores.

O delegado imperial esboçou uma carranca de descontentamento e, fixando Basílio, inquiriu:

— E vós? que dizeis?


O liberto encanecido sustentou-lhe o olhar penetrante e replicou, sereno:

— Ilustre legado, estamos a serviço do Cristo, que nos recomenda a abstenção de qualquer julgamento leviano, para que não sejamos levianamente julgados. O Evangelho não abona a revolução.

— Que insolência! — gritou o ex-guerreiro da Mésia, ofendido — estes velhos parecem zombar!… Obrigados a responder com clareza, valem-se da ocasião para se jactarem de virtuosos, efetuando, ao mesmo tempo, a propaganda do agitador judeu! Enganam-se, porém!…

E, ordenando a Liberato a abertura de espaçoso compartimento anexo, recomendou:

— Aos cavaletes!

Com a passividade que lhes era característica, os seguidores do Crucificado penetraram o lúgubre aposento.

Vários instrumentos de martírio ali se enfileiravam.


Obedecendo às ordens recebidas, auxiliares de Numício ataram ambos os velhinhos a dois grandes cavalos de madeira, amarrando-lhes os membros com ásperas cordas de couro, capazes de lhes esticarem o corpo até à disjunção dos ossos.

Afrontando a secura do ambiente, Vestino rogou aos companheiros com humildade:

— Irmãos, não vos inquieteis por nós! A aflição e o desespero não constam do programa de trabalho que o Mestre nos traçou. Em nossa idade, a morte por Jesus ser-nos-á honrosa mercê. Ademais, ele nos recomendou não temer os que matam o corpo, mas que não podem matar a alma. Auxiliai-nos com a prece! Os ouvidos do Senhor permanecem vigilantes em toda a parte.

Egnácio, contudo, determinou silêncio.


E, quando os dois velhos foram ligados pelos braços, cabeça e pés sobre os grandes potros de flagelação, recomendou que os soldados se mantivessem a postos para a movimentação das polés, de modo a intensificar-se gradativamente o suplício, caso fosse necessário.

Lucano e Basílio entreolharam-se, ansiosos.

Compreendiam que o corpo extenuado não resistiria ao tremendo suplício.

Indubitavelmente, era o fim…

Refugiavam-se na oração, deprecando o socorro divino, quando Valeriano bradou, estentórico:

— Miseráveis! confessem agora! onde se acoitam os cristãos insubmissos?

— Cristianismo e insubmissão não se conhecem! — redarguiu Vestino, com calma.

— Nada temos a dizer — ajuntou Basílio, resignado.

— Horda de corvos! — trovejou Egnácio, possesso. — Por todas as divindades infernais! desenrolem a língua ou pagarão muito caro o atrevimento!…

Fez um sinal imperativo e as cordas retesaram-se.


Os dois apóstolos atormentados sentiram que o tórax e a cabeça se desligavam, que os braços se separavam do tronco.

Gemeram semi-asfixiados, mas não se lhes arrefeceu o bom ânimo.

— Confessem! confessem! — repetia o alto dignitário romano, de espírito conturbado pela cólera.

Mas, porque a revelação tardasse, indefinidamente, mandou que as cordas se esticassem, mais e mais.

O peito dos supliciados arfava, dolorosamente.

Ambos cravavam o olhar no teto, qual se buscassem, debalde, a contemplação do Céu.

Pastoso suor escorria-lhes do corpo a estalar-se.

Em determinado momento, Basílio desferiu um grito inesquecível.

— Jesus!…


A imprecação escapara-se-lhe do imo dalma, num misto inexprimível de dor, amargura, aflição e fé.

Os olhos do velho afinador arregalaram-se nas órbitas, enquanto Vestino apresentava análogos fenômenos de angústia.

Rompida a base do crânio e rebentadas várias veias entre os ossos quebrados e a carne em dilaceração o sangue, em golfadas sucessivas, lhes borbotou da boca entreaberta.

A morte fora rápida.

Estranha placidez estampou-se nas duas fisionomias dantes torturadas.

Chocaram-se, então, na sala, a perplexidade dos ímpios e o mudo heroísmo dos filhos do Evangelho.


O mais moço dos cristãos presentes, Lúcio Aurélio, de rosto imberbe, quase menino, avançou para os cavaletes empapados de sangue e, enfrentando a estupefação dos algozes, orou em voz alta:

— Senhor, digna-te receber com amor os teus servos e nossos inolvidáveis amigos! Ampara-os na glória de teu Reino! Foram eles nossa orientação na dificuldade, nossa coragem nos dias tristes, nossa luz no meio das sombras! Ó Mestre, permite possamos imitar-lhes o exemplo de virtude e coragem com o mesmo denodo na fé! Vestino! Basílio! admiráveis benfeitores! de onde estiverdes, não nos abandoneis! Ensinai-nos, ainda, que só pelo sacrifício conseguiremos construir com Jesus o mundo melhor!…

Calou-se Aurélio.

A rogativa apagara-se-lhe na garganta, afogada pelas ardentes lágrimas a lhe pungirem o coração.

Quebrando a quietude que se fizera pesada, Valeriano bradou, enraivecido:

— À prisão! conduzam estes homens à prisão! não quero sortilégios nazarenos. Prossigamos na caça! É imprescindível a detenção de todos os implicados… Mobilizemos os recursos de que possamos dispor! Esgotou-se-me a paciência, tenho esperado por demais!…

Os seguidores da Boa Nova lançaram derradeiro olhar aos despojos sangrentos e demandaram as celas imundas a que eram destinados.


A perseguição continuou, implacável.

Durante a noite, outros grupos foram aprisionados.

Movimentada a guarda, que se constituía, em maior parte, de elementos inferiores, a crueldade e a selvageria passaram a dominar.

No dia imediato, muito cedo, o representante de Galo veio à inspeção.

Emitiu ordens numerosas, traçou planos, arquitetou relatórios que lhe cabia enviar à cidade imperial, de modo a confirmar-se na condição de legítimo defensor do Estado e de companheiro fiel do imperador. Para isso, Egnácio visitou as dezenas de encarcerados, preparando interrogatórios hábeis.

Por última atividade da manhã, desceu, a pedido de Liberato, até à câmara em que as moças se comprimiam.


Dez jovens abatidas identificaram-lhe a presença, atribuladas e assustadiças.

Valeriano fitou-as com a malignidade dum lobo senhor do redil e, detendo-se na contemplação de Lívia, indagou do assessor:

— Donde procede aquela beldade singular?

Liberato informou, sussurrante:

— É filha de um dos nossos velhos supliciados de ontem.

— Oh! Oh!… porque não soube antes? — falou Egnácio coçando a cabeça, intrigado — ela vale muitos velhos juntos.

Concentrou a atenção na moça, que se viu incomodada por semelhante privilégio, e determinou fosse ela transferida para uma cela mais confortável, não longe do seu gabinete particular de audiências.


Decorridas algumas horas, a filha adotiva do afinador, inquieta e desalentada, viu-se em extensa câmara, agradavelmente mobilada, onde o representante de Galo veio, à noite, vê-la de perto.

Lívia recebeu-lhe a visita, em sobressalto.

— Bela gaulesa — começou ele, estranhamente afetivo —, sabes que um dignitário imperial dispensa solicitações. Entretanto, apraz-me esquecer os títulos de que me encontro investido, para apresentar-me diante de ti como simples homem.

A moça ergueu para ele os olhos súplices, que as lágrimas velavam, prestes a cair.

Valeriano assinalou um sentimento novo no próprio íntimo… Notou que inesperada compaixão lhe esbatia a máscula crueldade. Surpreendido, recorria, em vão, à memória, para recordar onde teria conhecido aquela jovem mulher.


Em que sítio tê-la-ia visto alguma vez? Reconhecia-se tocado por reminiscências que não conseguia precisar.

— Teu nome? — perguntou com uma inflexão de voz que se avizinhava da ternura.

