CAPÍTULO III

O Bem e o Mal

Origem do bem e do mal
• Item 1 •
Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos, porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja irracional, mau e injusto. Logo, o mal que observamos não pode ter nele a sua origem.

Origem do bem e do mal
• Item 2 •
Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, quer se lhe chame Arimane, quer Satanás, de duas coisas uma: ou ele seria igual a Deus e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de toda a eternidade como Ele, ou lhe seria inferior.
No primeiro caso haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, cada uma procurando desfazer o que fizesse a outra, contrariando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com a unidade de vistas que se revela no ordenamento do Universo.
No segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria subordinado. Não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se foi criado, só o poderia ter sido por Deus. Este, então, teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação da bondade infinita. (Veja-se O Céu e o Inferno. Primeira parte, capítulo IX, “Os demônios”.)

Origem do bem e do mal
• Item 3 •
Entretanto, o mal existe e tem uma causa. Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a Humanidade apresentam duas categorias que importa distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos que independem da sua vontade. Entre os últimos, é preciso que se incluam os flagelos naturais.
O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode penetrar nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador; julga as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses artificiais e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da Natureza. É por isso que, muitas vezes, se lhe afigura mau e injusto aquilo que consideraria justo e admirável se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo traz o selo da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação às coisas que não compreende.

Origem do bem e do mal
• Item 4 •
O homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe é possível conjurar, ou, pelo menos, atenuar os esforços de todos os flagelos naturais. Quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização social sábia e previdente, chegará mesmo a neutralizar as suas consequências, quando não possam ser inteiramente evitados. Assim, mesmo com referência aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da Natureza e para o futuro, mas que causam danos no presente, Deus facultou ao homem os meios de lhes paralisar os efeitos.
. assim que ele saneia as regiões insalubres, neutraliza os miasmas pestíferos, [1] fertiliza terras incultas e trabalha por preservá-las das inundações; constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos, tão necessários à depuração da atmosfera, e se coloca ao abrigo das intempéries. É assim, finalmente, que pouco a pouco a necessidade lhe faz criar as ciências, por meio das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o seu próprio bem-estar.

Origem do bem e do mal
• Item 5 •
Tendo o homem que progredir, os males aos quais se acha exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitá-los. Se nada tivesse a temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; nada inventaria nem descobriria. A dor é o aguilhão que impele o homem para frente, na senda do progresso.

Origem do bem e do mal
• Item 6 •
Porém, mais numerosos do que os males que o homem não pode evitar são os que ele cria pelos seus próprios vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí se encontra a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, enfim, da maior parte das doenças.
Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o bem. O homem encontra em si mesmo tudo o que lhe é necessário para cumpri-las. Sua rota está traçada na consciência, e a Lei Divina está gravada no coração. Além disso, Deus lhe lembra disso constantemente por intermédio de seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, por uma infinidade de Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte. Se o homem se conformasse rigorosamente com as Leis Divinas, certamente evitaria os males mais agudos e viveria feliz na Terra. Se não o faz, é em virtude do seu livre-arbítrio, sofrendo assim as consequências do seu proceder. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, itens 4, 5, 6 e seguintes.)

Origem do bem e do mal
• Item 7 •
Mas Deus, cheio de bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, ele se sente compelido a procurar no bem o remédio de que necessita, sempre por efeito do seu livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro. A necessidade, pois, o constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu a melhorar as condições materiais da sua existência (item 5).

