Há dois mil anos...

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Capítulo X

Nos derradeiros minutos de Pompeia

SEGUNDA PARTE. • SEGUNDA PARTE.


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Em radiosa manhã do ano de 79, toda Pompeia  despertou em rumores festivos.

A cidade havia recebido a visita de um ilustre questor do Império e, naquele dia, todas as ruas se movimentavam em alacridade barulhenta, aguardando-se, para breves horas, as festas deslumbrantes do anfiteatro, com que a administração desejava celebrar o evento, em meio da alegria geral.

Para o velho senador Públio Lêntulus, o acontecimento se revestia de importância especial, porquanto o distinto hóspede de Pompeia lhe trazia significativa mensagem, bem como honrosas deferências de Tito Flávius Vespasiano, então imperador, na sucessão de seu pai.

Ainda mais.

No séquito do questor ilustre vinha, igualmente, Plínio Sevérus, em plenitude de maturidade, totalmente regenerado e julgando-se agora redimido no conceito da esposa e daquele que o seu coração considerava como pai.

 

Nesse dia, enquanto Ana comandava, verbalmente, as atividades domésticas nos preparativos da recepção, mobilizando escravos e servos numerosos, Públio e filha se abraçavam comovidos, em face da cariciosa surpresa que o destino lhes reservara, embora tardiamente. Avisados por mensageiros da caravana de patrícios ilustres, davam larga às emoções mais gratas do espírito, na doce perspectiva de acolherem o filho pródigo, tantos anos distante de seus braços carinhosos e amigos.

Antes do meio-dia, um deslumbramento de viaturas, de cavalos ajaezados e de joias faiscantes sobre vestiduras reluzentes se deparava às portas da vila plácida e graciosa, provocando a admiração e o interesse curioso das vizinhanças. E, em seguida foi um turbilhão de abraços, carinhos, palavras confortadoras e generosas.

Quase todos os patrícios, em excursão pela Campânia,  conheciam o senador e sua família, representando esse acontecimento um suave encontro de corações.

 

Públio Lêntulus abraçou Plínio, demoradamente, como se o fizesse a um filho bem-amado, que voltasse de longe e cuja ausência houvera sido excessivamente prolongada, embora experimentasse no íntimo impulsos de extravasão de afeto, que seu coração dominou, para não provocar a admiração injustificada dos circunstantes.

— Meu pai, meu pai! — disse o filho de Flamínio em tom discreto e quase imperceptível aos seus ouvidos, quando lhe beijava a fronte encanecida — já me perdoastes?

— Ó filho, como tardaste tanto?!… Quero-te como sempre e que o Céu te abençoe!… — respondeu o velho cego, emocionado.

Daí a instante, após o doce encontro de Plínio e sua mulher, exclamou o questor em meio do silêncio geral:

— Senador, honro-me em trazer-vos preciosa lembrança de César, acompanhada de uma mensagem de reconhecimento da alta administração política do Império, um dos mais fortes e mais justos motivos de minha permanência em Pompeia, e incumbo o nosso amigo Plínio Sevérus de vos entregar, neste momento, estas relíquias que representam uma das mais significativas homenagens do Império ao esforço de um dos seus mais dedicados servidores!…

 

Públio Lêntulus sentia bem a suprema emoção daquela hora.

A homenagem do imperador, a carinhosa presença dos amigos, a volta do genro aos seus braços paternos, representavam para o seu coração uma alegria entontecedora.

Seus olhos, entretanto, nada podiam ver. Do seio da sua noite, ouvia aqueles apelos generosos, como um desterrado da luz, de quem se exumassem as recordações mais carinhosas, e mais doces.

— Amigos — disse, enxugando uma lágrima furtiva nos olhos apagados —, tudo isso é para mim a maior recompensa de uma vida inteira. Nosso imperador é um espírito excessivamente generoso, porque a verdade é que nada fiz para merecer o reconhecimento da pátria. Minhalma, todavia, exulta convosco, meus patrícios, porque a nossa reunião nesta casa é símbolo de união e trabalho, nos elevados encargos do Império!…

 

Nesse instante, contudo, alguém tomava-lhe as mãos encarquilhadas, levando-as aos lábios úmidos, deixando, porém, nas pequeninas conchas das rugas, duas lágrimas ardentes.

Plínio Sevérus, num gesto espontâneo, ajoelhara-se e, osculando-lhe as mãos, dava expansão ao seu afeto e reconhecimento, ao mesmo tempo que lhe fazia entrega da mensagem imperial que o velho senador não mais podia ler.

Públio Lêntulus chorava, sem poder pronunciar uma única palavra, tal a emoção que lhe oprimia o íntimo, enquanto os circunstantes lhe acompanhavam as atitudes com os olhos rociados de pranto.

 

Nesse ínterim, o filho de Flamínio não mais se conteve e, consagrando a sua regeneração espiritual, exclamava enternecido:

— Meu querido pai, não choreis, se aqui nos achamos todos para compartilhar vossa alegria!… Diante de todos os nossos amigos romanos, com a homenagem do Império, eu vos entrego o meu coração regenerado para sempre!… Se estais agora cego, meu pai, não o estais pelo espírito que sempre procurou dissipar as sombras e remover tropeços do nosso caminho!… Continuareis guiando os meus, ou, melhor, os nossos passos, com as vossas antigas tradições de sinceridade e de esforço, na retidão do proceder!… Voltareis comigo para Roma e, junto de vosso filho reabilitado, organizareis novamente o palácio do Aventino… Serei, então, para todo o sempre, uma sentinela do vosso espírito, para vos amar e proteger!… Tomarei minha esposa a meu inteiro cuidado e, dia a dia, tecerei para nós três uma auréola de venturas novas e indefiníveis, com os milagres da minha afeição imorredoura! Em nossa casa do Aventino florescerá uma alegria nova, porque hei-de prover todas as vossas horas com o amor grande e santo de quem, conhecendo todas as duras experiências da vida, sabe agora valorizar seus próprios tesouros!…

 

O velho senador, alquebrado pelos anos e pelos mais rudes sofrimentos, conservava-se de pé, acariciando os cabelos do genro, igualmente prateados pelos invernos da vida, enquanto pesadas lágrimas rompiam a muralha da sua noite para enternecer o coração de todos, numa angustiosa e indefinível emotividade. Flávia Lentúlia chorava, igualmente, dominada por íntimas sensações de felicidade, ao cabo de tão longas e desalentadas esperanças!…

Alguns amigos desejavam quebrar a solenidade dolorosa daquele quadro imprevisto, mas o próprio questor, que chefiava a caravana de patrícios ilustres, se ocultara num recanto, sensibilizado até às lágrimas.

Públio Lêntulus, contudo, compreendendo que somente ele próprio poderia modificar as disposições daquela paisagem sentimental, reagiu às emoções, exclamando:

— Levanta-te, meu filho!… Nada fiz para me agradeceres de joelhos… Porque me falas deste modo?… Voltaremos para Roma, sim, em breves dias, pois todos os teus desejos são os nossos… regressaremos à nossa casa do Aventino, onde, juntos, viveremos para relembrar o pretérito e venerar a memória dos nossos antepassados!

E, depois de uma pausa, continuou, em exclamações quase otimistas:

— Meus amigos, sinto-me comovido e grato pela gentileza e carinho de todos vós! Mas, que é isso? Todos silenciosos? Lembrai-vos de que não vos vejo senão através das palavras. E a festa de hoje?…

 

As exclamações do senador quebraram o silêncio geral, voltando-se aos intensos ruídos de minutos antes. A torrente das palestras casava-se ao tinir das taças de vinho, em seus pesados estilos da época.

Enquanto as visitas se reuniam no triclínio espaçoso para libações ligeiras, Plínio Sevérus e a esposa trocavam confidências cariciosas e ternas, ora sobre os projetos em perspectiva para os anos que ainda lhes restavam no mundo, ora quanto às recordações dos dias lentos e amargurados do passado distante.

Insistentes chamados, porém, requeriam a presença do questor e comitiva, no local dos festejos.

O circo fora preparado a rigor e não se perdera nenhuma oportunidade para a realização das menores minudências, próprias das grandes festividades romanas.

 

E ao mesmo tempo que todos se despediam do senador e de sua filha, num deslumbramento de felicidade mundana, Plínio Sevérus dirigia-se a Públio nestes termos, depois de abraçar ternamente a companheira:

— Meu pai, levado pelas circunstâncias, sou compelido a acompanhar o questor nas festividades populares, mas estarei de regresso em breves horas, para ficar convosco um mês, de modo a tratarmos do nosso regresso a Roma.

— Muito bem, meu filho — respondia o velho senador, sumamente confortado —, acompanha os nossos amigos e representa-me junto das autoridades. Dize a todos da minha emoção e do meu agradecimento sincero.

 

A sós novamente, o senador sentiu que aquelas comoções cariciosas e alegres eram, talvez, as últimas da sua vida. No velho peito, o coração batia-lhe descompassado, como se pesada nuvem de pensamentos tristes o envolvesse. Sim, a volta de Plínio aos seus braços paternos era a alegria suprema da sua velhice desalentada. Sabia, agora, que a filha poderia contar com o esposo, nas estradas do seu tormentoso destino e que a ele, Públio, somente competia aguardar a morte, resignado. Ponderando as palavras afetuosas do filho de Flamínio e os seus carinhosos apelos ao passado remoto, Públio Lêntulus considerou, intimamente, que era muito tarde para regressar ao Aventino e que a volta a Roma apenas devia significar, para o seu espírito precito, o símbolo da sepultura.

 

Em pleno espetáculo, Plínio Sevérus, já no outono da vida, arquitetava os planos de futuro. Procuraria resgatar todas as faltas antigas, perante os seus parentes afetuosos e queridos; assumiria a direção de todos os negócios do velho pai pelo coração, aliviando-o de todas as angustiosas preocupações da vida material.

De vez em quando, os aplausos da multidão lhe interrompiam os devaneios. A maioria da população de Pompeia ali estava em plena festa ovacionando os triunfadores. Gente de toda a redondeza e muito particularmente de Herculânum,  acorrera pressurosa ao divertimento predileto daquelas épocas recuadas. De permeio com os atletas e gladiadores, estavam os músicos, os cantores e os dançarinos. Tudo era um farfalhar de sedas, um delicioso chocalhar de alegrias ruidosas, ao som de flautas e alaúdes.

 

Em dado instante, porém, a atenção geral foi solicitada por um fato estranho e incompreensível. Do cimo do Vesúvio elevava-se grossa pirâmide de fumo, sem que ninguém atinasse com a causa do fenômeno insólito.

Continuavam os jogos animadamente, mas agora, no seio da coluna fumarenta que se elevava em caprichosos rolos para o alto, surgiam impressionantes labaredas…

Plínio Sevérus, como todos os presentes, se surpreendia com o fenômeno estranho e inexplicável.

Em minutos breves, no entanto, estabeleciam-se no anfiteatro a confusão e o terror.

Em meio da perturbação geral e imprevista, o filho de Flamínio ainda teve tempo de se aproximar do questor, então rodeado dos seus familiares que residiam na cidade, o qual lhe falou com otimismo, embora não conseguisse dissimular de todo as íntimas inquietações:

— Meu amigo, tenhamos calma! Pelas barbas de Júpiter!… Então, por onde andarão a nossa coragem e a nossa fibra?

 

Mas, em breves instantes a terra lhes tremia sob os pés, em vibrações desconhecidas e sinistras. Algumas colunas tombavam ao solo, pesadamente, enquanto numerosas estátuas rolavam dos nichos improvisados, recamados de ouro e pedrarias.

Abraçando-se, então, à filha e cercado de numerosas senhoras, o questor disse altamente preocupado:

— Plínio, demandemos as galeras, sem demora!…

Mas, o oficial romano não mais ouviu os apelos. Ansiosamente, atirou-se à faina de romper a multidão, que desejava retirar-se em massa do circo, motivando o esmagamento de crianças e pessoas mais idosas.

Ao cabo de sobre-humano esforço, conseguiu alcançar a rua, mas todos os lugares estavam tomados pela massa que saía de casa, desarvorada, aos gritos de “Fogo!… Fogo!… O Vesúvio…”

 

Plínio verificou que todas as vias públicas estavam repletas de gente desesperada, de viaturas e de animais espavoridos.

Com enorme dificuldade, vencia todos os obstáculos, mas o Vesúvio lançava agora, para o céu, uma fogueira indescritível e imensa, como se a própria Terra houvera incendiado as entranhas mais profundas.

Uma chuva de cinza, a princípio quase imperceptível, começou a cair, enquanto o solo continuava a tremer com ruídos surdos, aterradores.

De instante a instante, ouvia-se o estrondo pavoroso de colunas derribadas ou de edifícios desmoronados pelos abalos sísmicos, ao mesmo tempo que o fumo do vulcão ia eclipsando a confortadora claridade solar.

Mergulhada em penumbra espessa e tomada de terror indizível, Pompeia assistia aos seus últimos instantes numa aflição desesperada…

 

Na vila de Lêntulus, os escravos perceberam imediatamente o perigo próximo. Nos primeiros momentos, os cavalos relinchavam estranhamente e as aves inquietas fugiam em desespero.

Após a queda das primeiras colunas que sustentavam o edifício, todos os servos do senador abandonaram precipitadamente os postos, desejosos de conservar noutra parte os bens preciosos da vida. Somente Ana ficara junto dos amos, dando-lhes conhecimento dos horrores do ambiente.