— Lívia, senhor.

— Lívia — prosseguiu ele, em tom quase familiar —, conheceste-me em alguma parte?

— Não me lembro, senhor.

— Poderás, contudo, entender a súbita paixão de um homem? Sabes, acaso, a espécie de sentimento que me inspiras? Estarias disposta a concordar com as minhas propostas de felicidade e carinho?

— Senhor, eu sou casada…


Egnácio experimentou grande mal-estar e considerou:

— O matrimônio pode ser um freio aos nossos desregramentos, mas nunca um entrave insuperável ao verdadeiro amor.

Caminhou, nervosamente, de um lado para outro da sala e inquiriu:

— Onde se encontra o felizardo que te possui?

— Meu esposo acha-se ausente…

— Tanto melhor — acentuou o legado, novamente tranquilo —, nossa afeição poderá ser, desde hoje, se quiseres, um formoso romance… Saberás compreender-me o convite?

— Senhor, além de casada, eu sou também cristã…

— Oh! o Cristianismo é a loucura de Jerusalém que pretende asfixiar a saúde e a alegria de Roma. És suficientemente menina para renunciar a essa praga! Tenho recursos para sustentar-te. Um palácio cercado de jardins e povoado de escravos será naturalmente a rica e merecida moldura com que te realçarei a beleza.


Reparando que a promessa brilhante não alterava a expressão fisionômica da prisioneira, acrescentou, mordaz:

— Já pensaste numa jovem morta no anfiteatro? As vestes rasgadas, o corpo desventrado, os seios convertidos em fossas sangrentas, os cabelos arrastados na arena, os dentes partidos, o rosto pisado pelas feras!… e, acima de tudo, as mãos brutais de gladiadores bêbados a recolher-lhe os restos!… Francamente, não posso atinar com as noções de pudor das famílias nazarenas. Esquivam-se da gloriosa exaltação da carne, como se a Natureza estivesse amaldiçoada, alegam imperativos de pureza e pregam a regeneração dos costumes, mas não se envergonham da nudez no anfiteatro!… Nunca refletiste em semelhante contradição?

— Senhor, creio que devemos aceitar esses espetáculos como sacrifícios que a ignorância do mundo nos impõe…

— Parece-me, porém — aventou Egnácio, irônico —, que as mulheres “galileias”, fugindo às delícias do amor bem vivido, a pretexto de se conservarem na virtude, guardam consigo a volúpia de se desnudarem na praça pública. Vejo nisso tão somente inqualificável desordem mental!…

— Senhor — ponderou Lívia receosa, mas serena —, não será mais digno expor-se a mulher diante de animais que lhe devoram o corpo que ofertar-se, em banquetes desonrosos, à criminalidade dos homens? Em Massília, vi matronas e jovens da cidade imperial em exibições deprimentes e, nem de longe, lhes pressenti qualquer ideal de elevação… Peço vênia, pois, para discordar do seu ponto de vista. Admito que, em se entregando ao suplício por Jesus, o coração feminino coopera na edificação da nova Humanidade…


Valeriano sentiu o vigor do argumento com que se via contestado, mas não se deu por vencido.

Gargalhou com aparente bom humor e exclamou, sorrindo:

— Que calamidade! um encanto de mulher, padecendo a mania dos filósofos! Minerva não é a conselheira indicada para a tua idade. Ouve a inspiração de Vênus e compreender-me-ás a palavra com mais clareza.

O legado meditou alguns instantes e observou:

— Teu pai devia ser um louco bem acabado.

Ansiosa por informar-se de algum modo quanto ao destino paterno, a moça ajuntou, com interesse:

— Meu pai está igualmente aqui.

Valeriano sentiu-se incomodado, ante a expressão de confiança com que aquelas palavras eram pronunciadas e, temendo as dificuldades que deveria contornar para explicar-se, julgou prudente despedir-se para voltar no dia seguinte.


Noite a noite, Egnácio tornou à câmara que Sinésia, servidora de sua confiança, zelava caprichosamente.

Dolorosos sucessos enlutaram as atividades cristãs na cidade. Espetáculos de gala eram assinalados por terríveis flagelações. Interrogatórios cruéis terminavam com revoltantes execuções, incentivadas por longos aplausos públicos.

Lívia, contudo, isolada de todos, fora poupada.

Os comentários referentes à mulher, por mais de duas semanas detida pelo mensageiro do imperador, acabaram por atingir-lhe o templo doméstico.

Clímene, enciumada, certa noite veio ao gabinete do esposo, à cata de impressões, e, com o auxílio da serva, postou-se à escuta, por trás de cerradas cortinas.

— Não me recuses! — dizia Valeriano, apaixonado — não desejo obrigar-te à submissão. O amor espontâneo da mulher que adoramos é qual se fora suave néctar colhido na milagrosa concha dos sonhos! Ama-me, Lívia! Sejamos felizes! Sentes-te enferma, por não cederes ao apelo da vida. Não serei tão mau quanto imaginas. Sou casado, sim, mas minha mulher não me partilha os negócios. Sou livre… Dar-te-ei domicílio régio onde desejares. Uma vila em Arelate, um palácio em Roma, uma chácara na Campânia, uma casa de repouso na Sicília!… Escolhe! Viveremos juntos, tanto quanto possível. Minha escravidão ao Estado é transitória. Espero desfrutar, em breve, longo descanso!… Se tivermos filhos, garantir-lhes-ei o futuro. Olvidarás a mística perigosa dos judeus, adereçar-te-ás como as mais lindas filhas das sete colinas, receberás uma existência digna de tua formosura e de teus dotes intelectuais… Não me observas, porventura, humilhado aos teus pés?!…


O pranto convulsivo da moça podia ser ouvido à pequena distância.

— Porque choras? nada te falta. Dize uma palavra e sairás daqui na condição de soberana da minha felicidade. Não te negues, por mais tempo, ao chamamento do meu carinho! Ergue-te e vem! Que pretendes para construir a tua ventura?

— Senhor — soluçou a moça, desanimada —, pela conversação de Sinésia com servidores desta casa, sei que os meus companheiros de fé estão marchando, todos os dias, para o sacrifício… Provavelmente, meu pai já terá dado o grande testemunho!… Para que eu lhe abençoe a generosidade, com o meu eterno reconhecimento, conceda-me a graça de morrer junto dos meus…

— Nunca! — trovejou a voz de Egnácio, irritado — não partirás daqui sem abjurar a crença ignominiosa! Não descansarei, enquanto não puder mergulhar os meus olhos nos teus, à maneira do sedento que se afoga no manancial de água pura! Amo-te os olhos misteriosos, que em mim despertam algo oculto, estranhos e profundos sentimentos que não consigo explicar. Serás minha, bem minha!… Modificar-te-ei as convicções, dobrarei esse teu incompreensível orgulho!…


Os ouvidos de Clímene não puderam suportar por mais tempo.

Sufocando as lágrimas que lhe rebentavam do peito, a matrona afastou-se, rápida.

Em casa, porém, não obstante perceber o regresso do esposo ao tálamo conjugal, não conseguiu atrair o sono.

Imagens numerosas de revolta e desespero cruzavam-lhe o cérebro atormentado.

Irritadiça e descontrolada, recordou-se de Helena, afigurando-se-lhe encontrar nela a única amiga, a cuja experiência deveria confiar-se.

Com efeito, tão logo surgiu o dia novo, buscou a vila Vetúrio, onde, em pranto, desfez-se em minuciosas confidências, diante da companheira.


A esposa de Taciano ouviu, atenciosa, e observou, por fim:

— Essa mulher é uma intrusa. Conheço-a de nome. Deu-nos imensa preocupação, há tempos. Tem a mania de farejar os maridos apreciáveis. Suponho seja nosso dever afastá-la, em definitivo. Não poderíamos incluí-la em alguma remessa de escravas, destinadas à arena?

