Cinquenta Anos Depois

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Capítulo VI

No horto de Célia

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Nos arredores de Alexandria,  a filha de Helvídio havia granjeado a melhor e merecida fama de amor e bondade.

Transferida para aquela região de gente pobre e humilde, convertera todas as recordações mais queridas, bem como as suas dores mais íntimas, em hinos de caridade pura, que se evolavam ao Céu entre as bênçãos de todos os sofredores infelizes.

O sofrimento e a saudade como que lhe modelaram as feições angélicas porque, no semblante calmo esbatia-se um traço indefinível de visão celestial… A vida de ascetismo, de abnegação e renúncia, dera-lhe uma nova fácies, que deixava transparecer nos olhos, serenos e brilhantes, a pureza indefinível dos que se encontram prestes a atingir as claridades radiosas de outra vida.

 

Havia muito, começara a entisicar  e, contudo, não abandonara a faina apostolar junto dos sofredores. De tarde, lia o Evangelho, ao ar livre, para quantos lhe buscavam o amparo espiritual, explicando os ensinos de Jesus e de seus divinos seguidores, fazendo crer, nesses momentos, que uma força divina dela se apossava. A voz, habitualmente débil, ganhava tonalidades diferentes, como se as cordas vocais vibrassem ao sopro de uma divina inspiração.

Conservava-se no mesmo tugúrio, ao pé do horto, cujos trabalhos rudes nunca deixaram de lhe merecer atenção e carinho. Todos os irmãos do mosteiro exceto Epifânio, buscavam-lhe agora a convivência, acatando-lhe as elucidações evangélicas e cooperando nos seus esforços.

A jovem romana, transformada em irmão carinhoso dos infelizes, guardava as mesmas disposições intimas de sempre, cheia de fé e esperança no Senhor de bondade e sabedoria.

 

O pequeno enjeitado de Brunehilda, depois de lhe suavizar a soledade, por alguns anos, com os seus carinhos e sorrisos, havia falecido, deixando-a amargurada e abatida mais que nunca. Impressionada com o acontecimento, Célia deprecara fervorosamente e, uma noite, quando se entregava à solidão de suas preces e meditações, divisou a seu lado o vulto de Cneio Lúcius contemplando-a com infinita ternura.

— Filha querida, não te magoe essa nova separação do ente idolatrado! Prossegue na tua fé; cumprindo a missão divina que o Senhor houve por bem deferir à tua alma sensível e generosa! Depois de perfumar, por alguns anos, a tua senda terrena, o Espírito de Ciro volve de novo ao Além para saturar-se de forças novas! Não desanimes pela saudade que te punge o coração sensibilíssimo, pois nossa alma semeia o amor na Terra para vê-lo florir nos Céus, onde não chegam as tristes inquietações do mundo!… Além do mais, Ciro tem necessidade dessas provações, que lhe hão de temperar a vontade e o sentimento para os gloriosos feitos do seu porvir espiritual!…

 

Nessa altura, a amorável entidade deteve-se como que intencionalmente, a fim de observar o efeito de suas palavras.

Desfeita em lágrimas, a jovem falou mentalmente, como se palestrasse com o avô no ádito do coração:

— Não duvido de que todas as dores nos são enviadas por Jesus, afim de aprendermos o caminho da redenção divina, mas, qual a razão dessas vidas temporárias de Ciro na Terra? Se ele tem chegado a viver no ambiente humano, ainda necessitado das experiências terrestres, porque vem a morte decepando as nossas esperanças?

— Sim — replicou a entidade amorosamente — são as leis da prova que rege os nossos destinos.

— Mas Ciro, há alguns anos, não chegou a morrer pelo Divino Mestre, no martírio e no sacrifício?