Os três, numa justificada inquietude, escutaram o rumor horrível da inolvidável catástrofe do Império. A própria vila estava já meio destruída, penetrando as cinzas pelos desvãos abertos pela queda dos telhados e começando a sua obra de lenta sufocação. Ansiavam todos pelo regresso imediato de Plínio, a fim de resolverem as providências a adotar, mas o velho senador, cujo coração não se iludia nos seus amargurados pressentimentos, exclamou em tom quase resignado:

— Ana, traze a cruz de Simeão e vamos à prece que te foi ensinada pelos discípulos do Messias!… Diz-me o coração que é chegado o fim da nossa romagem pela Terra!

 

Enquanto a serva buscava apressadamente a relíquia do ancião de Samaria, afrontando o perigo das paredes oscilantes, Públio Lêntulus ouvia o surdo rumor da terra dilacerada e os gritos apavorantes e sinistros do povo, misturados ao barulho tremendo do vulcão que, transformado em fornalha imensa e indescritível, enchia toda a cidade de cinzas e lavas ferventes. , então, o senador, das afirmativas do Cristo nos dias idos da Galileia, quando lhe asseverava que toda a grandeza romana era bem miserável e num minuto breve poderia o Império ser reduzido a um punhado de pó. O coração batia-lhe descompassado naquele minuto extremo, mas a velha serva havia regressado e ajoelhara-se, serena, guardando nas mãos a lembrança de Simeão e de Lívia, orando em voz comovedora e profunda:

“Pai Nosso, que estais no Céu… santificado seja o vosso nome… venha a nós o vosso reino… seja feita a vossa vontade… assim na Terra como nos Céus…” (Mt 6:9)

 

Nesse instante, porém, a voz da serva emudeceu subitamente, enquanto seu corpo rolava sob novos escombros, sentindo-se ela amparada, espiritualmente, pelo venerável samaritano que a conduziu, imediatamente, às mais elevadas Esferas espirituais, tal a pureza do seu coração iluminado nas dores e testemunhos mais angustiosos do aprendizado terrestre.

— Ana!… Ana!… — exclamavam Públio e Flávia, soluçantes, sentindo ambos pela primeira vez o infortúnio do insulamento supremo, sem uma luz e sem um guia, em pleno desamparo!

Alguém, contudo, rompera todos os destroços e chegava, rápido, até àquela câmara interior e, abraçando Públio e sua filha, gritava em voz opressa: — “Flávia, meu pai, aqui estou…”

Plínio chegava, afinal, para o instante derradeiro. Flávia Lentúlia apertou-o carinhosamente nos braços, enquanto o velho senador semi-asfixiado tomava as mãos do filho, abraçando-se os três num amplexo caricioso e derradeiro.

Flávia e Plínio quiseram falar, mas grossa camada de cinzas penetrava o interior, pelas fendas enormes da vila meio destruída…

Mais um estremeção do solo e as colunas que ainda restavam de pé se abateram sobre os três, roubando-lhes as últimas energias e fazendo-os cair assim, enlaçados para sempre, sob um montão de escombros…

 

Naquelas sombras espessas, todavia, pairavam criaturas aladas e leves, em atitudes de prece, ou confortando ativamente o coração abatido dos míseros condenados à destruição.

Sobre os três corpos soterrados permanecia a entidade radiosa de Lívia, junto de numerosos companheiros que cooperavam, com devotamento e precisão, nos serviços de desprendimento total dos moribundos.

Pousando as mãos luminosas e puras na fronte abatida do companheiro exausto e agonizante, Lívia elevou os olhos ao firmamento enegrecido e orou com a suavidade da sua fé e dos seus sentimentos diamantinos.

— Jesus, meigo e divino Mestre — esta hora angustiosa é bem um símbolo dos nossos erros e crimes, através de avatares tenebrosos; mas, vós, Senhor, sois toda a esperança, toda a sabedoria e toda a misericórdia!… Abençoai nosso espírito neste momento ríspido e doloroso!… Suavizai os tormentos da alma gêmea da minha, concedendo-lhe neste instante o alvará da liberdade! Aliviai, magnânimo Salvador do mundo, todas as suas mágoas pungentes, suas desoladoras amarguras!… Concedei-lhe repouso ao coração angustiado e dolorido, antes do seu novo regresso à trama escura das reencarnações no planeta do exílio e das lágrimas dolorosas… Ele já não é mais, Senhor, o vaidoso déspota de outrora, mas um coração inclinado ao bem e à piedade pregados pela vossa doutrina de amor e redenção; sob o peso das provações amargas e remissoras, seus pendores se espiritualizaram a caminho da vossa verdade e da vossa Vida!…

E, enquanto Lívia orava, o senador abraçado aos filhos, já cadáveres, desferia o último gemido, com pesada lágrima a lhe cintilar nos olhos mortos…

Numerosas legiões de seres espirituais volitaram por vários dias, nos céus caliginosos e tristes de Pompeia.

 

Ao cabo de longas perturbações, Públio Lêntulus e filhos despertaram, ali mesmo, sobre o túmulo nevoento da cidade morta.

Em vão o senador invocou a presença de Ana ou de algum outro servo, na penosa ilusão da vida material, persistindo em seu organismo psíquico as impressões da cegueira material, que representara o longo suplício dos seus anos derradeiros, na indumenta da carne.

Contudo, após as primeiras lamentações, ouviu uma voz cariciosa que lhe dizia brandamente:

— Públio, meu amigo, não apeles mais para os recursos do planeta terreno, porque todos os teus poderes terminaram com os teus despojos, na face escura e triste da Terra! Apela para Deus Todo-Poderoso, cuja misericórdia e sabedoria nos são dadas pelo amor do seu Cordeiro, que é Jesus-Cristo!…

Públio Lêntulus não chegou a lobrigar o interlocutor, mas identificou a voz de Flamínio Sevérus, desabafando, então, numa torrente de preces e de lágrimas fervorosas.

Embora as dedicações constantes de Lívia, havia já alguns dias que seu espírito se encontrava presa de pesadelos angustiosos, nos primeiros instantes da vida do Além, assistido, porém, continuamente por Flamínio e outros companheiros abnegados, que o aguardavam no Plano espiritual.

 

Contudo, depois daquelas súplicas sinceras que lhe fluíam do mais recôndito do coração, sentiu que seu mundo interior se desanuviara… Junto dos filhos queridos, recobrou a visão e reconheceu os entes amados, com lágrimas de amor e reconhecimento, nos pórticos do além-túmulo.

Ali se conservavam numerosas personagens desta história, como Flamínio, Calpúrnia, Agripa, Pompílio Crasso, Emiliano Lúcius e muitos outros; mas, em vão, os olhos angustiosos do ex-senador procuravam alguém na assembleia afetuosa e amiga.

Depois de todas as expansões de carinho e alegria dirigiu-se-lhe Flamínio, intencionalmente.

— Estranhas a ausência de Lívia — dizia ele com o seu olhar complacente e generoso —, mas não poderás vê-la, enquanto não conseguires despir, pela prece e pelos bons desejos, todas as impressões penosas e nocivas da Terra. Ela se tem conservado junto do teu coração, em rogativas sinceras e fervorosas pelo teu reerguimento, mas o nosso grupo ainda é de Espíritos muito apegados ao orbe, e esperávamos o regresso dos seus últimos componentes, ainda na Terra, para podermos, em conjunto, estabelecer novo roteiro às reencarnações vindouras… Séculos de trabalho e de dor nos esperam na senda da redenção e do aperfeiçoamento, mas precisamos, antes de tudo, buscar a fortaleza precisa em Jesus, fonte de todo o amor e de toda a fé para as elevadas realizações do nosso pensamento!…

 

Públio Lêntulus chorava, tocado por emoções estranhas e indefiníveis…

— Meu amigo — continuou Flamínio, carinhoso —, pede a Jesus por todos nós, a misericórdia dessa claridade de um novo dia!…

Públio, então, ajoelhou-se e, banhado em lágrimas, concentrou o coração em Jesus numa rogativa ardente e silenciosa… Ali, na soledade da sua alma intrépida e sincera, apresentava ao Cordeiro de Deus o seu arrependimento, suas esperanças para o porvir, suas promessas de fé e de trabalho para os séculos porvindouros!…

Todos os presentes lhe acompanharam a oração, tomados de pranto e mergulhados em vibrações cariciosas de consolação indefinível…

Viram, então, rasgar-se um caminho luminoso e florido nos céus escuros e tristes da Campânia, e, por ele, como se descessem dos jardins fulgurantes do Paraíso, surgiram Lívia e Ana abraçadas, como se ainda ali enviasse Jesus um ensinamento simbólico àquelas almas prisioneiras da Terra, de modo a lhes revelar que, em qualquer posição, pode a alma encarnada buscar o seu reino de luz e de paz, de vida e de amor, tanto na túnica humilde do escravo, como na pomposa indumentária dos senhores.

O velho patrício contemplou a figura radiosa da companheira e, extasiado, fechou os olhos banhados no pranto da compunção e do arrependimento; mas, em breve, dois lábios de névoa pousavam-lhe na fronte, qual o leve roçar de um lírio divino. E, enquanto seu coração maravilhado se lavava nas lágrimas da alegria e do reconhecimento a Jesus, toda a caravana, ao impulso poderoso das preces fervorosas daquelas duas almas redimidas, elevava-se a Esferas mais altas, para repouso e aprendizado, antes de novas etapas de regeneração e trabalhos purificadores, a lembrar um grupo maravilhoso de luminosas falenas do Infinito!…




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

O Apóstolo da Samaria

PRIMEIRA PARTE • PRIMEIRA PARTE
No dia seguinte, Públio Lêntulus incentivou as pesquisas do filhinho, entre quantos peregrinavam nas festas da Páscoa, em Jerusalém,  instituindo o prêmio de um Grande Sestércio  ou sejam dois mil e quinhentos asses, para quem apresentasse aos seus servos a criança desaparecida.

 

Não devemos esquecer que a criada Sémele, bem como suas companheiras de serviço foram submetidas ao mais rigoroso inquérito, por ocasião do castigo aos servos imprevidentes, encarregados da vigilância noturna em casa do senador.

 

Públio não admitia castigos físicos às mulheres, mas, no caso misterioso do desaparecimento do filhinho, submeteu as criadas a um interrogatório francamente impiedoso.

 

 

Inútil declarar que Sémele protestara a mais absoluta inocência, nada deixando transparecer que pudesse comprometer sua conduta.

 

Entretanto, as três servas que mais diretamente cuidavam do pequeno, entre as quais estava ela incluída, foram obrigadas a colaborar com os escravos na procura de Márcus, pelas praças e ruas de Jerusalém, embora tivessem suas horas diárias consagradas ao descanso. Essas horas, aproveitava-as Sémele para visitar ou rever relações amigas, passando a maior parte do tempo no sítio onde André cultivava as suas oliveiras e vinhedos frondosos, a pouca distância da entrada para os centros principais.

 

 

Nesse dia, vamos encontrá-la aí em animada palestra com o raptor e sua mulher, enquanto a criança dormitava ao canto de um compartimento.

 

— Com que então, o senador instituiu o prêmio de um Grande Sestércio a quem lhe devolva a criancinha? — pergunta André de Gioras, admirado.

 

— É verdade— exclamou Sémele, pensativa. E, na realidade, trata-se de grande soma em dinheiro romano, que ninguém ganhará neste mundo.

 

— Se não fosse o meu justo e ardente desejo de vingança — replicou o raptor com o seu malicioso sorriso —, era o caso de irmos abocanhar essa respeitável quantia. Mas, deixa estar que não precisamos de semelhante dinheiro. Nada necessitamos desses malditos patrícios!

 

 

Sémele escutava-o indiferente e quase completamente alheia à conversa; entretanto, o interlocutor não perdia de vista as características fisionômicas de sua cúmplice, como se tentasse descobrir no seu modo simples e humilde algum pensamento reservado.

 

Foi assim que, no intuito de lhe sondar a atitude psicológica, disse em tom aparentemente calmo e despreocupado, como a inquirir dos seus propósitos mais secretos:

 

— Sémele, quais são as últimas notícias de Benjamim?

 

— Ora, Benjamim — respondeu ela, aludindo ao noivo — ainda não se resolveu a marcar o casamento, em definitivo, atento às nossas inúmeras dificuldades.

 

 

Como não ignora, todo o meu desejo de trabalhar se resume na consecução do nosso ideal de adquirir aquela casinha de Betânia,  já sua conhecida, e tão logo venhamos a conseguir nosso intento estaremos unidos para sempre.

 

— Ainda bem — disse André, com a atitude psicológica de quem encontrara a chave de um enigma —, com tempo haverão de conseguir todo o necessário à ventura de ambos. Da minha parte, pode ficar descansada, porque tudo farei por auxiliá-la paternalmente.

 

— Muito grata! — exclamou a moça, reconhecida. — Agora há-de permitir que volte ao trabalho, porque as horas parecem adiantadas.

 

— Ainda não — falou André resolutamente —, espere um momento. Quero dar-lhe a provar do nosso vinho velho, aberto hoje somente para comemorar a circunstância feliz de nos acharmos com vida, depois do medonho temporal de ontem!