Origem do bem e do mal
• Item 8 •
Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. Assim como o frio não é um fluido especial, também o mal não é um atributo distinto; um é a antítese do outro. Onde não existe o bem, forçosamente existe o mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem. Deus somente quer o bem; só do homem procede o mal. Se na Criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em si mesmo, e tendo ao mesmo tempo o livre-arbítrio e por guia as Leis Divinas, evitá-lo-á sempre que o queira.
Tomemos um fato vulgar por termo de comparação. Um proprietário sabe que nos confins de suas terras há um lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por lá se aventurasse. Que faz a fim de prevenir os acidentes? Manda colocar perto um aviso, interditando ao transeunte ir mais longe, por causa do perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente desatende o aviso, ultrapassa o ponto permitido e sai-se mal, de quem ele se pode queixar, senão de si mesmo.
?á-se a mesma coisa com o mal; o homem o evitaria se observasse as Leis Divinas. Deus, por exemplo, impôs limite à satisfação das necessidades; o homem é advertido pela saciedade; se ultrapassa esse limite, o faz voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte que daí podem resultar provêm da sua imprevidência, e não de Deus.

Origem do bem e do mal
• Item 9 •
Sendo o mal o resultado das imperfeições do homem e tendo sido este criado por Deus, dir-se-á que Deus não deixa de ter criado, se não o mal, pelo menos a causa do mal. Se Deus houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria.
Se o homem tivesse sido criado perfeito, fatalmente penderia para o bem. Ora, em virtude do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem nem para o mal. Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso fosse fruto do seu próprio trabalho, a fim de que tivesse o mérito deste, da mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que pratique pela própria vontade. A questão, pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da sua propensão para o mal. [2]

Origem do bem e do mal
• Item 10 •
Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de ambos se acham no instinto de conservação. Esse instinto se encontra em toda a sua força nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser nascido para a vida intelectual. Ao contrário, o instinto se enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.
O destino do Espírito é a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, só lhe cumpre satisfazer às exigências materiais e, para tal fim, o exercício das paixões constitui uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas, uma vez saído desse período, outras necessidades se lhe apresentam, a princípio semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda providencial e se aproxima do seu destino final. Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o bruto. Nessa situação, o que era outrora um bem, porque era uma necessidade da sua natureza, transforma-se num mal, não só porque já não constitui uma necessidade, mas porque se torna prejudicial à espiritualização do ser. Muita coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O mal é, pois, relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de adiantamento.
Todas as paixões têm, portanto, a sua utilidade providencial, visto que, a não ser assim, Deus teria feito coisas inúteis e até nocivas. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe entre o bem e o mal.

O instinto e a inteligência
• Item 11 •
Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde começa um e acaba o outro? Será o instinto uma inteligência rudimentar ou uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria? O instinto é a força oculta que impele os seres orgânicos a atos espontâneos e involuntários, tendo em vista a sua conservação.
Nos atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para a terra em busca de nutrientes; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme as necessidades; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio ou a ele se fixam com as suas gavinhas. É pelo instinto que os animais são avisados do que lhes convém ou prejudica; que buscam, conforme a estação, os climas propícios; que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para a sua prole, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam com habilidade as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam, que a mãe choca os filhotes e que estes procuram o seio materno. No homem, o instinto domina exclusivamente no começo da vida; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos, toma o alimento, grita para exprimir suas necessidades, imita o som da voz, tenta falar e andar. No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o brilho da luz, o abrir maquinal da boca para respirar etc.

O instinto e a inteligência
• Item 12 •
A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados, combinados, de acordo com a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma. Todo ato maquinal é instintivo. O ato que denota reflexão, combinação, deliberação é inteligente. Um é livre, o outro não o é.
O instinto é um guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo simples fato de ser livre, está por vezes sujeita a errar.
Se o ato instintivo não tem o caráter do ato inteligente, revela, todavia, uma causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se se admitir que o instinto procede da matéria, será forçoso admitir que a matéria é inteligente, até mesmo bem mais inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto não se engana, ao passo que a inteligência está sujeita a errar.
Se se considerar o instinto uma inteligência rudimentar, como se há de explicar que, em certos casos, seja superior à inteligência que raciocina? Como explicar que torne possível a execução de atos que esta não pode realizar? Se ele é atributo de um princípio espiritual especial, qual vem a ser esse princípio? Já que o princípio se apaga, dar-se-á que esse princípio se destrua? Se os animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos, o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem com a bondade de Deus. (Cap. II, item 19.)