— Filha, entre os mártires do Cristianismo, há os que se desprendem do mundo em missão sacrossanta e os que morrem para resgates os mais penosos… Ciro é do número destes últimos… Em séculos anteriores, foi um déspota cruel, exterminando esperanças e envenenando corações… Mergulhado depois na luta expiatória, renegou as dores santificantes e enveredou pela senda ignominiosa do suicídio. É justo, pois, que agora aprecie os benefícios da luta e da vida, na dificuldade de os readquirir para a sua redenção espiritual, ansiosamente colimada. As experiências fracassadas hão de valorizar o seu futuro de realizações e esforços nobilíssimos. Em face da dor e do trabalho, no porvir que se aproxima, seu coração amará todos os detalhes da luta redentora. Saberá prezar no trabalho ingente e doloroso os recursos sagrados da sua elevação para Deus, reconhecendo a grandeza do esforço, da renúncia e do sacrifício!…

 

Confortada com os esclarecimentos do mentor espiritual, logo entrevisou outra entidade de semblante nobre e triste, a contemplá-la num misto de alegria e amargura.

Estranhando a visão, sentiu que a palavra carinhosa do avô esclarecia:

— Não te surpreendas nem te assustes! Tua mãe, hoje no Plano espiritual, aqui vem comigo, trazer-te o coração bondoso e agradecido!…

Dolorosas emoções lhe vibraram no íntimo, por força daquelas revelações inesperadas. As lágrimas se fizeram mais amargas e copiosas. Duvidava da própria vidência, lembrando o passado com os seus espinhos e sombras desoladoras. Mas, anjo ou sombra, o Espírito de Alba Lucínia, como que submerso num véu de tristeza impenetrável, aproximou-se e lhe beijou as mãos.

Célia desejava que aquela entidade triste e benfazeja lhe dissesse algo ao coração. A sombra materna, porém, continuava muda e consternada. Contudo, sentiu que, na mão direita que a sombra osculara, persistia uma sensação indefinível, como se, com o seu beijo, Alba Lucínia trouxesse também uma lágrima ardente e dolorida.

Ante o choque inesperado, a jovem romana notou que ambas as entidades escapavam novamente ao seu olhar.

 

Nessa noite, meditou sobre o passado, mais que em outros dias, entregando a Jesus as suas preocupações e as suas mágoas, rogando ao Senhor lhe fortificasse o espírito, afim de compreender e cumprir integralmente os santos desígnios da sua vontade divina.

No dia imediato ao de suas amargas reflexões concernentes ao passado doloroso, grande multidão buscava-lhe os fraternos serviços. Eram velhinhos desolados à cata de uma palavra consoladora e amiga, mulheres das povoações mais próximas, que lhe traziam os filhinhos enfermos, sem falar das muitas pessoas procedentes de Alexandria, em busca de lenitivo espiritual para os dissabores da vida.

À medida que as cercanias do mosteiro se enchiam de viaturas, seu vulto franzino e melancólico desdobrava-se em esforços inauditos para consolar e esclarecer a todos.

De vez em quando, um acesso de tosse sobrevinha, provocando a piedade alheia; ela, porém, transformando a sua fragilidade em energia espiritual inquebrantável, parecia não sentir o aniquilamento do corpo, de modo a manter sempre acesa a luz da sua missão de caridade e de amor.

 

De tarde, invariavelmente, procedia às leituras evangélicas, ouvidas pelos visitantes numerosos e pela gente simples do povo.

Foi aí, aos lampejos do crepúsculo, que seus olhos atentaram numa viatura elegante e nobre, de cujo interior saltava Helvídio Lúcius, que o seu coração filial identificou imediatamente. O antigo tribuno encontrando a pequena assembleia ao ar livre, procurou acomodar-se como pode, enquanto nos traços fisionômicos do Irmão Marinho surgiam os sinais da emoção que lhe vibrava na alma… Entretanto, sua palavra prosseguia sempre, saturada de intensa ternura, em minudente comentário à parábola do Senhor. O irmão dos infortunados e dos doentes falava das pregações do Tiberíade,  como se houvesse conhecido a Jesus de Nazaré, tal a fidelidade e a amorosa vibração da sua palavra.

Enlevado na contemplação do maravilhoso quadro, o filho de Cneio Lúcius fixou o famoso missionário, tomado de surpresa estranha! Aquela voz, aquele perfil lembrando um mármore precioso, burilado pelas lágrimas e sofrimentos da vida, não lhe recordavam a própria filha? Se aquele Irmão Marinho vestisse a indumentária feminina, raciocinava o tribuno vivamente interessado, seria a imagem perfeita da filhinha que ele vinha buscando por toda parte, sem consolação e sem esperança. Assim conjeturando, seguia-lhe a palavra, cheio de surpresa cariciosa.