 

 

E, correndo ao interior, penetrou na adega, onde tomou de uma bilha de vinho espumante e claro, deitando-o, com fartura, numa taça antiga. Em seguida, foi a um quarto contíguo, de onde trouxe um tubo pequenino, deixando cair na taça algumas gotas do conteúdo, monologando baixinho:

 

— Ah! Sémele, bem poderias viver, se não surgisse esse prêmio maldito, que te condena à morte!… Benjamim… o casamento é uma situação de amargurosa pobreza. — Uma soma de mil sestércios constitui tentação a que não poderia resistir o espírito mais bem intencionado e mais puro… Enquanto foram as aperturas e outros castigos, estava certo, mas agora é o dinheiro e o dinheiro costuma condenar as criaturas humanas à morte!…

 

 

E, misturando o tóxico violento no vinho que espumava, continuou resmungando:

 

— Daqui a seis horas minha pobre amiga estará penetrando o reino das sombras… Que fazer? Nada me resta senão desejar-lhe boa viagem! E nunca mais alguém saberá, neste mundo, que em minha casa existe um escravo com o sangue nobre dos aristocratas do Império Romano!…

 

Em dois minutos a desventurada serva do senador ingeria satisfeita o conteúdo da taça, agradecendo a sinistra gentileza com palavras comovidas.

 

Da porta de sua vivenda empedrada, observou André os passos derradeiros da sua cúmplice, nas derradeiras curvas do caminho.

 

Ninguém mais pleitearia o Grande Sestércio oferecido pela desesperação de Lêntulus, porque, precisamente à noitinha, quase às dezenove horas, Sémele experimentou uma sensação de súbito mal-estar, recolhendo-se ao leito imediatamente.

 

 

Suores abundantes e frios lavaram-lhe as faces já descoradas, onde se notava o palor característico da morte.

 

— Ana, que já havia regressado, compungida, aos afazeres domésticos, foi chamada à pressa, a fim de ministrar-lhe os socorros precisos, encontrando-a, porém, no auge da aflição que assinala os moribundos prestes a se desvencilharem do cárcere da matéria.

 

— Ana… — exclamou a agonizante, com voz sumida —, eu morro… mas tenho a… consciência… pesada… intranquila…

 

— Sémele, que é isso? — replicou a outra, fundamente comovida. Confiemos em Deus, nosso Pai Celestial, e confiemos em Jesus, que ainda ontem nos contemplava da cruz dos seus sofrimentos, com um olhar de infinita piedade!

 

— Sinto… que é… tarde… — murmurou a agonizante, nas ânsias da morte —, eu… apenas… queria… um perdão…

 

 

Todavia, a voz entrecortada e rouca não pôde continuar. Um soluço mais forte abafara as últimas palavras, enquanto o rosto se cobria de tons violáceos, como se o coração houvesse parado instantaneamente, estringido por incontrastável força.

 

Ana compreendeu que era o fim e suplicou a Jesus recebesse em seu Reino misericordioso a alma da companheira, perdoando-lhe as faltas graves que, por certo, haviam dado motivo às palavras angustiosas dos últimos momentos.

 

Chamado um médico ao exame cadavérico, verificou, no empirismo da sua ciência, que Sémele expirara por deficiência do sistema cardíaco e, longe de se descobrir a verdadeira causa daquele fato inesperado, o segredo de André de Gioras se envolvia nas sombras espessas do túmulo.

 

 

Ana e Lívia tiveram ensejo de trocar impressões sobre o doloroso acontecimento, mas, ambas, embora a funda impressão que lhes causavam as derradeiras palavras da morta, encaravam a sua passagem para a outra vida, na conta dessas fatalidades irremediáveis.

 

Públio Lêntulus, em seguida a esse fato, apressou o regresso à vivenda de Cafarnaum,  que adquirira ao antigo dono, em caráter definitivo, prevendo a possibilidade de longa permanência em tais lugares. O regresso foi triste, jornada trabalhosa e sem esperança.

 

Os servos numerosos não chegaram a perceber a profunda divergência, agora existente entre ele e a esposa, e foi assim que, verdadeiramente separados pelo coração, continuaram no lar a mesma tradição de respeito perante os subordinados.

 

 

Depois de alguns dias de sua segunda instalação na cidade próspera e alegre onde Jesus tantas vezes fizera soar doces e divinas palavras, o senador preparou copioso expediente para o amigo Flamínio, bem como para outros elementos do Senado, enviando Comênio a Roma, como portador de sua inteira confiança.

 

 

Odiando a Palestina,  que tantas e tão amargas provações lhe reservara, mas preso a ela pelo desaparecimento misterioso do pequenino Márcus, o senador solicitava a Flamínio a sua intervenção particular para que seu tio Sálvio regressasse à sede dos seus serviços na Capital do Império, tentando livrar-se da presença de Fúlvia naqueles lugares, porquanto lhe dizia o coração, na intimidade do pensamento, que aquela mulher tinha uma influência nefasta no seu destino e no de sua família. Ao mesmo tempo, saturado de terrível aversão pela personalidade de , punha o amigo distante a par de numerosos escândalos administrativos que ele, após o incidente da Páscoa, resolvera corrigir com o máximo de severidade. Prometia, então, a Flamínio Sevérus, conhecer mais de perto as necessidades da província, a fim de que as autoridades romanas ficassem cientes de graves ocorrências na administração, de modo que, em tempo oportuno, fosse o governador removido para outro setor do Império, e prometendo relacionar, sem demora, todas as injustiças da atuação de Pilatos na vida pública, em vista das reclamações reiteradas e consecutivas que lhe chegavam aos ouvidos, de todos os recantos da província.

 

 

Nessas cartas particulares pedia ainda, ao amigo, as providências precisas, a fim de que lhe fosse enviado um professor para a filhinha, abstendo-se, contudo, de referir-se aos dolorosos dramas da vida privada, com exceção do caso do filhinho, por ele citado nesses documentos como causa única da sua demora indefinida, em tais lugares.

 

Comênio partiu de Jope,  com o máximo de precaução, obedecendo rigorosamente às suas ordens e atingindo Roma daí a algum tempo, onde faria chegar aquelas notícias às mãos dos seus legítimos destinatários.

 

 

Em Cafarnaum, a vida corria triste e silenciosa.

 

Públio apegara-se ao seu arquivo volumoso, aos seus processos, aos seus estudos e às suas meditações, preparando os planos educativos da filha ou organizando projetos concernentes às suas atividades futuras, fazendo o possível para reerguer-se do abatimento moral em que mergulhara com os dolorosos sucessos de Jerusalém.

 

Quanto à Lívia, esta, conhecendo a inflexibilidade do caráter orgulhoso do marido, e sabendo que todas as circunstâncias aparentavam a sua culpa, encontrara na alma delicada da serva uma confidente extremosa no afeto, vivendo quase permanentemente mergulhada em orações sucessivas e fervorosas. Os sofrimentos experimentados patentearam-se-lhe no rosto, revelando profundos vestígios nos sulcos da face descorada. Os olhos, todavia, demonstrando a têmpera e o vigor da fé, clareavam-lhe as expressões fisionômicas de brilho singular, apesar do seu visível abatimento.

 

 

Em Cafarnaum, os seguidores do Mestre de Nazaret organizaram imediatamente uma grande comunidade de crentes do Messias, tornando-se muitos em apóstolos abnegados de sua doutrina de renúncia, de sacrifício e de redenção. Alguns pregavam, como Ele, na praça pública, enquanto outros curavam os enfermos em seu nome. Criaturas rústicas haviam sido tomadas, estranhamente, do mais alto sopro de inteligência e inspiração celeste, porque ensinavam com a maior clareza as tradições de Jesus, organizando-se com a palavra desses apóstolos os pródromos do Evangelho escrito, que ficaria mais tarde no mundo como a mensagem do Salvador da Terra a todas as raças, povos e nações do planeta, qual luminoso roteiro das almas para o Céu.

 

Todos quantos se convertiam à ideia nova, confessavam na praça pública os erros da sua vida, em sinal da humildade que lhes era exigida, portas-a-dentro da comunidade cristã. E para que o meigo profeta, de Nazaret jamais fosse esquecido em seus martírios redentores no Calvário, o povo simples e humilde, de então, organizou o culto da cruz, crendo fosse essa a melhor homenagem à memória de Jesus Nazareno.

 

Lívia e Ana, no seu profundo amor ao Messias, não escaparam a essa adesão natural às tradições populares. A cruz era objeto de toda a sua veneração e absoluto respeito, não obstante representar, naquele tempo, o instrumento de punição para todos os criminosos e celerados.

 

 

Ana continuou a frequentar as margens do lago, onde alguns apóstolos do Senhor prosseguiam cultivando as suas lições divinas, junto dos sofredores deserdados da sorte. E era comum verem-se esses antigos companheiros e ouvintes do Messias, como pegureiros humildes, atravessando estradas agrestes no mais absoluto desconforto, a fim de levarem, a todos os homens as palavras consoladoras da Boa-Nova. Tipos impressionantes de homens simples e abnegados percorriam os mais longos e escabrosos caminhos, de vestes rotas e calçando alpercatas grosseiras, pregando, porém, com perfeição e sentimento, as verdades de Jesus, como se as suas frontes humildes estivessem tocadas da graça divina. Para muitos deles, o mundo não passava da Judeia  ou da Síria;  mas a realidade é que as suas palavras desassombradas e serenas iam permanecer no mundo para todos os séculos.

 

 

Mais de um mês decorrera sobre a Páscoa de 33, quando o senador, por uma tarde formosa e quente da Galileia,  aproximou-se da esposa para lhe dizer dos seus novos propósitos:

 

— Lívia — começou ele, reservado —, tenho a comunicar-lhe que pretendo viajar algum tempo, afastando-me desta casa talvez por dois meses, em cumprimento dos meus deveres de emissário do Imperador, em condições especialíssimas nesta província.

 

Como esta viagem se verificará através de pontos numerosos, porquanto tenciono estacionar um pouco em todas as cidades do itinerário, até Jerusalém, não me é possível levá-la em minha companhia, deixando-a, neste caso, como guardiã de minha filha.

 

 

Como sabe, nada mais existe entre nós que lhe outorgue o direito de conhecer minhas preocupações mais íntimas; todavia, renovo minhas palavras do dia fatal do nosso rompimento afetivo. Conservada nesta casa, apenas pela sua tarefa maternal, confio-lhe durante minha ausência a guarda de Flávia, até que chegue de Roma o velho professor que pedi a Flamínio.

 

Desejo firmemente acredite na confiança que deponho no seu propósito de regeneração, como mãe de família, e que procure restabelecer sua idoneidade que, outrora, não lhe negaria em tais circunstâncias, e espero, assim, se abstenha de qualquer ato indigno, que venha a perder minha pobre filha para sempre.

 

— Públio!… — pôde ainda exclamar a esposa do senador, aflitamente, tentando aproveitar aquele rápido minuto de serenidade do marido, a fim de se defender das calúnias que lhe eram assacadas pelas mais complicadas circunstâncias; mas, afastando-se repentinamente, fechado na sua severidade orgulhosa, o senador não lhe deu tempo de continuar, integrando-a, cada vez mais, no conhecimento da sua amargurada situação dentro do lar.

 

 

Passada uma semana, partia ele para a sua viagem aventurosa.

 

Animavam-no, acima de tudo, o desejo de aliviar o coração de tantos pesares, a tentativa na procura do filhinho desaparecido e o objetivo de catalogar os erros e injustiças da administração de Pilatos, de modo a alijá-lo dos poderes públicos na Palestina, em tempo oportuno.

 

Na sua resolução, todavia, pairava um erro grave, cujas consequências dolorosas não conseguira ou não pudera prever no seu íntimo atribulado. A circunstância de deixar esposa e filha expostas aos perigos de uma região, onde eram consideradas como intrusas, devia ser examinada mais detidamente pela sua visão de homem prático. Além disso, ele não podia contar, nessa ausência, com a dedicação vigilante de Comênio, em viagem, com destino a Roma, onde o conduziam as determinações do patrão e leal amigo.

 

 

Todas essas preocupações andavam no espírito de Lívia, dotada, como mulher, de sentimento mais forte e mais justo, no plano das conjecturas e previsões.

 

Foi assim, de alma aflita, que viu partir o marido, embora houvesse ele recomendado a numerosos servos o máximo de vigilância nos trabalhos da casa, junto aos seus familiares.

 

 

Festividades solenes foram determinadas por Herodes,  em Tiberíade,  previamente avisado pelo senador, a respeito de sua visita pessoal àquela cidade, que representava a primeira etapa da sua longa excursão. Todas as localidades de maior destaque constavam como pontos de parada da caravana, recebendo Públio, em todas elas, as mais expressivas homenagens das administrações e contingentes de escolta e servos inúmeros, que lhe auxiliavam os serviços, naquela demorada excursão através das unidades políticas de menor importância, da Palestina.

 

 

Devemos consignar, porém, que Sulpício Tarquínius se encontrava justamente em missão junto de Ântipas, quando da festiva chegada de Públio Lêntulus à grande cidade da Galileia. Procurou, todavia, não se fazer notado pelo senador, regressando no mesmo dia a Jerusalém, onde vamos encontrá-lo em conferência íntima com o governador, nestes termos:

 

— Sabeis que o senador Lêntulus — dizia Sulpício, com o prazer de quem dá uma notícia desejada e interessante — dispôs-se a efetuar longa viagem por toda a província?

 

— Que? — fez Pilatos grandemente surpreendido.

 

— Pois é verdade. Deixei-o em Tiberíade, de onde se dirigirá para Sebaste  em breves dias, crendo mesmo, segundo o programa da viagem, que pude conhecer graças ao concurso de um amigo, que não voltará a Cafarnaum nestes quarenta dias.

 

— Que intuito terá o senador com viagem tão incômoda e sem atrativo? Alguma determinação secreta da sede do Império? — inquiriu Pilatos, receoso de alguma punição aos seus atos injustos na administração política da província.

 

 

Mas, após alguns segundos de meditação, como se o homem privado sobrepujasse as cogitações do homem público, perguntou ao lictor, com interesse:

 

— E a esposa? Não o acompanhou? Teria o senador a coragem de deixá-la só, entregue às surpresas deste país, onde se aninham tantos malfeitores?

