Estante da Vida
Versão para cópiaO malfeitor
Terminada que foi a tarefa de evangelização no templo espírita, a que emprestávamos concurso fraterno, acompanhei Anísio Terra, amigo espiritual de muito tempo, que me dissera estar encarregado por alguns instrutores de socorrer um moço obsesso, ameaçado de colapso nervoso naquela mesma noite. Por espírito de aprendizado, dispus-me a seguir o companheiro que se postara rente a dois cavalheiros bem-postos, distintos irmãos encarnados, que Terra me designou pelos nomes de Noronha e Silva, conhecidos dele e frequentadores da casa.
Atento ao hábito de cooperar sem perguntar, acomodei-me, ao lado de Anísio, no ônibus que levava os dois senhores, que passaram a entretecer curioso diálogo.
— Creia que fiquei emocionado com a preleção evangélica de hoje. Há muito tempo não ouço um orador emitindo conceitos tão felizes em torno da caridade falou Noronha, comovido.
— Sem dúvida… — respondeu Silva, reticencioso.
— Não acha você que os Bons Espíritos nos falaram por ele, induzindo-nos à piedade?
— Que quer dizer com isso? — disse o outro em tom de mofa.
— Nosso plano para esta noite…
— Será cumprido.
— Mas, você compreende… Existem muitos caminhos para o reajuste de alguém, sem violência, sem escândalo.
— Ora essa! Você está com um malfeitor dentro de casa, como tudo indica, entre os próprios empregados, e desiste de pôr a coisa em pratos limpos?!…
— Sim, sim… É preciso pensar. Provoquei a viagem de minha mulher, dei férias aos quatro, comunicando a eles que me ausentaria ao encontro dela, a partir de hoje, na convicção de que o autor do furto, do mês passado, venha a surgir agora, já que guardamos silêncio e procuramos sair de novo, mas, depois de ouvir a preleção evangélica…
— Que é isto, homem de Deus? O Evangelho não aplaude roubalheiras…
— Mas nos chama à caridade uns com os outros.
— E a cadeia não é caridade para o delinquente?
— Oh! Silva, não diga isso!… Por amor de Deus!…
— Você não recuará. Sou eu quem não deixa.
— Não será melhor esperarmos a criatura infeliz com a palavra do Evangelho? Se orarmos, pedindo o socorro de nossos guias, não será mais justo que solicitar a intervenção da polícia?
— Não, não me venha com essa! Você é meu cunhado e os valores de minha irmã que desapareceram são bens de família. Assumo a responsabilidade. Defenderei vocês dois e não retrocedo no que foi resolvido. E, consultando o relógio, Silva acrescentou: São mais de dez horas. Entraremos no escuro, ficaremos no quarto contíguo à alcova do cofre e, se o ladrão ou a ladra aparecerem, permitiremos que comece a revistar os guardados e, assim que o biltre ou a megera se engolfarem na busca, trancaremos a porta, por fora, e, em seguida, meu caro, é o telefone e a radiopatrulha.
— Mas, Silva…
— Nada de escapatória… Malfeitores não entendem de conselhos, nem de orações, são gente criada como as bestas do campo, abandonadas aos próprios instintos… E homem ou mulher que crescem ao sabor das próprias tendências são, quase sempre, criminosos natos…
— Silva, o coração me dói…
— Não há razão para isso. Tudo faz crer que o ladrão estará entre os seus quatro empregados; precisamos averiguar quem é o culpado e a polícia faz isso muito bem, sem que necessitemos punir a alguém com as próprias mãos.
— Penso que deveríamos ser mais humanos…
— Não perca tempo, filosofia tem lugar próprio.
Nesse ponto da conversa, efetuou-se a descida. Ambos os interlocutores apearam do ônibus e rumaram para a grande residência dos Noronha, enquanto nos pusemos a segui-los de perto.
Entraram à socapa, varando o silêncio e a sombra, e colocaram-se de plantão, num aposento espaçoso, vizinho da câmara estreita, em que naturalmente se localizaria o cofre da família.
Duas horas de expectativa passaram morosas, pingando laboriosamente os minutos.
Algum tempo depois de zero hora, alguém penetrou a casa… Pé ante pé, atravessou dois salões e, como quem conhecia todos os cantos do largo domicílio, encaminhou-se para a alcova indicada.
Mais alguns instantes de sofreguidão e, ao modo de gatos pulando no objetivo após longo tempo na mira. Silva e Noronha cerraram a porta, no lado externo, enquanto o salteador passou a gritar lancinantemente.
Fez-se tumulto. Os dois amigos correram de um lado para outro. Acender de luzes, chamada ao telefone, pedido de urgência à radiopatrulha. Nada de atenção para com a voz angustiada, suplicando socorro.
Noronha, sensível, mostrava-se acabrunhado, ao passo que Silva, em agitação, saiu à porta de entrada, rogando a colaboração de populares, preparando espetaculosamente a recepção das autoridades.
Terra, muito sereno, recomendou-me sustentar as forças de Noronha, enquanto se dirigiria para a alcova, de modo a socorrer o prisioneiro, em acerba algazarra.
Poucos minutos e a sirene policial anunciou a chegada da missão punitiva.
Silva propunha providências e explicava pormenores, transeuntes detidos para a cooperação de emergência, renteando com os guardas, ouviam, curiosos.
De armas em punho e com avisos prévios ao malfeitor para que não reagisse, foi aberta a porta e um jovem de seus vinte e dois anos apareceu em lágrimas. Avistando Silva, atirou-se-lhe aos braços, clamando em desespero:
— Socorro!… Socorro, meu pai!…
Silva abaixou a cabeça, envergonhado. Encontrara ali seu próprio filho.
(.Humberto de Campos)
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