Capítulo XLV

A Escritura do Evangelho


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Quando Jesus recomendou a pregação da Boa Nova, em diversos rumos, reuniu-se o pequeno colégio apostólico, em torno d’Ele, na humilde residência de Pedro, onde choveram as perguntas no inquérito afetuoso.

— Mestre — disse Filipe, ponderado —, se os maus nos impedirem os passos, que faremos? caber-nos-á recurso à autoridade punitiva?

— Nossa missão — replicou Jesus, pensativo — destina-se a converter maldade em bondade, sombra em luz. Ainda que semelhante transformação nos custe sacrifício e tempo, o programa não pode ser outro.


— Mas… — obtemperou Tomé — e se formos atacados por criminosos?

— Mesmo assim — confirmou o Cristo —, nosso ministério é de redenção, perdoando e amando sempre. Persistindo no bem, atingiremos a vitória final.


— Senhor — objetou Tiago, filho de Alfeu —, se interpelados pelos fariseus, amantes da Lei, que diretrizes tomaremos? São eles depositários de sagrados textos, com que justificam habilmente a orgulhosa conduta que adotam. São arguciosos e discutidores. Dizem-se herdeiros dos Profetas. Como agir, se o Novo Reino determina a fraternidade, isenta da tirania?

— Ainda aí — explicou o Messias Nazareno —, cabe-nos testemunhar as ideias novas. Consagraremos a Lei de Moisés com o nosso respeito. Contudo, renovar-lhe-emos o sentido sublime, tal qual a semente que se desdobra em frutos abençoados. A justiça constituirá a raiz de nosso trabalho terrestre. Todavia, só o espírito de sacrifício garantir-nos-á a colheita.


Verificando-se ligeira pausa, Tadeu, que se impressionara vivamente com a resposta, acrescentou:

— E se os casuístas nos confundirem?

— Rogaremos a inspiração divina para a nossa expressão humana.


— Mas, que sucederá se o nosso entendimento permanecer obscuro, a ponto de não conseguirmos registrar o socorro do Alto? — insistiu o apóstolo.

Esclareceu Jesus, sorridente:

— Será então necessário purificar o vaso do coração, esperando a claridade de cima.


Nesse ponto, André interferiu, perguntando:

— Mestre, em nossa pregação, chamaremos indistintamente as criaturas?

— Ajudaremos a todos, sem exigências — respondeu o Salvador, com significativa inflexão na voz.


— Senhor — interrogou Simão, precavido —, temos boa vontade, mas somos também fracos pecadores. E se cairmos na estrada? e se, muitas vezes, ouvirmos as sugestões do mal, despertando, depois, nas teias do remorso?

— Pedro — retrucou o Divino Amigo —, levantar e prosseguir é o remédio.


— No entanto — teimou o pescador —, e se a nossa queda for tão desastrosa que impossibilite o reerguimento imediato?

— Rearticularemos os braços desconjuntados, remendaremos o coração em frangalhos e louvaremos o Pai pelas proveitosas lições que houvermos recolhido, seguindo adiante…


— E se os demônios nos atacarem? — interrogou João, de olhos límpidos.

— Atraí-los-emos à glória do trabalho pacífico.


— Se nos odiarem e perseguirem? — comentou Tiago, filho de Zebedeu.

— Serão amparados por nós, no asilo do amor e da oração.


— E se esses inimigos poderosos e inteligentes nos destruírem? — inquiriu o filho de Kerioth.

— O Espírito é imortal — elucidou Jesus, calmamente — e a justiça enraíza-se em toda parte.


Foi então que Levi, homem prático e habituado à estatística, observou, prudente:

— Senhor, o fariseu lê o , baseando-se nas suas instruções; o saduceu possui rolos preciosos a que recorre na propaganda dos princípios que abraça; o gentio, sustentando as suas escolas, conta com milhares de pergaminhos, arquivando pensamentos e convicções dos filósofos gregos e persas, egípcios e romanos… E nós? a que documentos recorreremos? que material mobilizaremos para ensinar em nome do Pai Sábio e Misericordioso?!


O Mestre meditou longamente e falou:

— Usaremos a palavra, quando for necessário, sabendo porém que o verbo degradado estabelece o domínio das perturbações e das trevas. Valer-nos-emos dos caracteres escritos na, extensão do Reino do Céu. No entanto, não ignoraremos que as praças do mundo exibem numerosos escribas de túnicas compridas, cujo pensamento escuro fortalece o império da incompreensão e da sombra. Utilizaremos, pois, todos os recursos humanos, no apostolado, entendendo, contudo, que o material precioso de exposição da Boa Nova reside em nós mesmos. O próximo consultará a mensagem do Pai em nossa própria vida, através de nossos atos e palavras, resoluções e atitudes…


Pousando a destra no peito, acentuou:

— A escritura divina do Evangelho é o próprio coração do discípulo.


Os doze companheiros entreolharam-se, admirados, e o silêncio caiu entre eles, enquanto as águas cristalinas, não longe, refletiam o céu imensamente azul, cortado de brisas vespertinas que anunciavam as primeiras visões da noite…


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier


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