Estante da Vida
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Enquanto agíamos na prestação de socorro a companheiros em prova, horas após enorme desastre em que dezenas de pessoas perderam a existência por afogamento num grande rio, encontrei a folha de anotações de Joaquim Nonato, cuja presença entre os desencarnados me fora apontada por um amigo. Impressionado com a leitura desse curioso documento, empapado de lodo, sinto-me no dever de transcrevê-lo, na íntegra:
2-1-1966 — Estou iniciando o meu trabalho deste ano, decidido a ganhar mais dinheiro. Não renuncio a isso. Voltei ontem à casa do primo Juca e ouvi a mesma cantilena. Duro pensar que ele repete o caso, há dez anos sem falhar!… Coitado! Homem bom, mas crédulo demais. Escutou, no grupo de espíritas que frequenta, algum velhaco interessado em surripiar-me dinheiro e afirma que só a caridade poderá remover a provação que me espera… Contou-me o pobre Juca que ele mesmo, numa visão, me enxergou em vida passada, na condição de malfeitor, afogando um viajante, alta noite, para roubar-lhe grande fortuna!… e acrescentou que o médium da confiança dele confirma isso. Mas não é só. Puseram o nome de minha mãe, morta há trinta anos, nessa história engraçada. Diz o médium que a velha me mandou pedir auxiliar os outros, amparar os necessitados e beneficiar o próximo, tomando a caridade por patrona de minha defesa, assim como alguém, que se encontra complicado em assuntos com a justiça, contrata o apoio de um advogado… Minha mãe teria dado comunicações rogando para que eu distribua pelo menos a quinta parte do meu dinheiro em boas obras, de modo a evitar grande parte dos meus sofrimentos futuros!… O infeliz do Juca ainda tentou persuadir-me que, diante das Leis de Deus, é possível resgatar em amor ao próximo as dívidas que nos cabe solver em provação… Boa bola!… Meu dinheiro é o que eles querem!… Coitado do Juca! Esse caso de avisos é simplesmente o resultado de conversa minha. Há onze anos, sonhei que estava atirando um homem nas águas de um rio, depois de havê-lo espancado para furtar-lhe a bolsa. Acordei suado, aflito. Fiz a bobagem de contar isso, na loja do Ascânio, em Bonsucesso, numa roda de amigos e, com certeza, os espíritas tomaram conhecimento de minha imprudência e agora me cercam no intuito de me extorquirem dinheiro… Estão muito enganados. Não darei um tostão a ninguém. Quem gosta de fantasma é criança. O bobo do meu primo ainda me veio explicar que há muita gente sofrendo por aí e que devo ajudar… Essa é boa! Não sou dono do mundo!…
4-2-1966 — Executei a viúva Soares e recebi os dois milhões que ela teimava em não pagar, alegando as dificuldades em que ficou, depois da morte do marido. Chorou, chorou, mas caiu com os cobres. Quando vendi ao casal o lote 16, o homem não me falou que era doente e, afinal, eu não mando na morte…
15-3-1966 — Queixei-me à polícia do velho Cirino Arão. Velho atrevido!… Além do débito de um milhão e quinhentos mil em que está atrasado comigo, desde quatro dias, ainda me insultou, chamando-me “pão duro”… Mas isso não fica assim, não… Ele será chamado às falas e resolverá o problema. Não perdoarei um vintém…
16-4-1966 — Juca telefonou-me, aconselhando para que me lembre da mensagem e visite, em companhia dele, uma casa de órfãos. Simples armadilha. Neguei-me. Não quero encontrar espertalhões. Tenho mais que fazer. Disse-lhe, claramente, que preciso ir hoje a Nova Iguaçu receber os dois milhões restantes dos seis lotes que vendi no mês passado.
10-5-1966 — Executei a lavadeira Ernestina em oitocentos mil cruzeiros… Lastimava-se de que não poderia pagar agora as prestações do terreno que me comprou, porque os quatro filhos adoeceram ao mesmo tempo… Essa gente é uma fábula!… Na hora de comprar, é promessa; no pagamento, é choradeira.
2-6-1966 — Fui pessoalmente à cobrança dos seis milhões que diversos clientes me devem, desde janeiro. Todos pagarão ou acertarão contas com a Justiça…
10-7-1966 — Recebi hoje quatro geladeiras e duas máquinas de costura para abater débitos atrasados. Tudo em bom estado. Creio que farei um milhão e duzentos mil, à vista, com esse material.
11-8-1966 — Juca voltou a procurar-me para falar de reencarnações passadas, e de beneficência para melhorar a vida. Hoje, não aguentei… Ri na cara dele. Só receberei recados de outro mundo, se algum Espírito me ensinar o melhor modo de evitar caloteiros.
14-9-1966 — Executei João Serra em novecentos mil… Sempre a mesma história… Doença e doença… Nada tenho com isso…
20-10-1966 — Telefonema de Juca. Quer visitar-me com o médium dos avisos e das caridades… Respondi que não posso recebê-los agora, por estar comprometido numa viagem a São Paulo… Já sei o que procuram…
10-11-1966 — Tenho estudado com o meu procurador a melhor maneira de forçar meus devedores ao pagamento dos terrenos que vendi sem maiores garantias. Começarei meus negócios no ano próximo, com nova orientação. Tenho sido idiota. Perco os melhores lucros por excesso de tolerância. Obrigação de quem deve é pagar.
29-12-1966 — Apesar da luta, suponho que poderei seguir no mês próximo para São Paulo, a fim de colocar algum dinheiro a juros mais altos, com amigos industriais… Juca me procurou quatro vezes, nas vésperas do Natal, dizendo à empregada que era portador de recados de minha mãe… Já sei… Queria dinheiro para donativos a desocupados e vagabundos. Nada disso… O que é meu, é meu…
Aqui terminavam as anotações que li, comovidamente.
Em seguida, mergulhamos na corrente espessa do rio em assombrosa cheia. Preso ao barro viscoso do fundo, estava o cadáver disforme de Joaquim Nonato e, a poucos metros, vimos a pasta dele, começando a perder irremediavelmente na lama o valioso conteúdo de vinte e dois milhões.
(.Humberto de Campos)
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