— Não, isso não! — objetou Clímene, assustada. — Valeriano não me perdoaria. Semelhante medida seria perde-lo para sempre. Não lhe desconheço o temperamento vingativo. Percebi-lhe a desvairada paixão pela detestável plebeia. Declarava-se fascinado pelos olhos dela, e pretendia até mesmo elevá-la a posição de verdadeira rainha!

— Ah! ele destacou-lhe os olhos? — indagou Helena, com malícia.

— Sim, sim, asseverava que ela é o único amor de sua vida, não se vexou de reduzir-me a odiosa subalternidade!…


A filha de Vetúrio, de olhos felinos a reluzirem cruéis, comentou, sorridente:

— Possuíamos em Roma desvelada amiga em Sabiniana Pórcia, dedicada à nossa família desde a infância de meu pai. Sabiniana desposou Belisário Dório, que nunca se resignou a possuir uma só mulher. Certa feita, em casa, o trêfego marido exaltou para a esposa a beleza dos dentes de Eulice, uma escrava grega, a cujos dotes físicos se afeiçoara ele, perdidamente. Nossa amiga ouviu, com calma, as inflamadas referências e, na refeição do dia seguinte, apareceu uma salva prateada com a bela dentadura. Se os dentes eram o motivo da paixão refletiu Sabiniana com sabedoria, poderia servi-los ao companheiro, sem mais nem menos.

Ruidosa gargalhada, desferida por ela própria, concluiu-lhe a narrativa.


Ante a amiga espantada, passou a destra pela cabeleira adornada com tenuíssima rede de ouro e declarou:

— A lembrança de Pórcia propiciou-me excelentes ideias.

Pensou… pensou… e disse:

— Chamemos Teódulo ao nosso conselho. É a única pessoa capaz de ajudar-nos com a eficiência devida.

O administrador compareceu, submisso.

Escutou o drama de Clímene, nas palavras comovedoras de Helena, e considerou:

— Estou pronto a colaborar. Há mulheres de fatal influência em homens dignos. Essa moça é uma delas. Tem o condão de fazer a infelicidade dos outros.


Helena reteve o comando da conversação e explicou-se em voz baixa. Possuía em casa uma substância cáustica suscetível de provocar a cegueira irremediável. Egnácio Valeriano apaixonara-se pelos olhos da filha de Basílio. Seria importante, por isso, aniquilar-lhe os órgãos da visão. Para esse fim, Clímene compraria a cumplicidade de Sinésia, que faria a moça dormir em poucos minutos à custa de um narcótico. Logo após, a criada aplicaria uma compressa com a substância corrosiva sobre os olhos de Lívia. A moça despertaria cega, aflita… Sinésia assumiria o papel de benfeitora, reconfortando-a com panaceias adequadas À noitinha, a própria Clímene visitaria a prisão; conduzindo vestes habituais dela mesma, de modo a disfarçar-se o aspecto da jovem. Demorar-se-ia Clímene, no gabinete do marido, enquanto Sinésia trocasse a roupa da prisioneira, conduzindo-a discretamente para fora. Os guardas, naturalmente, tomá-la-iam como sendo a própria Clímene abraçada à governanta do cárcere e Teódulo esperaria Lívia, à pequena distância, retirando-a para longe de Lião… Desceria com ela para Massília, com a promessa de reencontro com o velho pai e com Taciano, desterrando-a, por fim, na costa gaulesa.


A esposa de Valeriano e o empregado de Opílio ouviam-na, assombrados, admirando a fertilidade daquele cérebro, surpreendente na urdidura do mal.

— O projeto é notável — adiantou Clímene, algo aliviada —, entretanto, a praia não é assim tão longe…

Helena designou o companheiro que as ouvia, enigmático, e acentuou:

— Teódulo poderá conduzi-la para a outra banda do mar…

E piscando os olhos vivos para ele:

— Da África, por exemplo, qualquer mulher cega encontraria muita dificuldade para o retorno.

E sentenciou, sorridente:

— Não temos tempo a perder. Se essa mulher domina os homens pelos olhos, é justo que os perca.

— Receio algum deslize na execução do plano — suspirou Clímene, hesitante —; se Valeriano descobre, pagarei muito caro.

— Não vaciles! — determinou a companheira, autoritária — a dúvida numa realização que nos interessa é sempre um golpe contra nós mesmos.


A esposa de Egnácio concordou e obedeceu às ordens que lhe eram ditadas.

Helena acompanhou-a a casa dela.

Trazida Sinésia ao lar do representante de Augusto, aceitou de bom grado todas as providências que lhe eram sugeridas, tornando à prisão de posse das instruções e das drogas indicadas.

Ministrando a Lívia o hipnótico, em água pura, viu-a adormecer facilmente e, enquanto dormia, a moça recebeu a compressa fatal.

Quando despertou, trazia os olhos injetados de sangue.

Apalpava o leito, ansiosa por recuperar a visão, mas debalde…

— Sinésia! Sinésia!… — gritou, aterrada.


Escutando a voz da governanta que lhe respondia, cortês, indagou aflita:

— Anoiteceu assim tão de repente?

— Sim — respondeu a interlocutora, com intenção —, já é noite…

— Onde estava eu, contudo? estarei desvairada?

— A menina teve um desmaio — informou a serva, fingindo preocupação.

— Tenho meus olhos em fogo. Acende uma tocha, sinto-me intranquila.


Embora compadecendo-se da vítima, Sinésia ajoelhou-se, junto dela, e, conforme as sugestões recebidas de Helena, falou-lhe aos ouvidos:

— Lívia, tenha calma, coragem, paciência!… Seu pai morreu nos cavaletes de suplício!…

A moça emitiu um grito abafado, seguido de convulsivos soluços.

— Os espetáculos com execuções têm sido frequentes. Acredito que seus amigos cristãos não terão tido ensejo de fugir. Há, porém, uma notícia agradável. O patrício Taciano interessa-se por sua sorte. Não sei bem onde se encontra, mas estou informada de que enviou mensagem ao senhor Teódulo, recomendando-lhe acompanhá-la na viagem que a menina deve fazer para se reaproximarem… Há quem diga que a pequena Blandina está doente, reclamando cuidados…


Intraduzível expressão estampou-se na fisionomia da jovem, cujos olhos mergulhavam agora em espessa noite.

— Precisamos subtraí-la à crueldade de Valeriano que se propõe escravizá-la e possuí-la, a qualquer preço — continuou Sinésia, astuta —; em cada noite parece mais louco e, provavelmente, violentar-lhe-á o sentimento feminino, de vez que vive a embriagar-se antes de vir para o seu quarto. Dói-me o coração vê-la assim exposta aos ataques de um homem despudorado. Combinei, pois, com o senhor Teódulo a sua retirada… Dentro de algumas horas, espero receber a vestimenta própria para a sua saída sem percalços. Lá fora, o administrador da vila aguardar-nos-á, a fim de acompanhá-la até ao seu novo destino…


Notando que o silêncio pesava entre ambas, Sinésia indagou:

— A menina não se encontra, porventura, feliz? Não lhe sorriem ao coração as promessas de vida nova?

Lívia, porém, que se afundara em amargas reflexões, respondeu, triste:

— Não fosse a morte de meu pai e sentir-me-ia contente… Além disso, vejo-me enferma e aniquilada…

— Mas, o senhor Teódulo é de parecer que o antigo patrão da vila Vetúrio e a filhinha dele, Blandina, são seus amigos.

— Sim, bem sei, mas a esposa de Taciano parece detestar-nos. O senhor Teódulo sabe disso…


Estendeu as mãos para a frente, como se vagueasse nas sombras, e acrescentou:

— Porque não fazermos alguma luz?

— Necessitamos da escuridão para libertá-la.