 

— Reconhecendo que teríeis interesse em tais informes — tornou Sulpício, com fingida dedicação e satisfeita malícia —, busquei inteirar-me do assunto com um amigo que segue o viajante, como elemento de sua guarda pessoal, vindo a saber que a senhora Lívia ficou em Cafarnaum, na companhia da filha, e ali aguardará o regresso do esposo.

 

— Sulpício — exclamou Pilatos, pensativo — suponho não ignoras minha simpatia pela adorável criatura a que nos referimos…

 

— Bem o sei, mesmo porque, fui eu próprio, como deveis estar lembrado, que a introduzi no vosso gabinete particular, não há muito tempo.

 

— É verdade!

 

 

— Porque não aproveitais este ensejo para uma visita pessoal a Cafarnaum? — perguntou o lictor, com segundas intenções, mas sem ferir diretamente o melindroso assunto.

 

— Por Júpiter! — redarguiu Pilatos, satisfeito. — Tenho um convite de Cusa e outros funcionários graduados de Ântipas, naquela cidade, que me autoriza a pensar nisso. Mas, a que vem a tua sugestão neste sentido?

 

— Senhor — exclamou Sulpício Tarquínius, com hipócrita modéstia —, antes de tudo, trata-se da vossa alegria pessoal com a realização desse projeto e, depois, tenho igualmente grande simpatia por uma jovem serva da casa, de nome Ana, cuja beleza admirável e simples é das mais sedutoras que hei visto nas mulheres nascidas em Samaria. 

 

— Que é isso? Nunca te observei apaixonado. Acho que já passaste a época dos arrebatamentos da mocidade. Em todo caso, isso quer dizer que não me encontro sozinho na satisfação que me traz a ideia dessa viagem imprevista — replicou Pilatos, com visível bom humor.

 

 

E, como se naquele mesmo instante houvesse elaborado todos os detalhes do seu plano, exclamou para o lictor, que o ouvia entre satisfeito e envaidecido:

 

— Sulpício, ficarás aqui em Jerusalém apenas o tempo preciso ao teu descanso ligeiro e imediato, regressando, depois de amanhã, para a Galileia, onde irás diretamente a Cafarnaum avisar Cusa dos meus propósitos de visitar a cidade e, feito isso, irás até à residência do senador Lêntulus, onde avisarás sua esposa da minha decisão, em tom discreto, cientificando-a do dia previsto para a minha partida e chegada até lá. Espero que, com a atitude inconsiderada do marido, deixando-a tão só em tais regiões, venha ela pessoalmente a Cafarnaum encontrar-se comigo, de modo a distrair-se da companhia dos galileus grosseiros e ignorantes, e recordar por algumas horas os seus dias felizes da Corte, junto de minha conversação e de minha amizade.

 

— Muito bem — redarguiu o lictor, não cabendo em si de contente. — Vossas ordens serão rigorosamente cumpridas.

 

 

Sulpício Tarquínius saiu alegre e confortado nos seus sentimentos inferiores, antegozando o instante em que se aproximaria novamente da jovem samaritana, que despertara a cobiça dos seus sentidos materiais, cobiça que não tivera tempo de manifestar quando da sua permanência no serviço pessoal de Públio Lêntulus.

 

Cumprindo as determinações recebidas, vamos encontrá-lo daí a quatro dias em Cafarnaum, onde os avisos do governador foram recebidos com grande contentamento por parte das autoridades políticas.

 

O mesmo, porém, não aconteceu na residência de Públio, onde sua presença foi recebida com reservas pelos empregados e escravos da casa. Ao seu chamado, apresentou-se-lhe Máximus, substituto de Comênio na chefia dos serviços usuais, mas que estava longe de possuir a sua energia e experiência.

 

 

Atendido, solicitamente, pelo antigo servo que era seu conhecido pessoal, solicitou-lhe o lictor a presença de Ana, de quem dizia ele precisar de uma entrevista pessoal para a solução de determinado assunto.

 

O velho criado de Lêntulus não hesitou em chamá-la à presença de Sulpício, que a envolveu de olhares cúpidos e ardentes.

 

A criada perguntou-lhe, entre intrigada e respeitosa, a razão da visita inesperada, ao que Tarquínius esclareceu tratar-se da necessidade de se avistar, por um momento, com Lívia, em particular, tentando ao mesmo tempo colocar a pobre moça ao corrente de suas pretensões inconfessáveis, dirigindo-lhe as propostas mais indignas e insolentes.

 

Após alguns minutos, em que se fazia ouvir nas suas expressões insultuosas, em voz abafada, que Ana escutava extremamente pálida, com o máximo de cuidado e paciência para evitar qualquer nota escandalosa a seu respeito, respondeu a digna serva com voz austera e valorosa:

 

— Senhor lictor, chamarei minha senhora para atender-vos, dentro de poucos instantes. Quanto a mim, devo afirmar-vos que estais enganado, porquanto não sou a pessoa que supondes.

 

 

E, encaminhando-se resolutamente para o interior, cientificou a senhora do persistente propósito de Sulpício em lhe falar pessoalmente, surpreendendo-se Lívia não só com o acontecimento inesperado, senão também com a expressão fisionômica da serva, presa da mais extrema palidez, depois do choque sofrido. Ana tratou de não a inteirar de pronto, do sucedido, enquanto murmurava:

 

— Senhora, o lictor Sulpício parece apressado. Presumo que não tendes tempo a perder.

 

Todavia, sem se deixar empolgar pelas circunstâncias, Lívia buscou atender ao mensageiro com o máximo de sua habitual atenção.

 

Ante a sua presença, inclinou-se o lictor com profunda reverência, dirigindo-se-lhe respeitoso, no cumprimento dos deveres que o traziam:

 

— Senhora, venho da parte do Senhor Procurador da Judeia, que tem a honra de vos comunicar a sua vinda a Cafarnaum nos primeiros dias da próxima semana…

 

 

Os olhos de Lívia brilharam de justificada indignação, enquanto inúmeras conjeturas lhe assaltaram o espírito; movimentando, porém, as suas energias teve a precisa coragem para responder à altura das circunstâncias:

 

— Senhor lictor, agradeço a gentileza de vossas palavras; todavia, cumpre-me esclarecer que meu marido se encontra em viagem, neste momento, e a nossa casa a ninguém recebe na sua ausência.

 

E, com leve sinal, fez-lhe sentir que era tempo de se retirar, o que Sulpício compreendeu, intimamente encolerizado. Despediu-se com reverências respeitosas.

 

Surpreendido com aquela atitude, porquanto ao espírito do lictor a prevaricação de Lívia representava um fato inconteste, retirou-se sumamente desapontado, mas não sem conjeturar os acontecimentos na sua depravada malícia.

 

 

Foi assim que, encontrando-se com um dos soldados de guarda à residência, seu conhecido e amigo pessoal, observou-lhe com fingido interesse:

 

— Otávio, antes de uma semana talvez aqui esteja de volta e desejaria encontrar de novo, nesta casa, a joia rara de minha felicidade e de minhas esperanças…

 

— Que joia é essa? — perguntou, curioso, o interpelado.

 

— Ana…

 

— Está bem. Fácil é o trabalho que me pedes.

 

— Mas, ouve-me bem — exclamou o lictor, pressentindo, já, que a presa tudo faria por fugir-lhe das mãos. — Ana costuma ausentar-se frequentemente e caso isso se verifique, espero que a tua amizade não me falte com os informes necessários, no instante oportuno…

 

— Pode contar com a minha dedicação.

 

 

Acabando de ouvir o pormenor mais importante desse diálogo, voltemos ao interior, onde Lívia, de alma opressa, confia à serva amiga e devotada as conjecturas dolorosas que lhe pesavam no coração. Depois de externar-lhe os seus justificados temores, plenamente admitidos por Ana que, por sua vez, a colocou ao corrente das insolências de Sulpício, a pobre senhora desfiou à sua confidente, simples e generosa, o rosário infindo de suas amarguras, relatando-lhe todos os sofrimentos que lhe dilaceravam a alma carinhosa e sensibilíssima, desde o primeiro dia em que a calúnia encontrara guarida no espírito orgulhoso do companheiro. As lágrimas da serva, ante a singular narrativa, eram bem o reflexo da sua alta compreensão das angústias da senhora, perdida naqueles rincões quase selvagens, considerando-se a sua educação e a nobreza de sua origem.

 

 

Ao finalizar o penoso relato de suas desditas, a nobre Lívia acentuou com indisfarçável amargura:

 

— Na verdade, tudo tenho feito por evitar os escândalos injustificáveis e incompreensíveis. Agora, porém, sinto que a situação se agrava cada vez mais, à vista da insistência dos meus algozes e da displicência de meu marido em face dos acontecimentos, perdendo-se o meu espírito em conjeturas amargas e dolorosas.

 

Se mando chamá-lo por um mensageiro, pondo-o ao corrente do que se passa, a fim de que nos proteja com as suas providências imediatas, talvez não compreenda a marcha dos fatos na sua intimidade, encarando os meus receios como sintoma de culpas anteriores, ou tomando os meus escrúpulos como desejo de regeneração por faltas que não cometi, em virtude de suas enérgicas reprimendas e penosas ameaças; se não o aviso dessas ocorrências graves, do mesmo modo se produziria o escândalo, com a vinda do governador a Cafarnaum, aproveitando o ensejo da sua ausência.

 

Tomo, unicamente, a Jesus por meu juiz nesta causa dolorosa, em que as únicas testemunhas devem ser o meu coração e a minha consciência!…

 

 

O que mais me preocupa, agora, minha boa Ana, não é tão somente a obrigação de velar por mim, que já experimentei o fel amaríssimo da desilusão e da calúnia impiedosa. É, justamente, por minha pobre filha, porque tenho a impressão de que aqui na Palestina os malfeitores estão nos lugares onde deveriam permanecer os homens de sentimentos puros e incorruptíveis…

 

Como não ignoras, meu desventurado filhinho já se foi, arrebatado nesse turbilhão de perigos, talvez assassinado por mãos indiferentes e criminosas… Fala-me o coração maternal que o meu desgraçado Márcus ainda vive, mas onde e como? Debalde temos procurado sabe-lo, em todos os recantos, sem o mais leve sinal da sua presença ou passagem… Agora, manda a consciência que resguarde a filhinha contra as ciladas tenebrosas!…

 

— Senhora — exclamou a serva, com fulgor estranho no olhar, como se houvera encontrado uma solução repentina e apreciável para o assunto —, o que dissestes revela o máximo bom senso e prudência… Também eu participo dos vossos temores e suponho que deveremos fazer tudo por salvar a menina e a vós mesma das garras desses lobos assassinos… Porque não nos refugiarmos nalgum local de nossa inteira confiança, até que os malditos abandonem estas paragens?!

 

— Mas considero que seria inútil procurarmos abrigo em Cafarnaum, em tais circunstâncias.

 

— Iríamos a outra parte.

 

— Aonde? — indagou Lívia, com ansiedade.

 

 

— Tenho um projeto — disse Ana esperançosa. — Caso assentísseis na sua plena realização, sairíamos ambas daqui, com a pequenina, refugiando-nos na própria Samaria da Judeia, em casa de Simeão, cuja idade respeitável nos resguardaria de qualquer perigo.

 

— Mas, a Samaria  — replicou Lívia, algo desalentada — fica muito distante…

 

— A realidade, contudo, minha senhora, é que necessitamos de um sítio dessa natureza. Concordo em que a viagem não será tão curta, mas partiríamos com urgência, alugando animais descansados, tão logo repousássemos um pouco, na passagem, por Naim.  Com um dia ou dois de marcha, atingiríamos o vale de Siquém,  onde se ergue a velha propriedade de meu tio. Máximus seria cientificado da vossa deliberação, sem outro pretexto que não seja o da necessidade de vossas decisões no momento e, na hipótese do regresso imediato do senador, estaria o vosso esposo integrado no conhecimento direto da situação, procurando inteirar-se, por si mesmo, quanto à vossa honestidade.

 

— De fato, essa ideia é o recurso mais viável que nos resta — exclamou Lívia mais ou menos confortada. — Além do mais, confio no Mestre, que não nos abandonará em provas tão rudes.

 

 

Hoje mesmo, faremos nossos aprestos de viagem e irás à cidade providenciar, não só quanto aos animais que nos devam conduzir até Naim, como também quanto à partida de um dos teus familiares conosco, de modo a seguirmos com a maior simplicidade, sem provocar a atenção dos curiosos, mas igualmente bem acompanhadas contra os dissabores de qualquer eventualidade. Não te preocupes com despesas, porque estou provida dos necessários recursos financeiros.

 

Assim foi feito.

 

Na véspera da partida, Lívia chamou o servo que então desempenhava as funções de mordomo da casa, esclarecendo-o nestes termos:

 

— Máximus, motivos imperiosos me levam amanhã a Samaria da Judeia, onde me demorarei alguns dias, junto de minha filha. Levarei Ana em minha companhia e espero do seu esforço a mesma dedicação de sempre aos seus senhores.

 

 

O interpelado fez uma reverência, como quem se surpreendesse com semelhante atitude da patroa, pouco afeta aos ambientes exteriores do lar, mas entendendo que não lhe assistia o direito de analisar as suas decisões, aventou, respeitoso:

 

— Senhora, espero designeis os servos que deverão acompanhar-vos.