O instinto e a inteligência
• Item 13 •
Segundo outro sistema, o instinto e a inteligência teriam um só e mesmo princípio. Chegado a certo grau de desenvolvimento, esse princípio, que primeiramente apenas tivera as qualidades do instinto, passaria por uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.
Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e passa a ser guiado exclusivamente pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu estado primitivo e, quando o homem recobrasse a razão, o instinto se tornaria inteligência e assim alternativamente, a cada acesso, o que não é admissível.
Aliás, a inteligência e o instinto se mostram muitas vezes simultaneamente no mesmo ato. No caminhar, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem põe maquinalmente um pé à frente do outro, sem nisso pensar; mas quando quer acelerar ou diminuir o passo, levantar o pé ou desviar-se de um obstáculo, há cálculo, combinação; ele age com propósito deliberado. A impulsão involuntária do movimento é o ato instintivo; a direção calculada do movimento é o ato inteligente. O animal carnívoro é impelido pelo instinto a se alimentar de carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para agarrar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência.

O instinto e a inteligência
• Item 14 •
Outra hipótese, que, aliás, se conjuga perfeitamente à ideia da unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda com o que o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo espiritual com o mundo corpóreo. Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm por missão velar pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que os envolvem nos seus eflúvios fluídicos; que os homens agem muitas vezes de maneira inconsciente, sob a ação desses eflúvios.
Sabe-se, além disso, que o instinto, que por si mesmo produz atos inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres cuja razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria atributo nem da alma nem da matéria; não pertenceria propriamente ao ser vivo, mas seria efeito da ação direta dos protetores invisíveis que supririam a imperfeição da inteligência, provocando atos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria qual o andador com que se amparam as crianças que ainda não sabem andar. Então, do mesmo modo que se deixa gradualmente de usar o andador à proporção que a criança se equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam entregues a si mesmos os seus protegidos à medida que estes se tornam aptos a guiar-se pela própria inteligência.
Assim, o instinto, longe de ser o produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, sê-lo-ia de uma inteligência estranha, na plenitude da sua força, inteligência protetora, supletiva da insuficiência, quer de uma inteligência mais jovem, que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda fosse incapaz de fazer por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém, momentaneamente tolhida no uso de suas faculdades, como se dá com o homem na infância e nos casos de idiotia e de afecções mentais.
Diz-se providencialmente que há um deus para as crianças, para os loucos e para os ébrios. Esse ditado é mais verdadeiro do que se crê. Aquele deus não é senão o Espírito protetor, que vela pelo ser incapaz de se proteger, utilizando-se da sua própria razão.

O instinto e a inteligência
• Item 15 •
Nesta ordem de ideias, ainda se pode ir mais longe. Por mais racional que seja, essa teoria não resolve todas as dificuldades da questão. Se observarmos os efeitos do instinto, notaremos logo de começo uma unidade de vistas e de conjunto, uma segurança de resultados, que cessam logo que a inteligência o substitui. Além do mais, reconheceremos profunda sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie. Semelhante unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento, e esta é incompatível com a diversidade das aptidões individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão harmonioso que se realiza desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade e uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A uniformidade no que resulta das faculdades instintivas é um fato característico que implica forçosamente a unidade da causa. Se a causa fosse inerente a cada individualidade, haveria tantas variedades de instintos quantos fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e constante há de ter uma causa geral, uniforme e constante; um efeito que atesta sabedoria e previdência deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa dessa natureza, sendo necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente material.
Não se encontrando nas criaturas, encarnadas ou desencarnadas, as qualidades necessárias à produção de tal resultado, temos que subir mais alto, isto é, ao próprio Criador. Se nos reportarmos à explicação dada sobre a maneira pela qual se pode conceber a ação providencial (cap. II, item 24); se figurarmos todos os seres penetrados do fluido divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada individuo. Essa solicitude é tanto mais ativa quanto menos recurso tem o indivíduo em si mesmo e na sua inteligência. É por isso que ela se mostra maior e mais absoluta nos animais e nos seres inferiores do que no homem.
Segundo essa teoria, compreende-se que o instinto seja um guia sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido. Em razão das suas consequências, ele não devia ser entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Por intermédio da mãe, o próprio Deus vela pelas suas criaturas que nascem.