A doente aquietou-se, mas, passando a destra pelos olhos empapuçados, exclamou em dolorido desabafo:

— Ah! Sinésia és a única pessoa com quem posso conviver nesta reclusão!… Sou cristã, enquanto ainda te prendes ao culto das antigas divindades… mas, no fundo, ambas somos mulheres, com problemas comuns! A morte de meu pai abre-me um vácuo que coisa alguma na Terra conseguirá preencher! Estou só no mundo! sozinha! Cedo habituei-me ao caminho de aflição! Nunca me revoltei contra os desígnios do Céu, mas, agora, sinto-me desorientada e infeliz!… Que pecado cometi para que Deus me poupasse? compadece-te de minha sorte! Tenho medo de tudo!…


A inflexão com que aquelas palavras eram pronunciadas tocou a sensibilidade da servidora nas mais recônditas fibras.

Profundo remorso feriu-a, de chofre…

O pranto rompeu-lhe a crosta consciencial. Desejou salvar a moça, recambiá-la para o mundo livre e descerrar-lhe as portas do cárcere para abençoado destino, mas era tarde. Lívia estava cega. Jamais conseguiria alterar-lhe a situação. Entre o grupo de Valeriano e os amigos de Clímene permaneceria algemada a perigo iminente. Limitou-se, por isso, a chorar conturbada.

A jovem escutou-lhe os soluços e confortou-se. Supôs que a governanta sofria por ela e essa ideia abrandou-lhe a tortura íntima. Não se achava tão só. Alguém lhe entendia os padecimentos morais e partilhava-lhe o fel.

À noitinha, Clímene apareceu.

Entregou à Sinésia a roupa de seu uso particular.

A governanta gaulesa, não obstante o pesado remorso que a espicaçava, reanimou a jovem e ocupou-se em vesti-la com esmero.

Daí a instantes, ambas saíram sem qualquer aborrecimento.


Envergando um dos peplos habituais de Clímene e apresentando altura semelhante à dela, Lívia foi tida pelos guardas de serviço como sendo a esposa de Valeriano em passeio.

Não longe, alcançaram Teódulo que as esperava.

Sinésia, emocionada, despediu-se, alegando a necessidade de tornar ao posto. Antes, porém, que a moça se externasse em considerações amargas, à face do adeus da companheira, o intendente de Opílio, muito cortês, tratou de dissipar qualquer dúvida que lhe afligisse o ânimo.

— Apraz-me trazer-lhe as boas novas de que já teve ciência — comentou ele, maneiroso —; o nosso amigo Taciano, impossibilitado de tornar a Lião, tão depressa quanto desejava, em razão de insidiosa moléstia na pessoa da filha, pede-lhe a presença confortadora…


E, loquaz, observou todas as instruções de Helena, esclarecendo que fariam uma viagem marítima.

Taciano — repetia mendaz —, ao regressar da metrópole, vira Blandina adoecer repentinamente, sem ninguém que os amparasse, de vez que Helena fora chamada novamente a Roma, a fim de prestar assistência ao pai enfermo. Aconselhado por um médico de bordo, o genro de Vetúrio desembarcara a meio do caminho, de onde enviara mensagem, rogando a ela e a Basílio lhe fossem ao encontro. Solicitava, com empenho, ao velho afinador acompanhasse a filha, entretanto, naturalmente ignorava que o filósofo havia sido morto. Por isso mesmo, ele, Teódulo, prontificava-se a segui-la de perto…

Lívia ouviu as informações, apertando o coração com a destra trêmula.


Refletiu alguns instantes, tateou os próprios olhos, agora terrivelmente inflamados, e falou, triste:

— Senhor Teódulo, estou profundamente agradecida à sua bondade Desvanece-me a lembrança de Taciano buscando-me o concurso tão pobre, entretanto, reconheço-me incapaz de realizar a viagem… Algo sucedeu com os meus olhos… De algumas horas para cá, observo que a minha visão desapareceu… Ouço-lhe a voz, mas não o vejo. Dores quase insuportáveis me percorrem a cabeça. Estou inutilizada… Em que poderia ser útil aos nossos amigos que me aguardam? não será mais justo permanecer aqui mesmo e aceitar conformada, as circunstâncias? Taciano escreveu pedindo a meu pai me conduzisse. Meu pai, contudo, está morto… Quanto a mim, doente e só, que poderia fazer? Ser-lhe-ia pesado fardo em jornada tão longa… Não será mais aconselhável que o senhor se desinteresse de minha sorte?!…

— Nada disso! — ajuntou o interlocutor, com manifesta hipocrisia — não me cabe abandoná-la, de modo algum. Para as doenças, temos sempre bons médicos. Sua saúde receberá a necessária assistência. A enfermidade, longe de ser um empecilho, é forte razão para maiores cuidados por parte daqueles que são nossos reais amigos. Além disso…


E a voz de Teódulo se fez mais baixa, como se quisesse despertar o medo da companheira:

— O legado é inconsequente. A cidade inteira, segundo creio, não ignora que ele a separou das jovens nazarenas em regime de privilégio. Sinésia deu-me a conhecer as suas tremendas provas na câmara de detenção. Agora, que seu pai não existe, admito seja maior o meu dever de prestar-lhe ajuda. Se o seu sacrifício representasse uma compensação ao seu ideal, compreender-lhe-ia o temerário gesto de ficar, mas permanecer em Lião para satisfazer à bestialidade de um homem constituiria, a meu ver, rematada loucura…

O argumento convenceu-a.

A moça não mais vacilou.

Aceitou-lhe o braço e asilaram-se em singela hospedaria do subúrbio, de onde partiram, no rumo de novo destino, ao amanhecer.


Em Viena, Teódulo socorreu-se da colaboração de um médico, que receitou complicados unguentos para as feridas oculares.

Dias amargos desdobraram-se em torno de Lívia, desalentada…

Teódulo, a seu turno, em lhe reparando o aniquilamento físico, recordava a sugestão de Helena que lhe pedira favorecer a morte da moça, através de algum prato convenientemente preparado ou de algum mergulho nas águas… A piedade, porém, penetrou-lhe o espírito.

A resignação com que Lívia acolhia o infortúnio comovia-o, fundamente.

Ansiava por desfazer-se dela, como alguém que se desvencilha de um fardo, entretanto, repugnava-lhe agora a ideia do assassínio.


No porto de Massília, encontraram a única embarcação suscetível de conduzi-los ao exterior, uma formosa galera romana que demandaria Siracusa, aproveitando os ventos favoráveis.

O representante de Helena não hesitou.

Depois de examinar as possibilidades de tempo de que dispunha, informou à jovem que, segundo as notícias recebidas, Taciano estaria na Sicília, à espera deles, e ambos, desse modo, fizeram-se ao mar.

Paciente com a cegueira que a martirizava, mas sem perder as esperanças de cura, a doente não encontrou qualquer distração na viagem. Ensimesmada, limitando-se a conversar com Teódulo quando o administrador de Vetúrio a procurava, circunscrevia-se a um só pensamento — reaproximar-se dos amigos e descansar.


Por isso, em soberba manhã, plena de luz, quando o companheiro de excursão lhe anunciou a chegada a Drépano, onde estabelecera ele a suposta permanência do filho de Varro, agitou-se-lhe o coração, tomado de alegria.

Desembarcaram aparentemente tranquilos.

Teódulo, que asseverava conhecer a localidade, inflamou-lhe o peito de esperança. De certo comentava ele fingidamente, em breves instantes estaria abraçada a pequena Blandina, rememorando os dias venturosos da vila. Taciano, sem dúvida, providenciaria tratamento adequado, a fim de restaurar-lhe os olhos enfermos e, em pouco tempo, achar-se-ia integralmente curada, contente, feliz…

A moça, caminhando pelo braço dele, sorria, enlevada…

Sim, que outros amigos lhe restavam no mundo?


O burgo, cheio de vinhedos e acariciado pela doce viração que soprava do mar, respirava a paz festiva e balsâmica da Natureza.

Aqui e ali, vozes argentinas cruzavam os ares.

Vendedores de frutas e legumes apregoavam produtos nas praças. Risos de jovens e gritos de crianças alcançavam os ouvidos da cega que tudo daria para mergulhar a visão na paisagem ambiente que imaginava encantadora.