 

— Não, Máximus. Não quero as solenidades do costume nas excursões dessa natureza. Irei com pessoas amigas, de Cafarnaum, e pretendo viajar com muita simplicidade. Interessa-me avisar-te dos meus propósitos, tão somente pela necessidade de redobrar os serviços de vigilância na minha ausência, e considerando a possibilidade do regresso inopinado do teu amo, a quem cientificarás da minha resolução, nos termos em que me estou exprimindo.

 

 

E, enquanto o criado se inclinava respeitoso, Lívia regressava aos aposentos, solucionando todos os problemas relativos à sua tranquilidade. No dia imediato, antes da aurora, saía de Cafarnaum uma caravana humilde. Compunham-na Lívia, a filhinha, Ana e um dos seus velhos e respeitáveis familiares, que se dirigiam pela estrada que contornava o grande lago, quase em caprichoso semicírculo, acompanhando o curso das águas do Jordão  a descerem sussurrantes e tranquilas para o Mar Morto. 

 

Numa breve parada em Naim, trocaram-se os animais, seguindo os viajantes o mesmo roteiro em direção do vale de Siquém, onde, à tardinha, apearam à frente da casa empedrada de Simeão, que recebeu os hóspedes, chorando de alegria.

 

 

O ancião de Samaria parecia tocado de uma graça divina, tal o movimento notável que desenvolvera em toda a região, não obstante a sua idade avançada, espalhando os consoladores ensinamentos do profeta de Nazaret.

 

Entre oliveiras umbrosas e frondejantes, erguera uma grande cruz, pesada e tosca, colocando nas suas proximidades ampla mesa rústica, em torno da qual se assentavam os crentes, em pobres bancos improvisados, para lhe ouvirem a palavra amiga e confortadora.

 

Cinco dias venturosos decorreram ali para as duas mulheres, que se encontravam à vontade naquele ambiente simples.

 

De tarde, sob as carícias da Natureza livre e sadia, no seio verde da paisagem harmoniosa, reunia-se a assembleia humilde dos samaritanos,  inclinados a aceitar os pensamentos de amor e de misericórdia sublime do Messias Nazareno.

 

 

Simeão, que ali vivia sem a companheira que Deus já havia levado e sem os filhos que, por sua vez, já haviam constituído família, em aldeias distantes, assumia a direção de todos, como patriarca venerável na sua calma senectude, relatando os fatos da vida de Jesus como se a inspiração divina o bafejasse em tais instantes, tal a profunda beleza filosófica dos comentários e das preces improvisadas com a amorosa sinceridade do seu coração.

 

Quase todos os presentes, naquela mesma poesia simples da Natureza, como se estivessem ainda bebendo as palavras do Mestre junto do Garizim,  choravam de comoção e deslumbramento espiritual, tocados pela sua palavra profunda e carinhosa, magnetizados pela formosura das suas evocações saturadas de ensinamentos raros, de caridade e meiguice.

 

 

Nessa época, os cristãos não possuíam os evangelhos escritos, que somente um pouco depois apareciam no mundo grafados pelos Apóstolos, razão pela qual todos os pregadores da Boa-Nova colecionavam as máximas e as lições do Mestre, de próprio punho ou com a cooperação dos escribas do tempo, catalogando-se, desse modo, os ensinamentos de Jesus para o estudo necessário nas assembleias públicas das sinagogas.

 

Simeão, que não possuía uma sinagoga, seguia, porém, o mesmo método.

 

Com a paciência que o caracterizava, escreveu tudo o que sabia do Mestre de Nazaret, para recordá-lo nas suas reuniões humildes e despretensiosas, prontificando-se do melhor grado a registar todas as lições novas do acervo de lembranças dos seus companheiros, ou daqueles apóstolos anônimos do Cristianismo nascente, que, de passagem por sua velha aldeia, cruzavam a Palestina em todas as direções.

 

 

Fazia seis dias que as hóspedes se retemperavam naquele ambiente caricioso, quando o respeitável ancião, naquela tarde, em suas costumeiras evocações do Messias, se afigurava tocado de influências espirituais das mais excelsas.

 

As derradeiras meias-tintas do crepúsculo entornavam na paisagem um tom de esmeraldas e topázios, eterizados sob um céu azul indefinível. No seio da assembleia heterogênea, notava-se a presença de criaturas sofredoras, de todos os matizes, que ao espírito de Lívia lembravam a tarde memorável de Cafarnaum, quando ouvira o Senhor pela primeira vez. Homens esfarrapados e mulheres maltrapilhas acotovelavam-se com crianças esquálidas, fitando, ansiosamente, o ancião que explicava, comovido, com a sua palavra simples e sincera:

 

 

— Irmãos, era de ver-se a suave resignação do Senhor, no derradeiro instante!…

 

Olhar fixo no céu, como se já estivesse gozando a contemplação das beatitudes celestes, no Reino de nosso Pai, vi que o Mestre perdoava carinhosamente todas as injúrias! Apenas um dos seus discípulos mais queridos se conservava ao pé da cruz, amparando a sua mãe no angustioso transe!… Dos seus habituais seguidores, poucos estavam presentes na hora dolorosa, certamente porque nós, os que tanto o amávamos, não podíamos externar nossos sentimentos diante da turba enfurecida, sem graves perigos para a nossa segurança pessoal. Não obstante, desejaríamos, todos, experimentar os mesmos padecimentos!…

 

De vez em quando, um que outro mais atrevido de seus verdugos se aproximava do corpo chagado no martírio, dilacerando-lhe o peito com a ponta das lanças impiedosas!…

Uma vez por outra, o generoso ancião limpava o suor da fronte, para continuar com os olhos úmidos:

 

— Notei, em dado instante, que Jesus desviara os olhos calmos e lúcidos do firmamento, contemplando a multidão amotinada em criminosa fúria!… Alguns soldados ébrios açoitaram-no, mais uma vez, sem que do seu peito opresso, na angústia da agonia, escapasse um único gemido!… Seus olhos suaves e misericordiosos se espraiaram, então, do monte do sacrifício para o casario da cidade maldita! Quando o vi olhando ansiosamente, com a ternura carinhosa de um pai, para quantos o insultavam nos suplícios extremos da morte, chorei de vergonha pelas nossas impiedades e fraquezas… A massa movimentava-se, então, em altercações numerosas… Gritos ensurdecedores e impropérios revoltantes o cercavam na cruz, onde se lhe notava o copioso suor do instante supremo!… Mas, o Messias, como se visualizasse profundamente os segredos dos destinos humanos, lendo no livro do futuro, fitou de novo as Alturas, exclamando com infinita bondade: — “Perdoa-lhes, meu Pai, porque não sabem o que fazem!…”

O velho Simeão tinha a voz embargada de lágrimas, ao evocar aquelas lembranças, enquanto a assembleia se comovia profundamente com a narrativa.

 

Outros irmãos da comunidade tomaram a palavra, descansando o ancião dos seus esforços.

 

Um deles, porém, contrariamente aos temas versados naquele dia, exclamou, com surpresa para todos os circunstantes:

 

— Meus irmãos, antes de nos retirarmos, lembremos que o Messias repetia sempre aos seus discípulos a necessidade da vigilância e da oração, porque os lobos rondam, neste mundo, o rebanho das ovelhas!… 

 

Simeão ouviu a advertência e pôs-se em atitude de profunda meditação, de olhos fitos na grande cruz que se elevava a poucos metros do seu banco humilde.

 

Ao cabo de alguns minutos de espontânea concentração, tinha os olhos transbordando de lágrimas, fixos no madeiro tosco, como se no seu topo vagasse alguma visão desconhecida de quantos o observavam…

 

 

Depois, encerrando as preleções da tarde, falou comovido:

 

— Filhos, não é sem justo motivo que o nosso irmão se refere hoje ao ensino da vigilância e da prece!  Alguma coisa, que não sei definir, fala-me ao coração que o instante do nosso testemunho está muito próximo… Vejo com a minha vista espiritual que a nossa cruz está hoje iluminada, anunciando, talvez, o glorioso minuto dos nossos sacrifícios… Meus pobres olhos se enchem de pranto, porque, entre as claridades do madeiro, ouço uma voz suave que me penetra os ouvidos numa entonação branda e amiga, exclamando: “Simeão, ensina ao teu rebanho a lição da renúncia e da humildade, com o exemplo da tua dedicação e do teu próprio sacrifício! Ora e vigia, porque não está longe o instante ditoso de tua entrada no Reino, mas preserva as ovelhas do teu aprisco das arremetidas tenebrosas dos lobos famulentos da impiedade, soltos na Terra, ao longo de todos os caminhos, consciente, porém, de que, se a cada um se dará segundo as próprias obras, os maus terão, igualmente, seu dia de lição e castigo, de conformidade com os próprios erros!…”

 

 

O velho samaritano tinha o rosto lavado em lágrimas, mas doce serenidade irradiava do seu olhar carinhoso e compassivo, demonstrando-lhe as energias inquebrantáveis e valorosas.

 

Foi então que, alçando as mãos emagrecidas e longas ao firmamento, onde brilhavam já as primeiras estrelas, dirigiu-se a Jesus, em prece ardente:

 

— Senhor, perdoai nossas fraquezas e vacilações nas lutas da vida humana, onde os nossos sentimentos são bem precários e miseráveis!… Abençoai nosso esforço de cada dia e relevai as nossas faltas, se algum de nós, que aqui nos reunimos, vem à vossa presença com o coração saturado de pensamentos que não sejam os do bem e do amor que nos ensinastes!… E, se chegada é a hora dos sacrifícios, auxiliai-nos com a vossa misericórdia infinita, a fim de que não vacilemos em nossa fé, nos dolorosos momentos do testemunho!…

 

A oração comovedora assinalou o fim da reunião, dispersando-se os assistentes, que regressavam, impressionados, às suas choupanas humildes e pobres.

 

O ancião, todavia, conseguiu repousar muito pouco naquela noite, tomado de preocupação por Lívia e pela sobrinha, que o haviam cientificado das graves ocorrências que as levaram a solicitar a sua proteção. Figurava-se-lhe que apelos carinhosos do mundo invisível lhe enchiam o espírito de ansiedade indefinível e de singulares impressões, que lhe não era possível alijar do raciocínio para os necessários minutos de repouso.

 

 

Contudo, enquanto ocorriam esses fatos no vale de Siquém, voltemos a Cafarnaum, onde, na mesma tarde, chegara o governador com grande aparato.

 

No burburinho das festanças numerosas, organizadas pelos prepostos de Herodes Ântipas,  o primeiro pensamento do viajante ilustre não nos pode ser olvidado.

 

Sulpício, porém, após palestrar longamente com o seu amigo Otávio; nas proximidades da residência do senador, onde foi posto ao corrente de todos os fatos, voltou a informá-lo de que ambas as presas cobiçadas haviam fugido como aves viajoras, para os bosques da Samaria.

 

O governador surpreendeu-se com a resistência daquela mulher, tão acostumado estava ele às conquistas fáceis, admirando-lhe, intimamente, o nobre heroísmo e pensando que, afinal, constituía atitude injustificável da sua parte tal rebeldia no assédio, mesmo porque, não lhe faltariam mulheres tentadoras e formosas, desejosas de captarem a sua estima, no caminho da sua alta posição social na Palestina.

 

 

Ao mesmo tempo que dava curso a esses pensamentos, o espírito perverso do lictor, antegozando a trabalhosa conquista da sua vítima, murmurava-lhe ao ouvido:

 

— Senhor governador, se consentirdes, irei a Samaria da Judeia informar-me do assunto. Daqui ao vale de Siquém deve mediar pouco mais de trinta milhas, o que vem a ser um salto para os nossos cavalos. Levaria comigo seis soldados, bastando esses homens para manter a ordem em qualquer lugar destas paragens.

 

— Sulpício, por mim, não vejo mais necessidade de semelhantes providências — exclamou Pilatos, resignado.

 

— Mas, agora — explicou o lictor, com interesse —, se não é por vós, deve ser por mim, porque me sinto escravizado a uma mulher que devo possuir de qualquer maneira.

 

Sou eu agora quem vos pede, humildemente; a concessão dessas providências — acentuou ele desesperado, no auge dos seus pensamentos impuros.

 

— Está bem — murmurou Pilatos, com displicência, como quem faz um favor a servo de confiança —, concedo-te o que me pedes. Acho que o amor de um romano deve superar qualquer afeição dos escravos deste país.

 

 

Podes partir, levando contigo os elementos da tua amizade, sem te esqueceres, porém, de que devemos regressar a Nazaret, de hoje a três dias. Não te bastarão dois dias para esse cometimento?

 

— Mas — continuou o lictor, maliciosamente —, e se houver alguma resistência?

 

— Para isso levas os teus homens, autorizando-te eu a tomar as iniciativas necessárias aos teus propósitos. Em qualquer missão, jamais te esqueças prestar aos patrícios os favores da nossa consideração, mas, aos que o não sejam, faze a justiça do nosso domínio e da nossa força implacáveis.

 

Na mesma noite, Sulpício Tarquínius escolheu os homens de mais confiança, e, pela madrugada, sete cavaleiros audaciosos puseram-se a caminho, trocando os ginetes fogosos, nas paradas mais importantes, em demanda de Samaria.

 

O lictor encaminhava-se para a sua aventura, como quem segue para o desconhecido, com o propósito firme de atingir os fins sem cogitar dos meios. Turbilhonavam-lhe no cérebro pensamentos condenáveis, afogando o coração inquieto e louco numa onda de anseios criminosos e indefiníveis.

 

 

Voltando, todavia, nossa atenção para a casa humilde do vale, vamos encontrar Simeão em grandes atividades, naquela manhã inolvidável da sua vida.