 

Ninguém ainda lhe falara do Evangelho com aquela clareza e simplicidade, com aquela unção de amor e firmeza, que, instintivamente, lhe penetravam o coração, propinando-lhe um brando consolo. Fizera a viagem de Óstia  a Alexandria  abatido e enfermo. Seu estado orgânico chegara a despertar o interesse de alguns amigos romanos, a ponto de insistirem pelo seu imediato regresso à metrópole. Profundo cansaço transparecia-lhe dos olhos tristes, de uma tristeza inalterável e de um penoso desencanto da vida. Mas ao ouvir aquele apóstolo extraordinário, cheio de benevolência e brandura, experimentava no imo um alívio salutar. A brisa vespertina afagava-lhe levemente o rosto, com os derradeiros reflexos do sol a diluir-se em nuvens distantes. A seu lado, concentrada, a multidão dos pobres, dos enfermos, dos desventurados da sorte, em preces fervorosas, como se esperassem todas as felicidades do Céu para os seus dias tristes.

A poucos passos, a figura esbelta e delicada do irmão dos infortunados e aflitos, que lhe falava ao coração com maravilhosa suavidade.

A Helvídio Lúcius pareceu-lhe que fora transportado a um país misterioso, cheio de figuras apostólicas e sentia-se entre aqueles crentes anônimos, na posse de um bem-estar indizível.

 

Desde a dolorosa desencarnação da companheira, tinha o espírito mergulhado num véu de amarguras atrozes. Nunca mais desfrutara tranquilidade íntima, sob o peso de suas angústias pungentes. Entretanto, os ensinamentos do Irmão Marinho, suas considerações e suas preces, proporcionavam-lhe intraduzível esperança. Figurou-se-lhe que bastava aquele instante breve para que pudesse reerguer a confiança num futuro espiritual, pleno de realidades divinas. Sem poder explicar a causa da sua emotividade, começou a chorar silenciosamente, como se somente naquele instante houvesse afeiçoado, de fato, o coração às belezas imensas do Cristianismo. Terminadas as interpretações e as preces do dia, enquanto a multidão se retirava comovida, Célia deixara-se ficar no mesmo ponto, sem saber que norma adotar naquelas circunstâncias. No íntimo, contudo, agradecia a Deus a graça sublime de surpreender o espírito paterno tocado de suas luzes divinas, suplicando ao Senhor permitisse ao seu coração filial receber a necessária inspiração dos seus augustos mensageiros.

 

Na quase imobilidade de suas conjeturas naquele momento grave do seu destino, foi despertada pela voz de Helvídio Lúcius que se aproximara, exclamando:

— Irmão Marinho, sou um pecador desencantado do mundo, que vem até aqui atraído por vossas virtudes sacrossantas. Venho de longe e bastou um momento de contato com a vossa palavra e ensinamentos para que me reconfortasse um pouco, experimentando mais fé e mais esperança. Desejava falar-vos… A noite, contudo, não tarda e temo aborrecer-vos…

A humildade dolorida daquelas palavras, dera à jovem cristã uma ideia perfeita de todos os tormentos que haviam aniquilado o coração paterno.

Helvídio Lúcius já não apresentava aquele porte ereto e firme que o caracterizava como legítimo cidadão do Império e da sua época. Os lábios tranquilos, de outrora, ajustavam-se num ricto de tristeza e angústia indefiníveis. Os cabelos estavam completamente brancos, como se um inverno implacável e rijo lhe houvesse despejado na cabeça um punhado de neve indestrutível. Os olhos, aqueles olhos que tantas vezes lhe patentearam uma energia impulsiva e orgulhosa, eram agora melancólicos, espraiando-se com humildade sincera por toda parte, ou dirigindo-se com expressões súplices para o Alto, como se de há muito estivessem mergulhados nas mais angustiosas rogativas.