Num dos pontos mais movimentados do vilarejo, no pórtico de pequeno santuário consagrado a Minerva, Teódulo, com voz tranquilizante, ajudou-a a sentar-se em estreito banco de pedra e pediu-lhe aguardá-lo, por alguns minutos.

Iria ao encontro de um amigo para certificar-se, com exatidão, quanto ao endereço de Taciano.

Voltaria, dentro em pouco.


Lívia, satisfeita, colocou-o à vontade, mas, tão logo se viu de movimentos livres o empregado de Vetúrio desapareceu…

A princípio, a enferma esperou, confiante e paciente, contudo, à medida que as horas avançavam, sentia aumentada a angústia que lhe asfixiava devagarinho o coração…

Não admitiu fosse Teódulo capaz de relegá-la a abandono assim tão completo. O companheiro de viagem poderia ter adoecido gravemente. Algum obstáculo teria surgido…

Depois do meio-dia, sentiu que a fome e a sede a incomodavam, mas receou locomover-se.

O administrador da vila poderia aparecer de momento para outro.

Vencendo grandes vacilações, interpelou transeuntes vários, rogando informes acerca de Taciano, mas ninguém lhe ofereceu o mais leve sinal. De Teódulo, igualmente, não conseguiu recolher a mais ligeira notícia.

Horas e horas permaneceu exposta na via pública, batida de sol e vento.

À noitinha, quando perdeu a esperança de reencontro com o administrador da vila Vetúrio, caiu em profundo desalento.


Percebeu que o Sol se despedia, que as virações da tarde se mostravam mais frias e lembrou que o destino a enjeitara pela segunda vez…

Ouvia, de quando em quando, impropérios de homens descaridosos, a lhe dirigirem frases torpes, e, aflita perguntava a si mesma como proceder.

Achava-se tão só na Sicília, como fora encontrada ao nascer, na charneca de Cipro…

Porque viera ao mundo com semelhante destino? — refletia atormentada. Teria ainda mãe no mundo? a que família se filiava? que tragédia passional lhe havia precedido o nascimento? Recém-nata, não poderia registrar qualquer sensação de abandono, mas agora… Mulher consciente, com tantos sonhos desfeitos, assinalava superlativo sofrimento moral.

Para onde iria?

Se, ao menos, pudesse trabalhar…

Reconhecia-se, porém, inútil e cega.

Como se lhe desdobraria o futuro?


Rendeu graças a Deus porque conseguia chorar livremente… Nunca recordou, com tanta intensidade, a ternura paterna, desde a separação de Basílio, como naquela hora.

O velho filósofo ensinara-lhe que a morte não existe, que as almas vivem além da Terra, em esferas compatíveis com o aprimoramento moral de que são portadoras. Nunca lhe pusera em dúvida as menores lições. Certamente, o carinhoso protetor prosseguia vivendo, em algum lugar. Mas, poderia, acaso, acompanhar-lhe a dor?

Lembrou as reuniões evangélicas da casa de Vestino e procurou arrimar-se à fé.

Indubitavelmente, os amigos que lhe haviam tomado a vanguarda na morte não a olvidariam relegada à solidão.


Deixou que as lágrimas lhe rolassem pela face que a ventania do crepúsculo açoitava, impiedosa, e rogou em pensamento:

— Pai amado, não me abandones!… De onde estiveres, volve o generoso olhar sobre mim… Lembra-te do dia em que me acolheste no matagal deserto e asila-me, de novo, em teu carinho! Estou enjeitada outra vez… Não sei porque contrário destino me pesa sobre a alma, embora creia, como me ensinaste, que Jesus vela por nós do Céu! Agora que me sinto aniquilada e cega, não me deixes perder a luz íntima da esperança e ajuda-me na restauração do bom ânimo!… Muitas vezes me disseste que o sofrimento nos purifica e eleva para Deus! Faze-me compreender esta realidade com mais força para que a dor não me arroje aos precipícios da inconformação!… Falavas-me sempre que a nossa vida não se extingue com a morte, que a alma se ergue aos cimos da eternidade, onde reina a paz! Acreditavas que os mortos são mais vivos que os homens amortalhados na carne e admitias, com segurança, que os nossos entes amados, além do sepulcro, podem auxiliar-nos e proteger-nos!… Como, pois, esquecer-me de ti, que foste em todos os dias o amigo e benfeitor contínuo!? Como seria feliz, acompanhando-te os passos! Não pude, entretanto, desfrutar o privilégio de morrer por Jesus nos tormentos da arena! Ó meu pai, porque não me foi concedida a graça de partir, junto dos nossos?! porque me separou o destino das companheiras que se fizeram venturosas pelo martírio? Tem compaixão de mim! Explica-me a vida como noutro tempo!… Orienta-me no labirinto! Lembra-te de que ainda não passo de uma criança às escuras no matagal humano e faze-te meu protetor, novamente! Trouxeram-me até aqui com a promessa de reencontrar nossos amigos, cujo paradeiro ignoro! Provavelmente, não mais lhes apertarei as mãos neste mundo… Na Terra, a separação é sempre mais fria pelos obstáculos que distanciam a nossa visão das pessoas amadas, mas, na vida espiritual, o coração deve possuir recursos diferentes para fortalecer o amor e socorrê-lo!


Lívia desejava gritar as palavras que a mente compunha, na suposição de que o vento as levaria, clamantes, para o Céu, todavia, a movimentação dos pedestres compelia-lhe o espírito à prudência…

Continuava, pois, a chorar em prece, quando, como num sonho miraculoso, viu desenhar-se luminoso caminho nas trevas que lhe entenebreciam os olhos e, através desse trilho fulgurante, reconheceu Basílio, que avançava ao seu encontro.

Extasiada, tentou nomeá-lo em voz alta, ébria de júbilo, mas a inesperada alegria como que lhe paralisara as cordas vocais.

O velho amigo, envolvido em claridade inexprimível que o fazia mais jovem, aproximou-se, pôs a destra nos ombros dela, como antigamente, e falou, conselheiral:

— Minha filha, os aprendizes de Jesus, tanto quanto ele mesmo, conhecem a solidão, jamais o desamparo! Não te lamentes no nevoeiro em que o Céu te prova a confiança!… Nas noites mais escuras, há mais fulgor nas estrelas… Nossas esperanças brilham com maior intensidade no inverno dos grandes padecimentos. Reanima-te e crê no poder excelso de Nosso Pai.


O Espírito de Basílio fez ligeira pausa, acariciou-lhe a cabeleira castigada pelos sopros do vento e continuou:

— Realmente, nós te precedemos na inevitável viagem do túmulo!… Para nós, a luta na carne foi provisoriamente interrompida e, com acerto, disseste que fomos quinhoados com a prerrogativa de algo sofrer pela extensão do Evangelho no mundo… Mas não te creias excluída do testemunho e da flagelação. O tormento dos olhos é o sinal de que não foste esquecida… Naturalmente, aqueles que nos guiam de planos mais altos confiaram-te à fidelidade algum serviço no mundo, acima do nosso!… O Senhor não entrega responsabilidades de certa natureza a corações ainda frágeis, assim como não dependura o fruto alimentício no ramo tenro do vegetal nascente… Tem coragem! Às vezes, é necessário nos mergulhemos na sombra para auxiliar os que jazem nas trevas!… Reunir-te-ás a nós, brevemente! Arrima-te ao bordão da fé e não desfaleças!… Seguir-te-emos o trabalho, passo a passo… Quando o sacrifício te parecer mais doloroso e mais áspero, agradece a Jesus a oportunidade do precioso combate! Se algo existe no mundo que possa expressar nosso serviço com Deus, é a plena realização da tarefa enobrecedora que a vida nos assinala. E, porque o esforço da renúncia não é acessível a todos ao mesmo tempo, recebe a gradativa imolação de ti mesma como bênção do Alto. Não perguntes pelas razões que te impuseram a cegueira física! Não te sintas injustiçada!… A vida é sempre um milagroso tecido da Divina Sabedoria. Às vezes, a aflição é véspera da felicidade, tanto quanto o prazer, frequentemente, é produção de angústia… Nunca te esqueças do Enviado que nos recomendou o perdão setenta vezes sete para cada ofensa, que nos inclinou ao amor pelos inimigos e à prece pelos perseguidores… Curta é a passagem de nosso Espírito pelo lamaçal da vida terrestre… A dor é o lado avesso da alegria, assim como a sombra é o reverso da luz… Mas, na economia das verdades eternas, só a alegria e a luz nunca morrem. Treva e sofrimento são estados de nossa posição imperfeita, à frente do Altíssimo… Entrega-te, pois, à boa luta, com serenidade e destemor. Permaneceremos junto de ti, orientando-te no escabroso caminho!…


Basílio imprimiu longo intervalo às considerações que emitia, enlaçando com ternura a filha jubilosa.