 

Após o almoço frugal, organizadas todas as suas anotações e pergaminhos, depois de mais de uma hora de meditação e preces fervorosas, e quando o sol já declinava, reuniu as hóspedes, falando-lhes gravemente:

 

— Filhas, a visão de meus pobres olhos, em nossas preces de ontem, representa uma séria advertência para o meu coração. Ainda esta noite e hoje, durante o dia, tenho ouvido apelos suaves que me chamam e, sem explicar a justa razão deles, tenho o íntimo saturado de branda serenidade, na suposição de que não deve tardar muito a minha ida para o Reino… Algo, porém, me fala ao espírito que ainda não soou a hora da vossa partida e, considerando o ensinamento do nosso Mestre de bondade e misericórdia, sobre os lobos e as ovelhas,  devo resguardar-vos de qualquer perigo. É por isso que vos peço acompanhar-me.

 

 

Assim dizendo, o respeitável ancião pôs-se de pé e, caminhando para o seu casebre, deslocou blocos de pedra duma abertura na parede empedrada, exclamando imperativamente, na sua serena simplicidade:

 

— Entremos.

 

— Mas, meu tio — obtemperou Ana, com certa estranheza —, serão necessárias tais providências?

 

— Filha, nunca discutas o conselho daqueles que envelheceram no trabalho e no sofrimento. O dia de hoje é decisivo e Jesus não me poderia enganar o coração.

 

— Oh! mas será possível, então, que o Mestre nos vá privar de vossa presença carinhosa e consoladora? — exclamou a pobre rapariga banhada em pranto, enquanto Lívia os acompanhava sensibilizada, trazendo pela mão a filha estremecida.

 

— Sim, para nós — revidou Simeão, com serena coragem, mirando o azul do céu —, deve existir uma só vontade, que é a de Deus. Cumpram-se, pois, nos escravos os desígnios do Senhor.

 

 

Neste comenos, penetraram os quatro numa galeria que, à distância de poucos metros, ia dar num modesto refúgio talhado em pedras rústicas, afirmando o ancião em tom solene:

 

— Há mais de vinte anos não abro este subterrâneo a pessoa alguma… Recordações sagradas de minha esposa fizeram-me encerrá-lo para sempre, como túmulo de minhas ilusões mais queridas; mas hoje de manhã, o reabri resolutamente, retirei os tropeços do caminho, coloquei aqui os apetrechos necessário ao descanso de um dia, pensando na vossa segurança até à noite. Este abrigo está oculto nas rochas que, junto das oliveiras, fazem o ornamento do nosso recanto de orações e, não obstante parecer abafado, o ambiente recebe o ar puro e fresco do vale, como a nossa própria casa. Ficai aqui tranquilas. Alguma coisa me diz ao coração que estamos atravessando horas decisivas. Trouxe o alimento preciso para as três, durante as horas da tarde, e caso eu não volte até à noitinha, já sabem como devem mover a porta empedrada que dá para meu quarto. Daqui, ouvem-se os rumores das cercanias, o que vos possibilitará a compreensão de qualquer perigo.

 

— E mais ninguém conhece este refúgio? — perguntou Ana, ansiosa.

 

— Ninguém, a não ser Deus e os meus filhos ausentes.

 

 

Lívia, profundamente comovida, ergueu então a voz do seu sincero agradecimento:

 

— Simeão — disse ela —, eu, que conheço a têmpera do inimigo, justifico os vossos temores. Jamais esquecerei vosso gesto paternal, salvando-me do verdugo impiedoso e implacável.

 

— Senhora, não agradeçais a mim, que nada valho. Agradeçamos a Jesus os seus desígnios preciosos, no momento amargo das nossas provas…

 

Arrancando uma pequena cruz de madeira tosca das dobras da túnica, humilde, entregou-a à esposa do senador, exclamando com voz serena:

 

— Só Deus conhece o minuto que se aproxima, e esta hora pode assinalar os derradeiros momentos do nosso convívio na Terra. Se assim for, guardai esta cruz como recordação de um servo humilde… Ela traduz a gratidão do meu espírito sincero…

 

 

Como Lívia e Ana começassem a chorar com as suas palavras comovedoras, continuou o ancião com voz pausada:

 

— Não choreis, se este minuto constitui o instante supremo! Se Jesus nos chama ao seu trabalho, uns antes dos outros, lembremo-nos de que, um dia, nos reuniremos todos nas luzes cariciosas do seu Reino de amor e misericórdia, onde todos os aflitos hão-de ser consolados…

 

E, como se o seu espírito estivesse na plena contemplação de outras Esferas, cujas claridades o enchessem de intuições divinatórias, prosseguiu, dirigindo-se à Lívia, comovidamente:

 

— Estejamos confiantes na Providência Divina! Caso o meu testemunho esteja previsto para breves horas, confio-vos a minha pobre Ana, como vos entregaria a minha recordação mais querida!… Depois que abracei as lições do Messias, todos os filhos do meu sangue me desampararam, sem me compreenderem os propósitos mais santos do coração… Ana, porém, apesar da sua juventude, entendeu, comigo, o doce Crucificado de Jerusalém!…

 

— Quanto a ti, Ana — disse pousando a destra na fronte da sobrinha —, ama a tua patroa como se fosses a mais humilde das suas escravas!

 

 

Nesse instante, porém, um ruído mais forte penetrou no recinto, como se um barulho incompreensível proviesse das rochas, parecendo mais um tropel de numerosos cavalos que se iam aproximando.

 

O ancião fez um gesto de despedida, enquanto Lívia e Ana se ajoelharam diante da sua figura austera e carinhosa; ambas, entre lágrimas, tomaram-lhe as mãos encarquilhadas, que cobriam de beijos afetuosos.

 

Num relance, Simeão transpôs a pequena galeria, reajustando as pedras na parede com o máximo cuidado.

 

Em poucos minutos, abria as portas da casa humilde e generosa a Sulpício Tarquínius e seus companheiros, compreendendo, afinal, que as advertências de Jesus, no silêncio de suas orações fervorosas, não haviam falhado.

 

O lictor dirigiu-lhe a palavra sem qualquer cerimônia, fazendo o possível por eliminar a impressão que lhe causava a majestosa aparência do ancião, com os seus olhos altivos e serenos e as longas barbas encanecidas.

 

— Meu velho — exclamou desabridamente —, por intermédio de teus conhecidos já sei que te chamas Simeão, e igualmente que hospedas aqui uma nobre senhora de Cafarnaum, com a sua serva de confiança. Venho da parte das mais altas autoridades para falar particularmente com essas senhoras, na maior intimidade possível…

 

 

— Enganai-vos, lictor — murmurou Simeão, com humildade. — De fato, a esposa do senador Lêntulus passou por estas paragens; todavia, apenas pela circunstância de se fazer acompanhar por uma de minhas sobrinhas-netas, deu-me a honra de repousar nesta casa algumas horas.

 

— Mas deves saber onde se encontram neste momento.

 

— Não posso dize-lo.

 

— Ignoras, porventura?

 

— Sempre entendi — replicou o ancião corajosamente — que devo ignorar todas as coisas que venham a ser conhecidas para o mal de meus semelhantes.

 

— Isso é outra coisa — redarguiu Sulpício, encolerizado, como um mentiroso de quem se descobrissem os pensamentos mais secretos. — Quer dizer, então, que me ocultas o paradeiro dessas mulheres, por simples caprichos da tua velhice caduca?

 

— Não é isso. Conhecendo que no mundo somos todos irmãos, sinto-me no dever de amparar os mais fracos contra a perversidade dos mais fortes.

 

 

— Mas, eu não as procuro para fazer mal algum e chamo-te a atenção para estas insinuações insultuosas, que merecem a punição da justiça.

 

— Lictor — revidou Simeão, com grande serenidade —, se podeis enganar os homens, não enganais a Deus com os vossos sentimentos inconfessáveis e impuros. Sei dos propósitos que vos trazem a estes sítios e lamento a vossa impulsividade criminosa… Vossa consciência está obscurecida por pensamentos delituosos e impuros, mas todo momento é um ensejo de redenção, que Deus nos concede na Sua infinita bondade… Voltai atrás da insídia que vos trouxe e ide noutros caminhos porque assim como o homem deve salvar-se pelo bem que pratica, pode também morrer pelo fogo devastador das paixões que o arrastam aos crimes mais hediondos…

 

— Velho infame… — exclamou Sulpício Tarquínius, rubro de cólera, enquanto os soldados observavam, admirados, a serena coragem do valoroso ancião da Samaria —, bem me disseram teus vizinhos, ao me informarem a teu respeito, que és o maior feiticeiro destas paragens!…

 

 

Adivinho maldito, como ousas afrontar deste modo os mandatários do Império, quando te posso pulverizar com uma simples palavra? Com que direito escarneces do poder?

 

— Com o direito das verdades de Deus, que nos mandam amar o próximo como a nós mesmos… Se sois prepostos de um Império que outra lei não possui além da violência impiedosa na execução de todos os crimes, sinto que estou subordinado a um poder mais soberano do que o vosso, cheio de misericórdia e bondade! Esse poder e esse Império são de Deus, cuja justiça misericordiosa está acima dos homens e das nações!…

 

 

Compreendendo-lhe a coragem e a energia moral inquebrantáveis, o lictor, embora tremendo de ódio, revidou em tom fingido:

 

— Está bem, mas eu não vim aqui para conhecer as tuas bruxarias e o teu fanatismo religioso. De uma vez por todas: queres ou não prestar-me as informações precisas, acerca das tuas hóspedes?

 

— Não posso — replicou Simeão corajosamente —, minha palavra é uma só.

 

— Então, prendei-o! disse, dirigindo-se aos seus auxiliares, pálido de cólera ao se ver derrotado naquele duelo de palavras.

 

O velho cristão da Samaria foi submetido aos primeiros vexames, por parte dos soldados, entregando-se, porém, sem a mínima resistência.

 

Aos primeiros golpes de espada, exclamou Sulpício sarcasticamente:

 

— Então, onde se encontram as forças do teu Deus, que te não defende? Seu Império é assim tão precário? Porque não te socorrem os poderes celestiais, eliminando-nos com a morte, em teu benefício?

 

Uma gargalhada geral seguiu-se a essas palavras, partida dos soldados que acompanhavam, gostosamente, os ímpetos criminosos do seu chefe.

 

 

Simeão, todavia, tinha as energias preparadas para o testemunho da sua fé ardente e sincera. De mãos amarradas, pôde ainda revidar, com a serenidade habitual:

 

— Lictor, ainda que eu fosse um homem poderoso como o teu César, nunca ergueria a voz para ordenar a morte de quem quer que fosse, à face da Terra. Sou dos que negam o próprio direito da chamada legítima defesa, porque está escrito na Lei que “Não Matarás”,  sem nenhuma cláusula que autorize o homem a eliminar o seu irmão, nessa ou naquela circunstância… Toda a nossa defesa, neste mundo, está em Deus, porque só ele é o Criador de toda a vida e somente ele pode por e dispor de nossos destinos.

 

 

Sulpício experimentou o apogeu do seu ódio em face daquela coragem indomável e esclarecida e, avançando para um dos prepostos, exclamou enraivecido:

 

— Mércio, toma à tua conta este velho imbecil e feiticeiro. Guarda-o com atenção e não te descuides. Caso tente fugir, mete-lhe o chanfalho! 

 

O venerável ancião, consciente de que atravessava as suas horas supremas, encarou o agressor com heroica humildade.

 

Sulpício e os companheiros invadiram-lhe a casa e o quintal, expulsando-lhe uma velha serva, a palavrões e pedradas. No seu quarto encontraram as anotações evangélicas e os pergaminhos amarelecidos, além de pequenas lembranças que guardava em memória dos seus afetos mais queridos.

 

Todos os objetos de suas recordações mais sagradas foram trazidos à sua presença, onde foram quebrados sem piedade. Perante seus olhos, serenos e bons, dilaceraram-se túnicas e papiros antigos, entre sarcasmos e ironias revoltantes.

 

 

Terminada a devassa, o lictor, de mãos nas costas, examinando, intimamente, a melhor maneira de arrancar-lhe a desejada confissão sobre o paradeiro de suas vítimas, andou pelas adjacências mais de duas horas, voltando à mesma sala, onde o interpelou novamente.

 

— Simeão — disse ele com interesse —, satisfaze os meus desejos e te concederei a liberdade.

 

— Por esse preço, toda a liberdade me seria penosa. Deve preferir-se a morte a transigir com o mal — respondeu o ancião com a mesma coragem.

 

Sulpício Tarquínius rilhou os dentes de fúria, ao mesmo tempo que gritava possesso:

 

— Miserável! saberei arrancar-te a confissão necessária.

 

Isso dizendo, encarou fixamente o enorme cruzeiro que se levantava a poucos metros da porta e, como se houvesse escolhido o melhor instrumento de martírio para arrancar-lhe a revelação desejada, dirigiu-se aos soldados em voz soturna:

 

— Amarremo-lo à cruz, como o Mestre das suas feitiçarias.

 

 

Recordando-se dos grandes momentos do Calvário, o ancião deixou-se levar sem nenhuma relutância, agradecendo, intimamente, a Jesus pelo seu aviso providencial, a tempo de salvar das mãos do inimigo aquelas que considerava como filhas muito amadas.

 

Num ápice os soldados o amarraram na base do pesado madeiro, sem que a vítima demonstrasse um único gesto de resistência.