 

Célia compreendeu que uma tempestade dolorosa e inflexível havia desabado sobre a alma paterna, para que se pudesse realizar aquela metamorfose.

— Meu amigo — murmurou de olhos úmidos — rogo a Deus que se não dissipem as vossas impressões primeiras e é em seu nome que vos ofereço a minha choupana humilde! Se vos apraz, ficai comigo, pois terei grande júbilo com a vossa presença generosa!…

Helvídio Lúcius aceitou o delicado oferecimento, enxugando uma lágrima.

E foi com enorme surpresa que reparou no casebre onde vivia, confortado, o irmão dos infelizes.

Em poucos instantes o Irmão Marinho arranjou-lhe um leito humilde e limpo, obrigando-o a repousar. Guardando n’alma uma alegria santa, a jovem se movia, de um lado para outro e não tardou levasse ao tribuno surpreso um caldo substancioso e um copo de leite puro, que lhe confortaram o organismo. Depois, foram os remédios caseiros manipulados por ela mesma, com satisfação intraduzível.

 

A noite caíra de todo com o seu cortejo de sombras, quando o Irmão Marinho assentou-se à frente do hóspede, encantado e comovido com tantas provas de carinhoso desvelo.

Falaram então de Jesus, do Evangelho, casando harmônicas as opiniões e os conceitos acerca do Cordeiro de Deus e da exemplificação de sua vida.

De vez em quando, o tribuno contemplava o interlocutor, com o mais acentuado interesse, guardando a impressão de que o conhecera alhures.

Por fim, dentro do profundo bem-estar que sentia renascer-lhe no íntimo, Helvídio Lúcius ponderou:

— Cheguei ao Cristianismo qual náufrago, após as mais ásperas derrotas do mundo! Sinto que o Divino Mestre endereçou à minh’alma todos os apelos suaves da sua misericórdia; no entanto, eu estava surdo e cego, no âmbito de lamentáveis desvarios. Foi preciso que uma hecatombe desabasse em meu lar e sobre o meu destino, para que, no fragor da tempestade destruidora, conseguisse romper as muralhas que me separavam da nítida compreensão dos novos ideais florescentes para a mentalidade e o coração do mundo.

 

Jamais confiei a alguém os episódios pungentes da minha vida, mas sinto que vós, apóstolo de Jesus e seguidor do Mestre na exemplificação do bem, podereis compreender minha existência, ajudando-me a raciocinar evangelicamente, para que cumpra os meus deveres nestes últimos dias de atividade terrena. Nunca, em parte alguma, deixei de experimentar uma tal ou qual dúvida que me desconsola: aqui, porém, sem saber porquê, experimento uma tranquilidade desconhecida. Julgo dever confiar em vós, como em mim mesmo!… Há muito, sinto necessidade de um conforto direto, e somente a vós confio as minhas chagas, na expectativa de um auxílio carinhoso e fraterno!…

— Se isso vos faz bem, meu amigo — exclamou a jovem, enxugando uma lágrima discreta — podeis confiar no meu coração, que rogará ao Senhor pela vossa paz espiritual em todos os transes da vida…

 

E enquanto o Irmão Marinho lhe acariciava a cabeça encanecida prematuramente, atormentado por dolorosas recordações, Helvídio Lúcius sem saber explicar o motivo de sua confiança, começou a contar-lhe o penoso romance da sua existência. De vez em quando, a voz tornava-se abafada por uma que outra lembrança ou episódio. A cada pausa o interlocutor, comovido, respondia ao seu estado d’alma com essa ou aquela advertência, traindo as próprias reminiscências. O tribuno surpreendia-se com isso, mas atribuía o fato às faculdades divinatórias, presumíveis no apóstolo do amor e da caridade pura, que tinha à sua frente.