Lívia respondeu-lhe o gesto de carinho, como se quisesse rete-lo no próprio coração. Todavia, embora encorajada e ditosa, refletia no imediatismo do mundo.

Que seria dela quando se visse novamente só?

Caíra a noite… Onde abrigar-se?

Estaria sentenciada a enregelar-se na via pública?

O benfeitor espiritual percebeu-lhe os pensamentos e logo a eles respondeu:

— Não temas! O Pai que nutre os passarinhos, cada manhã, jamais nos esqueceria. O socorro não tarda… Não cerres o coração à bondade e à confiança para que o Senhor não encontre dificuldades em ajudar-te. A cegueira dos olhos não é inutilidade da alma… Recorda a nossa pobreza laboriosa. Não encontrávamos ambos, na música, a nossa razão de viver?


Nesse instante, Lívia escutou, não longe, uma voz de criança que cantava, comovente, acompanhada por um alaúde mal tangido:


Somos pobres, pobrezinhos…

Vivemos de déu em déu,

Mas somos afortunados

Da graça que vem do Céu…


Minha mãezinha doente,

Cansada de tanta dor,

Em minha voz de menino

Pede uma esmola de amor…


Um pequeno de sete anos, robusto mas pobremente vestido, parara junto dela, seguido por esquelética tuberculosa.

Evidentemente, eram pedintes.


O artista miúdo que tocava e cantava, ao mesmo tempo, era familiar do público, porque várias pessoas lhe chamavam pelo nome, exclamando:

— Celso, cante mais!

— Celso, toque mais um pouco!…

O menino atendia, satisfeito, recolhendo moedinhas esparsas, entregando-as à enferma.

Lívia não mais viu a figura paterna, talvez diluída nas emoções novas a lhe penetrarem a mente, mas ainda escutou a palavra de Basílio, que lhe falava, branda:

— Descerra o coração, minha filha!… Repara! Uma criança humilde recorre à bondade nas ruas… Ajuda para que te ajudem, revela-te aos outros para que outros se revelem a ti…

A moça notou que uma força nova irrompera-lhe nalma.


O petiz terminara uma das cantigas regionais que aprendera, e, instintivamente, ela também se associou ao público, chamando:

— Celso! Celso, deixa-me tocar o instrumento.

O pequeno aquiesceu, de pronto.

De posse do alaúde, a cega tornou, em pensamento, ao antigo lar.

Esqueceu-se de que se achava na posição de estrangeira numa terra que desconhecia e cantou com toda a alma, qual se estivesse numa de suas horas mais felizes, à frente do velho pai.


Grande silêncio acompanhou-lhe as belas canções romanas.

Os transeuntes adensavam-se agora no pequeno átrio de Minerva, e a criança, ao fim de cada número, recebia as contribuições de senhoras e cavalheiros comovidos, repletando a surrada bolsa.

O quadro vivo de uma cega a exibir-se, de uma tuberculosa ao relento e de um pequerrucho esfarrapado passou a arrancar as lágrimas de muitos.

Depois de vasto repertório, em que tivera o cuidado de selecionar as melodias para não ferir as susceptibilidades do público, então dividido no culto a Jesus e no culto às antigas divindades, Lívia calou-se.

Muitas damas emocionadas cumprimentaram-na às despedidas.


Esvaziou-se o recinto, pouco a pouco.

Celso, entretanto, conchegou-se-lhe ao colo, ternamente.

— Como te chamas? — indagou ele, com simplicidade e candura.

— Lívia. E tu, meu inteligente cantor?

— Quinto Celso.

— Estás sozinho?

— Minha mãe está comigo.

Feita a apresentação, abraçaram-se ambas.


Hortênsia Vipsânia, a genitora de Celso, biografou-se em frases rápidas.

Era viúva de Tércio Avelino, um miliciano que morrera sem honras, deixando-lhe o filhinho único nos braços. O marido falecera em Siracusa, onde residiam desde a transferência de Roma; todavia, tão angustiosa se lhe tornara a vida, na grande cidade, que, enfraquecida e derrotada, resolvera experimentar a permanência em Drépano, onde conseguia manter-se com menos dificuldade. Lutara intensivamente, fabricando guloseimas para vender, no entanto, adquirira a pertinaz enfermidade que a minava devagarinho… Sitiada pela miséria, ensinara o filho a tanger imperfeitamente o alaúde, de modo a recorrerem à caridade pública.

Sentia-se, porém, exausta. Receava morrer, de momento para outro. Por duas vezes, sofrera hemoptises inquietantes e vivia alarmada…


Lívia tentou reconfortá-la com palavras fraternas, afagando a cabeça do menino que a enlaçara docemente. E, quando interpelada sobre a própria história, relacionou a difícil experiência que atravessava. Perdera o pai na Gália Lugdunense e, cega, fora trazida à Trinácria por um condutor, em busca de velhos amigos que não conseguira reencontrar. Estranha ao meio, desconhecia o próprio destino e, sem ninguém, não sabia de que maneira movimentar-se…

O pequeno, que parecia sumamente interessado na conversação, interferiu, perguntando:

— Mamãe, Lívia não poderia ser nossa?

E talvez entusiasmado pelas canções que ouvira, ajuntou, com espontaneidade:

— Sairemos juntos e a senhora descansará.

A mãezinha pobre sorriu em desconsolo e observou:

— A lembrança de Celso é igualmente minha. Contudo, minha filha, moramos num cubículo que mal nos cabe. Se te apraz, vem conosco…


A moça, num ímpeto de jubiloso reconhecimento, pediu-lhe a destra e osculou-a em lágrimas.

Considerava o oferecimento uma bênção do Céu.

Não perdia a esperança de reunir-se a Taciano e Blandina e, enquanto estivesse à procura deles, aceitaria aquele amparo.

Ali mesmo, traçaram planos.

Celso ser-lhe-ia o orientador na via pública, mas cooperaria em favor dele, ministrando-lhe rudimentos de educação e arte, na preparação do futuro.

O asilo de Hortênsia era um minúsculo telheiro que lhe fora cedido pela caridade de nobre família. Aí, a infortunada viúva cozinhava e dormia, simultaneamente.


Naquela noite, porém, o tugúrio estava em festa.

Dos recursos arrecadados, a doente retirou grande parte e mandou o filhinho à procura de alimento.

Pães e bolos de carne, além de regular provisão de leite de cabra foram trazidos pelos braços pequenos, preocupados em servir…

E os três, agradecendo, em silêncio, ao Céu, a alegria que lhes vibrava na alma, partilharam a refeição singela, sentindo-se mais felizes que os áulicos afortunados da casa dos reis terrestres.

Hortênsia, desejando preservar a saúde do menino, isolara-o ao canto do quarto, numa cama de palhas, e foi junto do pequenino que Lívia se acolheu.