O instinto e a inteligência
• Item 16 •
Esta teoria não destrói de modo algum o papel dos Espíritos protetores, cujo concurso é fato observado e comprovado pela experiência; mas deve-se notar que a ação desses Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido e que em parte alguma apresenta a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria, conduz Ele próprio os cegos, mas confia a inteligências livres o cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores é um dever que aceitam voluntariamente e lhes é um meio de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma pela qual o desempenhem.

O instinto e a inteligência
• Item 17 •
Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para ser tida como solução definitiva. A questão será certamente resolvida um dia, quando se tiverem reunido os elementos de observação que ainda faltam. Até lá, temos que limitar-nos a submeter as diversas opiniões ao crivo da razão e da lógica e esperar que a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade será decerto a que melhor condiga com os atributos de Deus, isto é, com a suprema bondade e a suprema justiça. (Cap. II, item 19.)

O instinto e a inteligência
• Item 18 •
Sendo o instinto o guia, e sendo as paixões as molas da alma no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes se confundem em seus efeitos. Há, entretanto, entre esses dois princípios, diferenças que é preciso considerar.
O instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, depois de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca prejudicial. Enfraquece-se pela predominância da inteligência.
As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o fato de serem as criaturas solicitadas por uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais do que o instinto, do organismo. O que, acima de tudo, as distingue do instinto, é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes. Variam, ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São úteis, como estimulante, até a eclosão do senso moral que, de um ser passivo, faz que nasça um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, mas prejudiciais ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.

O instinto e a inteligência
• Item 19 •
O homem que só agisse pelo instinto poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse o andador e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões só se domam pelo esforço da vontade.

Destruição dos seres vivos uns pelos outros
• Item 20 •
A destruição recíproca dos seres vivos é uma das Leis da Natureza, que, à primeira vista, menos parecem conciliar-se com a bondade de Deus. Pergunta-se por que Deus criou para eles a necessidade de mutuamente se destruírem, para se alimentarem uns à custa dos outros.
Para quem vê apenas a matéria e restringe a sua visão à vida presente, parece, de fato, que há uma imperfeição qualquer na obra divina. É que em geral os homens julgam a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medem a sabedoria divina pelo próprio julgamento que dela fazem, e pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam. Como a curta visão de que dispõem não lhes permite apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa decorrer de um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua essência verdadeira, bem como o da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da Criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a sabedoria providencial e a harmonia, justamente onde apenas vê uma anomalia e uma contradição.

Destruição dos seres vivos uns pelos outros
• Item 21 •
A verdadeira vida, tanto do animal quanto do homem, não está no envoltório corpóreo, do mesmo modo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Esse princípio necessita do corpo para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, dele sai cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto. Que importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos frequentemente de envoltório? Não deixa por isso de ser Espírito. É absolutamente como se um homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem.
Por meio do espetáculo incessante da destruição, Deus ensina aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual, fazendo que a desejem como uma compensação.
Deus, alegarão, não podia chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se entredevorarem? Se tudo é sabedoria em sua obra, devemos supor que esta não existirá mais num ponto do que em outros; se não o compreendemos assim, devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, devemos tentar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso, tomando por bússola este princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que ultrapasse o nosso entendimento.