 

Avizinhara-se o crepúsculo, e Simeão recordou que, horas antes, sofria o Senhor com mais intensidade. Em prece ardente, suplicou ao Pai Celestial ânimo e resignação para o angustioso transe. Lembrou-se dos filhos ausentes, rogando a Jesus que os acolhesse no manto de sua infinita misericórdia. Foi nesse ínterim que, amarrado à base da cruz pelos braços, pelo tronco e pelas pernas, viu que se aproximavam alguns dos companheiros de suas preces habituais para as reuniões do crepúsculo, os quais foram logo detidos pelos soldados e pelo chefe implacável.

 

 

Inquiridos, quanto ao ancião que ali se encontrava, com o dorso seminu para os tormentos do açoite, todos, sem exceção de um só, alegaram não conhecê-lo.

 

Mais que os ataques dos impiedosos romanos, semelhante ingratidão doeu-lhe fundo, no espírito generoso e sincero, como se envenenado espinho lhe penetrasse o coração.

 

Todavia, recompôs imediatamente as suas energias espirituais e, contemplando o Alto, murmurou baixinho, numa prece ansiosa e ardente:

 

— Também vós, Senhor, fostes abandonado! … Éreis o Cordeiro de Deus, inocente e puro, e sofrestes as dores mais amargas, experimentando o fel das traições mais penosas!… Não seja pois o vosso servo, mísero e pecador, que renegue os martírios purificadores do testemunho!…

 

 

A essa hora, já o recinto se encontrava repleto de pessoas que, de conformidade com as determinações de Sulpício, deveriam permanecer nos bancos grosseiros, dispostos em semicírculo, de modo a assistirem à cena selvagem, a título de escarmento para quantos viessem a desobedecer à justiça do Império.

 

O primeiro soldado, à ordem do chefe, iniciou o flagício. Todavia, da terceira vez que as suas mãos brandiam as extremas tiras de couro, na execranda tortura, sem que o ancião deixasse escapar o mais ligeiro gemido, parou, subitamente, exclamando para Tarquínius em voz baixa e em tom discreto:

 

— Senhor lictor, no alto do madeiro há uma luz que paralisa os meus esforços.

 

Encolerizado, mandou Sulpício que um novo elemento o substituísse, mas o mesmo se repetiu com os seus algozes chamados ao trabalho sinistro.

 

 

Foi então que, desesperado de ódio incompreensível, tomou Sulpício dos açoites, brandindo-os ele mesmo no corpo da vítima, que se contorcia em sofrimentos angustiosos.

 

Simeão, banhado de suor e sangue, sentia o estalar dos ossos envelhecidos, que se quebravam aos pedaços, cada vez que o açoite lhe lambia as carnes enfraquecidas. Seus lábios murmuravam preces fervorosas, apelos a Jesus para que os tormentos não se prolongassem ao infinito. Todos os presentes, não obstante o terror que os levara à defecção para com o velho discípulo de Jesus, viam-lhe, com lágrimas, os inomináveis padecimentos.

 

Em dado instante, a fronte pendeu, quase desfalecida, prenunciando o fim de toda a resistência orgânica, em face do martírio.

 

 

Sulpício Tarquínius parou, então, por um minuto, a sua obra nefanda e, aproximando-se do ancião, falou-lhe ao ouvido, com ansiedade:

 

— Confessas agora?

 

Mas o velho samaritano, temperado nas lutas terrestres, por mais de setenta anos de sofrimento, exclamou, exausto, em voz sumida:

 

— O… cristão… deve… morrer… com Jesus… pelo… bem… e… pela… verdade…

 

— Morre, então, miserável!… — gritou Sulpício, em voz estentórica; e, tomando da espada, enterrou-lhe a lâmina no peito deprimido.

 

Viu-se o sangue jorrar em borbotões vermelhos e abundantes.

 

 

Nessa hora, cansado já do martírio, o ancião viu sem temor o ato supremo que poria termo aos seus padecimentos. Experimentou a sensação de um instrumento estranho que lhe abria o peito dolorido, sufocado por mortal angústia.

 

Num relance, porém, lobrigou duas mãos de neve translúcida, que pareciam alisar-lhe carinhosamente os cabelos embranquecidos.

 

Notou que o cenário se havia transformado, enquanto fechara ligeiramente os olhos, no momento doloroso.

 

O céu não era o mesmo, nem mais à sua frente via traidores e verdugos. O ambiente estava saturado de luz branda e reconfortante, enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves de uma cavatina do Céu, entoada, talvez, por artistas invisíveis. Ouvia cânticos esparsos, exaltando as dores de todos os desventurados, de todos os aflitos do mundo, divisando, maravilhado o sorriso acolhedor de entidades lúcidas e formosas.

 

 

Afigurava-se-lhe reconhecer a paisagem que o recebia. Supunha-se transportado aos deliciosos recantos de Cafarnaum,  nos instantes suaves em que se preparava para receber a bênção do Messias, jurando haver aportado, por processo misterioso, numa Galileia  de flores mais ricas e de firmamento mais belo. Havia aves de luz, como lírios alados do paraíso, cantando nas árvores fartas e frondosas, que deviam ser as do éden celestial.

 

Buscou senhorear-se das suas emoções nas claridades dessa Terra Prometida, que, a seus olhos, deveria ser o país encantado do “Reino do Senhor”.

 

Por um momento, lembrou-se do orbe terrestre, das suas últimas preocupações e das suas dores. Uma sensação de cansaço dominou-lhe, então, o espírito abatido, mas uma voz que seus ouvidos reconheceriam, entre milhares de outras vozes, falou-lhe brandamente ao coração:

 

— Simeão, chegado é o tempo do repouso!… Descansa agora das mágoas e das dores, porque chegaste ao meu Reino, onde desfrutarás eternamente da misericórdia infinita do Nosso Pai!…

 

Pareceu-lhe, afinal, que alguém o tomara de encontro ao peito, com o máximo de cuidado e carinho.

 

Um bálsamo suave adormentou o seu espírito exausto e amargurado. O velho servo de Jesus fechou, então, os olhos, placidamente, acariciado por uma entidade angélica que posou, de leve, as mãos translúcidas sobre o seu coração desfalecido.

 

 

Voltando, porém, ao doloroso espetáculo, vamos encontrar, junto à casa do ancião de Samaria,  regular massa de povo que assistia, transida de terror, à cena tenebrosa.

 

Amarrado ao madeiro, o cadáver do velho Simeão golfava sangue pela enorme ferida aberta no coração. A fronte pendida para sempre, como se reclamasse o repouso da terra generosa, suas barbas veneráveis se tingiam de rubro, aos salpicos de sangue das vergastadas, porque Sulpício, embora sabendo que o golpe de espada era o detalhe final do tenebroso drama, continuava a açoitar o cadáver colado à cruz infamante do martírio.

 

Dir-se-ia que as forças desencadeadas da Treva se haviam apoderado completamente do espírito do lictor, que, tomado de fúria epiléptica, intraduzível, vergastava o cadáver sem piedade, numa torrente de impropérios, para impressionar a massa popular que o observava estarrecida de assombro.

 

— Vede — gritava ele furiosamente —, vede como devem morrer os samaritanos velhacos e os feiticeiros assassinos!… Velho miserável!… Leva para os infernos mais esta lembrança!…

 

E o açoite caía, impiedoso, sobre os despojos destroçados da vítima, reduzidos agora a uma pasta sangrenta.

 

 

Nisso, porém, fosse pela pouca profundidade da base da cruz, que se abalara nos movimentos reiterados e violentos do suplício, ou pela punição das forças poderosas do mundo invisível, viu-se que o enorme madeiro tombava ao solo na vertigem de um relâmpago.

 

Debalde tentou o lictor eximir-se à morte horrível, examinando a situação por um milésimo de minuto, porque o tope da cruz abateu-lhe a cabeça de um só golpe, inutilizando-lhe o primeiro gesto de fuga. Atirado ao chão com uma rapidez espantosa, Sulpício Tarquínius não teve tempo de dar um gemido. Pela base do crânio, esmigalhado, escorria a massa encefálica misturada de sangue.

 

Num átimo, todos acorreram ao corpo abatido do lobo, trucidado depois do sacrifício da ovelha. Um dos soldados examinou-lhe, detidamente, o peito, onde o coração ainda pulsava nas derradeiras expressões de automatismo.

 

A boca do verdugo estava aberta, não mais para a gritaria blasfematória, mas da garganta avermelhada descia uma espumarada de saliva e sangue, figurando a baba repelente e ignominiosa de um monstro. Seus olhos estavam desmesuradamente abertos, como se fitassem, eternamente, nos espasmos do terror, uma interminável falange de fantasmas tenebrosos…

 

 

Impressionados com o acidente imprevisto, no qual adivinhavam a influência da misteriosa luz que haviam lobrigado no topo do cruzeiro, os soldados ignoravam como providenciar naquela conjuntura, igualmente confundidos na onda de espanto e surpresa geral dos primeiros momentos.

 

Foi nesse instante que assomou à porta a figura nobre de Lívia, pálida de amarga perplexidade.

 

Ela e Ana, no interior da cava onde se haviam refugiado, pressentiram o perigo, permanecendo ambas em fervorosas preces, implorando a piedade de Jesus naquelas horas angustiosas.

 

A seus ouvidos chegavam os rumores imprecisos das discussões e do vozerio do povo em altercações ruidosas, nos minutos do incidente, encarado, por quantos a ele assistiram, como castigo do Céu.

 

Ambas, aflitas e ansiosas, considerando o adiantado da hora, deliberaram sair, fossem quais fossem as consequências da sua resolução.

 

 

Chegando à porta e observando o espetáculo horrendo do cadáver de Simeão reduzido quase a uma pasta informe, sob a base da cruz, e vendo o corpo de Sulpício estendido à distância de poucos passos, com a base do crânio esfacelada, experimentaram, naturalmente, um pavor indefinível.

 

O paroxismo das emoções, contudo, poucos minutos durou.

 

Enquanto a serva se desfazia em soluços, Lívia, com a energia que lhe caracterizava o espírito e a fé que lhe clarificava o coração, compreendeu de relance o que se havia passado e, entendendo que a situação exigia a força de uma vontade poderosa para que o equilíbrio geral se restabelecesse, exclamou para a serva, entregando-lhe a filha resolutamente:

 

— Ana, peço-te o máximo de coragem neste angustioso transe, mesmo porque, cumpre-nos lembrar que a bondade de Jesus nos preparou para suportar, dignamente, mais esta prova aspérrima e dolorosa! Guarda Flávia contigo, enquanto vou providenciar para que a tranquilidade se restabeleça!…

 

 

A passos rápidos, avançou para a turba que se ia aquietando à sua passagem.

 

Aquela mulher, de beleza nobre e graciosa, deixava transparecer no olhar uma chama de profunda indignação e amargura. Seu aspecto severo denunciava a presença de um anjo vingador, surgido entre aquelas criaturas ignorantes e humildes, no momento oportuno.

 

Aproximando-se da cruz, onde jaziam os dois cadáveres, cercados pela confusão, implorou de Jesus a coragem e fortaleza necessárias para dominar o nervosismo e a inquietação de todos que a rodeavam. Sentiu que força sobre-humana se apossara da sua alma no momento preciso. Por um minuto, pensou no esposo, nas convenções sociais, no escândalo rumoroso daqueles acontecimentos, mas o sacrifício e a morte gloriosa de Simeão eram para ela o exemplo mais confortador e mais santo. Tudo olvidou para se lembrar de que Jesus pairava acima de todas as coisas transitórias da Terra, como o mais alto símbolo de verdade e de amor, para a felicidade imorredoura de toda a vida.

 

 

Um dos soldados, tomado de veneração e conhecendo perto de quem seus olhos se encontravam, acercou-se-lhe, exclamando com o máximo respeito:

 

— Senhora, cumpre-me apresentar-vos nossos nomes, a fim de que possais utilizar-nos para o que julgardes necessário.

 

— Soldados — exclamou resoluta —, não precisais declinar nomes. Agradeço a vossa dedicação espontânea, que poderia ter sido, minutos antes, uma inconsciência criminosa; lamentando, apenas, que seis homens aliados a esta multidão permitissem a consumação deste ato de infâmia e suprema covardia, que a justiça divina acaba de punir perante os vossos olhos!…

 

Todos se haviam calado, como por encanto, ao ouvirem essas enérgicas palavras.

 

 

A massa popular tem dessas versatilidades misteriosas. Basta, às vezes, um gesto para que se despenhe nos abismos do crime e da desordem; uma palavra chicoteante para faze-la regressar ao silêncio e ao equilíbrio necessários.

 

Lívia compreendeu que a situação era sua, e, dirigindo-se aos prepostos de Sulpício, falou corajosamente:

 

— Vamos, providenciemos o restabelecimento da calma geral, retirando esses cadáveres.

 

— Senhora —, aventou um deles respeitosamente, — sentimo-nos na obrigação de enviar um mensageiro a Cafarnaum, de modo que o senhor governador seja avisado destes acontecimentos.

 

 

Todavia, com a mesma expressão de serenidade, respondeu ela firmemente:

 

— Soldado, eu não permito a retirada de nenhum de vós outros, enquanto não derdes estes corpos à sepultura. Se o vosso governador possui um coração de fera, sinto-me agora na obrigação de proteger a paz das almas bem formadas. Não desejo que se repita nesta casa uma nova cena de covardia e de infâmia. Se a autoridade, neste país, atingiu o terreno das crueldades mais absurdas, eu prefiro assumi-la, resgatando uma dívida do coração para com os despojos deste apóstolo venerando, assassinado com a colaboração da vossa criminosa inconsciência.

 

— Não desejais consultar as autoridades de Sebaste,  a respeito do assunto? — tornou um deles, timidamente.