Antes de dormir, com a sinceridade cristalina da criança, Celso, feliz, dirigiu-se à genitora interrogativamente:

— Mãezinha, e a nossa prece? Não pediremos hoje a bênção de Jesus?

Lívia compreendeu o constrangimento da benfeitora, que talvez estivesse silenciando por respeito a convicções diferentes que ela pudesse esposar, e ofereceu-se, de imediato:

— Farei a oração desta noite. Graças a Deus, eu também sou cristã.

E, ante às expressões de ternura que mãe e filho externaram, orou, sentidamente:

— Senhor Jesus, abençoa-nos a fé com que esperamos por ti!… Agradecemos-te a felicidade de nosso encontro e o tesouro da amizade com que nos teces a união. Louvores te rendemos pelo auxílio dos nossos companheiros e pelas lições dos nossos inimigos! Ensina-nos a descobrir a tua vontade no escuro caminho de nossas provas… Dá-nos a conformação ante a dor e a certeza de que as trevas nos conduzirão à verdadeira luz! Senhor, concede-nos a humildade de teu exemplo e a ressurreição de tua cruz! Assim seja!…


Hortênsia e o filhinho, tomados de inexprimível esperança, com a presença daquela jovem mulher que, sozinha e cega, encontrava elementos em si mesma a fim de encorajá-los, repetiram “assim seja” e dormiram tranquilos.

Nova existência surgiu para o grupo, no dia imediato.

Extremamente confortada naquele santuário doméstico, esforçou-se Lívia em contribuir com segurança para a tranquilidade dos três, incumbindo-se de pequeninos afazeres e alegrando o ambiente com as abençoadas lições que trazia do convívio paternal. Embora cega, colaborou de boa vontade na limpeza da casa e, à noitinha, deixando Hortênsia em repouso, caminhou com o menino para a via pública, onde, ao preço de música, angariaram recursos novos.


Menos preocupada com o filhinho, a desventurada viúva pareceu, porém, mais concentrada na própria moléstia, com inquietantes alterações. Assinalava com maior desagrado as variações de temperatura e acusava sofrimentos mais positivos. À noite, era visitada por dispneias sufocantes e, durante o dia, longos e aflitivos acessos de tosse exauriam suas forças.

Com admirável intuição infantil, Quinto Celso percebeu que a mãezinha tivera agravados todos os velhos padecimentos e redobrava carinhos por vê-la reanimada e contente. Associando-se a Lívia, como quem nela encontrava uma nova mãe, cercava a enferma de inexcedível ternura.

Aumentada a renda diária, a filha de Basílio visitou os donos do pardieiro, em companhia de Celso, rogando orientação para se transferirem de residência.


A viúva necessitava de espaço e ar mais puro e podiam, agora, pagar aluguéis por uma casinha modesta.

O proprietário concordou e auxiliou a realização. Ele mesmo dispunha de humilde pouso que cederia por retribuição irrisória.

A breve tempo, instalaram-se os três em singela residência de quatro peças, não longe de árvores benfeitoras, junto das quais a doente conseguiu prolongar a demora no corpo.

Ali, passaram a receber a visita de Exupério Grato, encanecido evangelizador cristão que, a pedido da enferma, vinha, quando possível, ler os sagrados textos e formular orações.


A intimidade entre Lívia e a criança fez-se mais intensa e mais doce. Dia a dia, noite a noite, conversavam, estudavam, trabalhavam e previam o futuro.

Certa madrugada, contudo, Hortênsia despertou de olhos arregalados, como que fixados em visões distanciadas da Terra…

Hemoptise mais forte abatera-a, consideravelmente.

Acesa a candeia, rogou à companheira abrisse a janela, por onde o ar puro e perfumado pelas laranjeiras penetrou, balsamizante.

Lívia, apesar de receosa, não conseguia surpreender-lhe a modificação, mas o menino, inteligente e observador, espantou-se em lhe notando a fisionomia transtornada. A enferma dava a ideia de haver colado fina máscara de cera ao rosto encovado. Os órgãos da visão mostravam-se quase fora das órbitas, mas angélica expressão de alegria lhe tomara o semblante.

Celso, aflito, indagou, ansioso:

— Mãezinha, que aconteceu?


A pobre senhora acariciou-lhe a cabeça minúscula e falou, com esforço:

— Meu filho, esta é a última noite que passamos juntos na Terra!… Não te deixo, porém, a sós… Jesus trouxe Lívia à nossa casa… Recebe-a por tua nova mãe!… Tem sido para mim valiosa irmã nestes dias em que devo ir-me embora…

A moça compreendeu o tom daquela voz de adeus e ajoelhou-se em pranto.

— Não, mãezinha! fica conosco! — soluçou o menino desesperado — trabalharemos para vê-la feliz! Vou crescer depressa! serei um homem, teremos uma casa grande só para nós! Não te vás, mamãe! não te vás!…


Lágrimas incontidas deslizaram dos olhos da agonizante. Hortênsia alisou os cabelos despenteados do filhinho e acentuou:

— Não chores!… onde puseste a fé, meu filho?

— Eu tenho fé, mamãe! Tive fé quando o cão do vizinho nos rondou a porta, tive fé naquela noite em que o temporal nos encontrou na rua, mas hoje tenho medo… a senhora não pode deixar-me,. assim…

— Acalma-te!… — rogou a genitora; preocupada — disponho de pouco tempo… Entrego-te à nossa Lívia, em nome de Jesus… Não me prendas aqui… Incapaz de raciocinares como gente grande, não percebes a extensão do sentimento com que me dirijo à tua alma… Entretanto, filho meu, guarda bem este minuto!… Mais tarde, quando o mundo reclamar-te a lutas maiores, não olvides nossa pobreza laboriosa!… Sê bom e trabalhador!… Se fores induzido ao mal por alguém, recorda o nosso quadro desta hora… Tua mãe, morrendo, confiante, segura de teu valor… Cresce para Jesus, para o ideal da bondade que Ele, nosso Divino Mestre, nos ensinou…


E, pousando os olhos imensamente lúcidos na companheira cega, pediu com humildade:

— Lívia, Quinto Celso será o meu próprio coração, pulsando ao teu lado!… Se reencontrares os amigos que procuras, tem compaixão de meu filho e não o abandones…

A interlocutora enxugou as próprias lágrimas e rogou, aflita:

— Minha irmã, não te apoquentes! Dorme de novo!… Sinto-te fatigada…

Hortênsia sorriu, triste, e acrescentou:

— Não, minha amiga!… Não te enganes… Vejo Tércio conosco… Está robusto como em seus mais belos dias… Diz-me que estaremos juntos… ainda hoje… Reunir-nos-emos no Grande Lar… Porque haveria de persistir, algemada ao corpo, quando Celso encontrou arrimo seguro em tua dedicação?… Sinto-me feliz, feliz…


Hortênsia, no entanto, emudeceu, de súbito.

Entregue a profundo esgotamento pelo fluxo de sangue que lhe assomava à boca, demorou-se, ofegante, por algumas horas, até que, reaquecida pelos primeiros raios de sol da manhã, cobrou energias para dormir o grande sono…

Lívia e Celso reconheceram-se, então, sozinhos. Mãos piedosas dos irmãos na fé auxiliaram-nos a prestar as derradeiras homenagens à sofredora morta.

Quando Exupério acabou de orar, junto à sepultura singela, ante o crepúsculo que se fechava em rubros esplendores; Celso abraçou-se à Lívia e chorou, copiosamente.

— Deixa em paz tua mãe, meu filho! — recomendou a companheira, emocionada — os mortos prendem-se às nossas lágrimas! não perturbes aquela a quem tanto devemos!… Não estarás sozinho!… De hoje em diante, sou também tua mãe…


E a moça cumpriu quanto prometia.

Examinou, acuradamente, a própria situação e compreendeu que as exibições artísticas em praça pública já não mais lhes convinham.

Celso deveria desenvolver-se com seguras noções de responsabilidade. Reclamava instrução e preparo, à frente da vida. Não obstante cega, propunha-se trabalhar, de modo a cooperar na formação do caráter dele para o futuro.