Destruição dos seres vivos uns pelos outros
• Item 22 •
Uma primeira utilidade que se apresenta de tal destruição, utilidade puramente física, é verdade, é esta: os corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas, por só elas conterem os elementos nutritivos necessários à transformação deles. Como os corpos, instrumentos de ação do princípio inteligente, precisam ser constantemente renovados, a Providência faz que sirvam ao seu mútuo entretenimento. É por isso que os seres se nutrem uns dos outros. Mas, então, é o corpo que se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere. Fica apenas despojado do seu envoltório. [3] [4]

Destruição dos seres vivos uns pelos outros
• Item 23 •
Há também considerações morais de ordem mais elevada. É necessária a luta para o desenvolvimento do Espírito. Na luta é que ele exercita as suas faculdades. O que ataca em busca do alimento e o que se defende para conservar a vida usam de habilidade e inteligência, aumentando, em consequência, suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi que o mais forte ou o mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais; mais tarde o Espírito, que não morreu, tomará outra.

Destruição dos seres vivos uns pelos outros
• Item 24 •
Nos seres inferiores da Criação, naqueles a quem ainda falta o senso moral, nos quais a inteligência ainda não substituiu o instinto, a luta não pode ter por objetivo senão a satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das necessidades materiais mais imperiosas é a da alimentação. Eles, pois, lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma se elabora e ensaia para a vida.
No homem, há um período de transição em que ele mal se distingue do bruto. Nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por alvo a satisfação das necessidades materiais. Mais tarde, contrabalançam-se o instinto animal e o sentimento moral; o homem então luta, não mais para se alimentar, mas para satisfazer à sua ambição, ao seu orgulho e à necessidade de dominar. Para isso, ainda lhe é preciso destruir. Todavia, à medida que prepondera o senso moral, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir, acabando mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa. O homem tem horror ao sangue.
Entretanto, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois mesmo chegando a esse ponto que nos parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito. Só à custa de muita atividade adquire conhecimentos, experiência e se despoja dos últimos vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que era, se torna puramente intelectual. O homem luta contra as dificuldades, e não mais com os seus semelhantes. [5]

[1] N. do T.: Veja-se a nota de rodapé nº 12, p. 81.

[2]N. de A. K.: O erro consiste em pretender-se que a alma tenha saído perfeita das mãos do Criador, quando este, ao contrário, quis que a perfeição fosse resultado da depuração gradual do Espírito e sua própria obra. Quis Deus que a alma, em virtude do seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e chegasse às suas finalidades últimas de forma militante e resistindo ao mal. Se tivesse criado a alma tão perfeita quanto Ele, e, saindo de suas mãos, a houvesse associado à sua beatitude eterna, Deus tê-la-ia feito não à sua imagem, mas semelhante a si próprio. (Bonnamy, juiz de instrução: A razão do Espiritismo, cap. VI.)

[3]N. de A. K.: Veja-se a Revista Espírita, agosto de 1864, “Extinção das raças”.

[4] N. do T.: A “extinção das raças” a que se refere Kardec é contemplada no artigo “Questões e problemas – Destruição dos aborígenes do México”. Veja-se as pp. 325-333 da Revista Espírita de agosto de 1864, 3. ed., FEB.

[5]N. de A. K.: Sem prejulgar das consequências que se possam tirar desse princípio, apenas quisemos demonstrar, mediante essa explicação, que a destruição dos seres vivos uns pelos outros em nada infirma a sabedoria divina, e que tudo se encadeia nas Leis da Natureza. Esse encadeamento forçosamente se quebra, desde que se abstraia do princípio espiritual. Muitas questões permanecem insolúveis, por se levar em conta somente a matéria. As doutrinas materialistas trazem em si o princípio de sua própria destruição. Têm contra si não só o antagonismo com as aspirações da universalidade dos homens e suas consequências morais, que farão que elas sejam repelidas como dissolventes da sociedade, mas também a necessidade que o homem experimenta de se inteirar de tudo o que resulta do progresso. O desenvolvimento intelectual conduz o homem à pesquisa das causas. Ora, por pouco que ele reflita, não tardará a reconhecer a impotência do materialismo para tudo explicar. Como é possível que doutrinas que não satisfazem ao coração, nem à razão, nem à inteligência, que deixam problemáticas as mais vitais questões, venham a prevalecer? O progresso das ideias aniquilará o materialismo, como matou o fanatismo.

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