 

— De modo algum — respondeu ela! com audaciosa serenidade. — Quando o cérebro de um governo está envenenado, o coração dos governados padecem da mesma peçonha. Esperaríamos em vão qualquer providência a favor dos mais humildes e dos mais infelizes, porque a Judeia  está sob a tirania de um homem cruel e tenebroso. Ao menos hoje, quero afrontar o poder da perversidade, invocando em meu auxílio a misericórdia infinita de Jesus.

 

 

Silenciaram os soldados romanos, em face da sua atitude serena e imperturbável. E, obedecendo-lhe às ordens, colocaram os despojos inertes de Simeão sobre a mesa enorme e rústica das preces costumeiras.

 

Foi então que os mesmos companheiros, que haviam negado o velho mestre do Evangelho, acercaram-se piedosamente do seu cadáver, beijando-lhe as mãos mirradas, com enternecimento, arrependidos da sua covardia e fraqueza, cobrindo-lhe de flores os despojos sangrentos.

 

Anoitecia, mas tênues claridades do crepúsculo, na formosa paisagem da Samaria, ainda não havia abandonado, de todo o horizonte.

 

Um força indefinível parecia amparar o espírito de Lívia, alvitrando-lhe todas as providências necessárias.

 

Em pouco, ao esforço hercúleo de numerosos samaritanos, foram retiradas pesadas pedras do grupo de rochas que protegia a cova, onde se haviam abrigado as três fugitivas, enquanto, às ordens de Lívia, os seis soldados abriam uma sepultura rasa, longe daquele local, para o corpo de Sulpício.

 

 

Brilhavam, já, as primeiras constelações do firmamento, quando terminou a improvisação dos serviços dolorosos.

 

No instante de transportarem os despojos do ancião, que Lívia envolveu, pessoalmente, em alvo sudário de linho, ela fez questão de orar rogando ao Senhor recebesse, no seu Reino de Luz e Verdade, a alma generosa do seu apóstolo valoroso.

 

Ajoelhou-se como uma figura angélica junto àquele banco humilde e tosco, onde tantas vezes se sentara o servidor de Jesus, entre as suas oliveiras frondosas e bem-amadas. Todos os presentes, inclusive os próprios soldados que se sentiam empolgados de misterioso temor, prostraram-se genuflexos, acompanhando-lhe a reverência, enquanto, à claridade de algumas tochas, sopravam perfumadas as brisas leves das noites formosas e estreladas da Samaria de há dois mil anos…

 

— Irmãos — começou ela, emocionada, assumindo pela primeira vez a direção de uma assembleia de crentes —, elevemos a Jesus o coração e o pensamento!…

 

 

Uma sensação mais forte parecia embargar-lhe a voz, inundando-lhe os olhos de lágrimas doloridas…

 

Mas, como se forças invisíveis e poderosas a alentassem, continuou serenamente:

 

— Jesus, meigo e divino Mestre, foi hoje o dia glorioso em que partiu para o Céu um valoroso apóstolo do teu Reino!… Foi ele, aqui na Terra, Senhor, a nossa proteção, o nosso amparo e a nossa esperança!… Na sua fé, encontramos a precisa fortaleza, e foi em seu coração compassivo que conseguimos haurir o consolo necessário!… Mas julgaste oportuno que Simeão fosse descansar no teu regaço amoroso e compassivo! Como tu, sofreu ele os tormentos da cruz, revelando a mesma confiança na Providência Divina, nos dolorosos sacrifícios do seu amargo testemunho… Recebe-o, Senhor, no teu Reino de Paz e de Misericórdia! Simeão tornou-se bem-aventurado por suas dores, por seu denodo moral, por suas angustiosas aflições suportadas com o valor e a fé que nos ensinaste… Ampara-o nas claridades do Paraíso do teu amor inesgotável, e que nós, exilados na saudade e na amargura, aprendamos a lição luminosa do teu valoroso apóstolo da Samaria!… Se algum dia nos julgares também dignos do mesmo sacrifício, fortalece-nos a energia, para que provemos ao mundo a excelência dos teus ensinamentos, ajudando-nos a morrer com valor, pela tua paz e pela tua verdade, como o teu missionário carinhoso a quem prestamos, nesta hora, a homenagem do nosso amor e do nosso reconhecimento…

 

 

Nesse ínterim, houve na sua oração um interregno. Todavia, continuou:

 

— Jesus, a ti que vieste a este mundo, mais para os desesperados da salvação, levantando os mais doentes e os mais infelizes, endereçamos, igualmente, nossa súplica pelo celerado que não hesitou em tripudiar sobre tuas leis de fraternidade e amor, martirizando um inocente, e que foi arrebatado pela morte para o julgamento da tua justiça. Queremos esquecer a sua infâmia, como perdoaste aos teus algozes do alto da cruz infamante do martírio… Ajuda-nos, Senhor, para que compreendamos e pratiquemos os teus ensinos!…

 

 

Levantando-se, comovida, Lívia descobriu o cadáver do apóstolo e beijou-lhe as mãos pela última vez, exclamando em lágrimas, carinhosa:

 

— Adeus, meu mestre, meu protetor e meu amigo… Que Jesus te receba o Espírito iluminado e justo no seu Reino de luzes imortais, e que a minha pobre alma saiba aproveitar, neste mundo, a tua lição de fé e valoroso heroísmo!…

 

Repousado numa urna improvisada, o corpo inerte de Simeão foi conduzido ao seu último jazigo. Numerosas tochas haviam sido acesas para o ofício amargo e doloroso.

 

E enquanto o cadáver do lictor Sulpício descia à terra úmida, sem outro auxílio além da cooperação dos seus prepostos, o nobre ancião ia repousar à frente do seu templo e do seu ninho, entre as virações cariciosas do vale, à sombra fresca das oliveiras que lhe eram tão queridas!…

 

 

Lívia dispensou, em seguida, os soldados do governador e, guardada por homens valorosos e dedicados, passou o resto da noite em companhia de Ana e da filhinha, em profundas meditações e dolorosas cismas.

 

Ao raiar da aurora, retiravam-se definitivamente do vale de Siquém,  acompanhadas por um vizinho de Simeão, encaminhando-se, de volta, a Cafarnaum e levando, no íntimo, numerosas lições para toda a vida.

 

Sabedoras de que não se fariam esperar as represálias das autoridades administrativas, regressaram por estradas diferentes, que constituíam atalhos preciosos, sem tocar em Naim para a troca de animais. Com algumas horas sucessivas, em marcha forçada, atingiam o solar tranquilo, onde iam descansar dos golpes sofridos.

 

Lívia remunerou largamente o seu dedicado companheiro de viagem, retirando-se para os seus aposentos, onde fixou, em base preciosa, a pequena cruz de madeira que lhe dera o apóstolo, algumas horas antes do cruento martírio.

 

 

Alguns dias se passaram sobre os infaustos acontecimentos.

 

Pôncio Pilatos, contudo, informado de todos os pormenores do ocorrido, rugiu de ódio selvagem. Reconhecendo que defrontava poderosos inimigos, quais Públio Lêntulus e sua mulher, buscou acionar por outro lado o mecanismo de sinistras represálias. Recolhendo-se imediatamente ao seu palácio de Samaria, fez que todos os habitantes da região pagassem muito caro a morte do lictor, humilhando-os através de medidas aviltantes e vexatórias. Assassínios nefandos foram praticados entre os elementos da população pacífica do vale, propagando-se por Sebaste e outros núcleos mais adiantados a rede de crimes e crueldades da sua mentalidade vingativa e tenebrosa.

 

 

Estacionemos, todavia, em Cafarnaum e aguardemos aí a chegada de um homem.

 

Ao cabo de alguns dias, com efeito, regressava o senador de sua viagem através da Palestina. Após o seu regresso, Lívia cientificou-o de quanto ocorrera na sua ausência. Públio Lêntulus ouvia-lhe o relato silenciosamente. À medida que se lhe tornavam conhecidas as ocorrências, sentia-se intimamente tomado de indignação e de revolta contra o administrador da Judeia, não só pela sua incorreção política, mas também pela extrema antipatia pessoal que a sua figura lhe inspirava, resolvendo, em face do acontecido, não vacilar um segundo em processá-lo acerbamente, como quem julgava dever perseguir o mais cruel dos inimigos.

 

 

O leitor poderá, talvez, supor que o orgulhoso romano teria o coração sensibilizado e modificados os sentimentos a respeito da esposa, de quem presumia possuir as mais flagrantes provas de deslealdade e perjúrio, no santuário do lar e da família. Mas, Públio Lêntulus era humano, e, nessa condição precária e miserável, tinha de ser um fruto do seu tempo, da sua educação e do seu meio.

 

Ao ouvir as últimas palavras de sua mulher, pronunciadas em tom comovido, como o de alguém que pede apoio e reclama o direito de um carinho, replicou austeramente:

 

— Lívia, eu me regozijo com a tua atitude e rogo aos deuses pela tua edificação. Teus atos simbolizam para mim a realidade da tua regeneração, depois da fragorosa queda vista com os meus olhos. Bem sabes que para mim a esposa não mais deve existir; contudo, louvo a mãe de meus filhos, sentindo-me confortado porque, se não acordaste a tempo de seres feliz, despertaste ainda com a possibilidade de viver… Tua repulsa tardia por esse homem cruel me autoriza a crer na tua maternal dedicação e isso basta!…

 

 

Essas palavras, pronunciadas em tom de superioridade e secura, demonstraram à Lívia que a separação afetiva de ambos deveria continuar no ambiente doméstico, irremissivelmente.

 

Abalada nas comoções do seu martírio moral, retirou-se para o quarto, onde se prostrou diante da cruz de Simeão, com a alma desalentada e combalida. Ali, meditou angustiosamente na sua penosa situação, mas, em dado instante, viu que a lembrança humilde do apóstolo da Samaria irradiava uma luz cariciosa e resplandecente, ao mesmo tempo que uma voz suave e branda murmurava aos seus ouvidos:

 

— Filha, não esperes da Terra a felicidade que o mundo não te pode dar! Aí, todas as venturas são como neblinas fugidias, desfeitas ao calor das paixões ou destroçadas ao sopro devastador das mais sinistras desilusões! … Espera, porém, o Reino da misericórdia divina, porque nas moradas do Senhor há bastante luz para que floresçam as mais santificadas esperanças do teu coração maternal!… Não aguardes, pois, da Terra, mais que a coroa de espinhos do sacrifício…

 

A esposa do senador não se surpreendeu com o fenômeno. Conhecendo de oitiva a ressurreição do Senhor, tinha a convicção plena de que se tratava da alma redimida de Simeão, que a seu ver voltava das luzes do Reino de Deus para lhe confortar o coração.

 

 

Por semanas a fio, recebeu Públio Lêntulus a visita de samaritanos numerosos, que lhe vinham solicitar enérgicas providências contra os desmandos de Pôncio Pilatos, então instalado no seu palácio de Samaria, onde permanecia raramente, ordenando o assassínio ou a escravidão de elementos numerosos, em sinal de vingança pela morte daquele que considerava como o melhor áulico da sua casa.

 

Daí a algum tempo, regressava Comênio de sua viagem a Roma, com um professor competente para a pequena Flávia. Além desse preceptor notável, que lhe mandava a carinhosa solicitude de Flamínio Sevérus, chegavam-lhe também novas notícias, que o senador considerava confortadoras. Em virtude da sua solicitação, as altas autoridades do Império determinaram a volta do pretor Sálvio Lêntulus, com a família, para a sede do governo imperial, pedindo-lhe o amigo, particularmente a remessa de dados positivos quanto à administração de Pilatos na Judeia, a fim de que o Senado pleiteasse a sua remoção.

 

 

Em virtude dessas circunstâncias, daí a algum tempo voltava Comênio a Roma levando a Flamínio um volumoso processo, relacionando todas as crueldades praticadas por Pilatos, entre os samaritanos. Em vista das distâncias, por muito tempo rolou o processo nos gabinetes administrativos, até que no ano de 35 foi o Procurador da Judeia chamado a Roma, onde foi destituído de todas as funções que exercia no governo imperial, sendo banido para Viena,  nas Gálias,  onde se suicidou, daí a três anos, ralado de remorsos, de privações e de amarguras.

 

 

Públio Lêntulus permaneceu com as suas esperanças de pai, na mesma vivenda da Galileia, dedicando-se quase que exclusivamente aos seus estudos, aos seus processos administrativos e à educação da filha, que manifestara, muito cedo, pendores literários ao lado de apreciáveis dotes de inteligência.

 

Lívia conservou Ana junto de sua tutela e ambas continuaram orando junto à cruz que lhes dera Simeão no instante extremo, rogando a Jesus a necessária força para as penosas lutas da vida.

 

Debalde a família Lêntulus esperava que o destino lhe trouxesse, de novo, o sorriso encantador do pequenino Márcus e, enquanto o senador e filhinha se preparavam para o mundo, junto de Lívia e Ana, que traziam as suas esperanças postas no Céu, deixemos passar mais de dez anos sobre a dolorosa serenidade da vila de Cafarnaum, mais de dez anos que passaram lentos, silenciosos, tristes.


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João 19:26

Ora Jesus, vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.

jo 19:26
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João 19:34

Contudo um dos soldados lhe furou o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água.

jo 19:34
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Lucas 23:34

E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. E, repartindo os seus vestidos lançaram sortes.

lc 23:34
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Mateus 10:16

Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto sede prudentes como as serpentes e símplices como as pombas.

mt 10:16
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Mateus 26:41

Vigiai e orai, para que não entreis em tentação: na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.

mt 26:41
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Mateus 10:16

Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto sede prudentes como as serpentes e símplices como as pombas.

mt 10:16
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Mateus 6:9

Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;

mt 6:9
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