Procurou Exupério, o único amigo que poderia aconselhá-la, e expôs-lhe o plano que lhe acudia ao pensamento.

Não seria possível encontrar atividade remuneradora em Drépano, a fim de amparar o menino?

O provecto ancião ouviu-a, satisfeito, e rogou-lhe tempo. O projeto era razoável, mas a localidade era demasiado pobre para que vingasse, de pronto.

Esperaria, no entanto, a visita de companheiros cristãos de outras terras.

Estava convicto de que o projeto encontraria excelente oportunidade noutra região.


Retirou-se Lívia, esperançada, de coração nutrido por vigorosa fé.

Algumas semanas transcorreram sem novidade, quando o venerando leitor dos Evangelhos veio trazer-lhe importante notícia.

Achava-se, de passagem, na vila, conhecido amigo de Neápolis, o panificador Lúcio Agripa, que se dispunha a ouvi-la e auxiliá-la, no que lhe fosse possível.

Guiada por Exupério, Lívia compareceu à frente do benfeitor; cujo semblante exteriorizava a beleza moral dos grandes cristãos da antiguidade. Olhos plácidos a fulgurarem na face rugosa, a que os cabelos encanecidos emprestavam prateada moldura, Agripa, depois de escutá-la, falou sem afetação:

— Minha filha, julgo razoável esclarecer-te quanto à nossa posição em casa. Noutro tempo, retínhamos numerosos escravos, e não éramos felizes, mas, depois que Domícia e eu aceitamos Jesus por Mestre, nossos hábitos foram renovados. Os cativos foram libertados e nossos costumes simplificados. A fortuna em dinheiro fugiu de nossa casa, todavia, a tranquilidade passou a morar conosco como um talento celestial. Somos hoje tão pobres como aqueles que nos auxiliam em nossa fábrica de pão. Se aceitas a nossa vida frugal, poderemos receber-te com a criança. Sei que desejas trabalhar e não ficarás inativa. Poderás partilhar com Ponciana, nossa velha colaboradora cega, os serviços diários do moinho. A ausência dos olhos confere maior atenção para os serviços dessa natureza, de vez que a nossa pedra de moer é adequada ao concurso humano. Afirmo-te, porém, que não podemos oferecer senão um salário irrisório, apenas o bastante para pagamento da instrução necessária ao pequenino.


E, com um largo sorriso, o generoso forasteiro concluiu:

— Estarás, porém, conosco, na intimidade do templo doméstico. Temos nossas preces particulares, em paz e alegria. Neápolis, graças a Deus, não conhece a perseguição.

Lívia não sabia expressar o próprio contentamento.

— Ah! senhor, isso é tudo quanto desejo! — exclamou jubilosa — servirei, de bom grado, em vossa casa. Lá, desfrutarei a tranquilidade de que necessito e Celso obterá a necessária disciplina para crescer honrosamente.

O panificador, homem simples e prestimoso, conversou sobre música e regozijou-se ao saber que conduziria para a casa não somente uma colaboradora exclusiva das tarefas braçais, mas também primorosa harpista.


E, depois de alguns dias, Lívia e Celso puseram-se ao mar, no rumo da cidade nova.

À chegada, o menino, em deslumbramento, gritava a felicidade que o possuía.

O golfo esplêndido, o casario praiano e o constante espetáculo do Vesúvio, com o penacho de fumo a perder-se no firmamento, constituíam motivos de longas e minuciosas indagações.

Lívia, apesar da cegueira física, não cabia em si de esperança.

Domícia, a esposa do benfeitor, recebeu-a, de coração aberto, e, após uma semana de recuperação das forças, entrou em boa forma no trabalho.

A propriedade erguia-se em rua movimentada e arborizada, sendo objeto de grande interesse público.


Qual acontecia em quase todas as antigas cidades, o trigo entrava puro no estabelecimento e aí era convenientemente transformado em farinha para a manufatura do pão.

Ao lado de Ponciana, a filha de Basílio incumbia-se da mó. A princípio, o trabalho se lhe figurou excessivamente pesado, mas Lívia, rendendo graças a Jesus por haver encontrado algo com que ocupar a mente atribulada, procurou adaptar-se, cantando, ao novo gênero de obrigações.

Na primeira noite, recolheu-se, fatigada, ao quarto singelo que Domícia reservara para ela e o pequeno, e Celso, que se sentia realmente como seu filhinho, contrariado ao vê-la abatida, comentou o novo tipo de luta, perguntando:

— Mãezinha, porque tanto trabalho? não seria melhor tomar o nosso alaúde e ganhar dinheiro das pessoas que passam nas ruas?

— Não, meu filho. O serviço é o único meio através do qual podemos extravasar as riquezas do coração, no engrandecimento da vida. Amas a Jesus e desejas servi-lo?

— Sim, sim.

— Então, é indispensável saibamos cooperar com ele, disputando para nós a satisfação de fazer o mais difícil. Se todos procurarmos a alegria de colher, quem se incumbirá do sacrifício de plantar?


Revelando, porém, o cérebro infantil distanciado das questões filosóficas, Celso continuava, indagando:

— Onde está Jesus, mãezinha?

— Segue-nos, passo a passo, meu filho. Sabe quando nos esforçamos por imitá-lo e conhece-nos as faltas e fraquezas. Assim como o Sol nos envia do céu a sua luz, fazendo-se presente, de maneira constante, em nossa estrada, também o Senhor é o divino Sol de nossas almas, a iluminar-nos por dentro, despertando-nos para o bem e guiando-nos à vida imortal.

— Minha mãezinha Hortênsia dizia que ele era o maior amigo das crianças.

— Era e é, ainda e sempre — acrescentou Lívia, carinhosa —; Jesus confia nas crianças, esperando que elas cresçam para a glória da bondade e da paz, a fim de que o mundo se transforme em Reino de Deus.


Quinto Celso abraçou a mãezinha espiritual, com mais ternura, sentou-se e recitou pequena oração de louvor e reconhecimento ao Divino Mestre e, logo após, segurando a destra de Lívia, adormeceu com a despreocupação de um pássaro feliz.

A filha de Basílio, depois de tatear, agasalhando o menino, prosseguiu velando, pela noite a dentro.

Por que insondáveis desígnios fora parar naquela casa com uma criança que lhe não pertencia pelos laços consanguíneos? Por que misteriosas determinações do Senhor fora trazida à Sicília e da Sicília a Neápolis, onde a vida lhe surgia inteiramente nova? Onde estariam Taciano e Blandina que supunha nunca mais encontrar?

Lívia recordou, um a um, os dias difíceis que vinha atravessando, desde a separação do velho pai, e rendeu graças a Jesus por haver encontrado aquele pouso de reconforto e paz.

Acariciou o pequeno que ressonava, placidamente, e rogou a bênção do Céu para ambos, sentindo-se quase feliz, mas ignorando que o convívio de Hortênsia lhe havia transmitido as sementes de nova dor, com que ela, devagar, caminharia para a morte.




( do Autor espiritual) — Jo 14:1.


( do Autor espiritual) — Refere-se a palavra de Vestino a vários mártires cristãos, da França, alguns dos quais estão inscritos na história dos santos.


( do Autor espiritual) — 2Co 4:8.


( do Autor espiritual) — Arles, França.


( do Autor espiritual) — Alusão a Roma.


( do Autor espiritual) — Hoje Trápani.


( do Autor espiritual) — Também antigo nome da Sicília.


( do Autor espiritual) — Na Campânia (Itália). Hoje Nápoles.



Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

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NÃO se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.

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II Coríntios 2:8

Pelo que vos rogo que confirmeis para com ele o vosso amor.

2co 2:8
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II Coríntios 4:9

Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos;

2co 4:9
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Mateus 6:13

E não nos induzas à tentação; mas livra-nos do mal; porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém.

mt 6:13
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