 

Depois de longas horas de confidência, em que ambos choravam silenciosamente, Helvídio concluía:

— Aí tem, Irmão Marinho, minha história amargurada e triste. De todas as tragédias lembradas, guardo profundo remorso, mas o que mais me acabrunha é lembrar que fui um pai injusto e cruel. Um pouco mais de calma e um pouco menos de orgulho, teria chegado à verdade, afastando os gênios sinistros que pesavam sobre o meu lar e o meu destino!… Relembrando esses acontecimentos, ainda hoje me sinto transportado ao dia terrível em que expulsei do coração a filha querida. Desde que me certifiquei da sua inocência, procuro-a ansioso por toda parte; parece-me, contudo, que Deus, punindo meus atos condenáveis, entregou-me aos supremos martírios morais, para que eu compreendesse a extensão da falta. É por isso, Irmão, que me sinto réu da justiça divina, sem consolação e esperança. Tenho a impressão de que, para reparar meu grande crime, terei de andar como o judeu errante da lenda,  sem repouso e sem luz no pensamento. Pela minha exposição sincera e amargurada, compreendeis, agora, que sou um pecador desiludido de todos os remédios do mundo. Por isso, resolvi apelar para vossa bondade, afim de me proporcionardes um lenitivo. Vós que tendes iluminado tantas almas, apiedai-vos de mim que sou um náufrago desesperado!

 

As lágrimas abafaram-lhe a voz.

Célia também o ouvia de olhos molhados, sentindo-se tocada em todas as fibras do seu coração de filha meiga e afetuosa.

Desejou revelar-se ao pai, beijar-lhe as mãos encarquilhadas, dizer-lhe do seu júbilo em reencontrá-lo no mesmo caminho que a conduzia para Jesus… Quis afirmar que o amara sempre e olvidara o passado de prantos dolorosos, a fim de poderem ambos elevar-se para o Senhor, na mesma vibração de fé, mas uma força misteriosa e incoercível paralisava-lhe o ímpeto.

 

Foi assim que murmurou carinhosamente:

— Meu amigo, não vos entregueis de todo ao desânimo e ao abatimento! Jesus é a personificação de toda a misericórdia e há-de, certamente, confortar-vos o coração! Creiamos e esperemos na sua bondade infinita!…

— Mas, obtemperava Helvídio Lúcius na sua sinceridade dolorosa — eu sou um pecador que se julga sem perdão e sem esperança!

— Quem não o seria neste mundo, meu amigo? — exclamou Célia cheia de bondade — Porventura, não seria destinada a todos os homens a lição da “primeira pedra”? (Jo 8:7) Quem poderá dizer “nunca errei”, no oceano de sombras em que vivemos? Deus é juiz supremo e na sua misericórdia inexaurível não pode cobrar aos filhos um débito inexistente!… Se vossa filha sofreu, houve, em tudo, uma lei de provações, que se cumpriu conforme com a sabedoria divina!…

— No entanto — gemeu o tribuno em voz amarga — ela era boa e humilde, carinhosa e justa! Além do mais, sinto que fui impiedoso, pelo que, experimento agora, as mais rudes acusações da própria consciência!…

 

E como se quisesse transmitir ao interlocutor a imagem exata das suas reminiscências, o filho de Cneio Lúcius; acrescentou, enxugando as lágrimas:

— Se a visses, Irmão, no dia fatídico e doloroso, concordaríeis; certo, em que minha desventurada Célia era qual ovelha imaculada a caminhar para o sacrifício. Não poderei esquecer o seu olhar pungente, ao afastar-se do aprisco doméstico, ao segregar-se do santuário da família, honrado sempre pela sua alma de menina com os atos mais nobres de trabalho e renúncia! Recordando esses fatos, vejo-me qual tirano que, depois de se abandonar a toda sorte de crimes, andasse pelo mundo mendigando a própria justiça dos homens, de modo a experimentar o desejado alívio da consciência!

Ouvindo-lhe as palavras, a jovem chorava copiosamente, dando curso às suas próprias reminiscências, eivadas de dor e de amargura.

— Sim, Irmão — continuou o tribuno angustiado — sei que chorais pelas desventuras alheias; sinto que as minhas provas tocaram igualmente o vosso coração. Mas, dizei-me!… que deverei fazer para encontrar, de novo, a filha bem-amada? Será que também ela tenha buscado o Céu sob o látego das angústias humanas? Que fazer para beijar-lhe, um dia, as mãos, antes da morte?

 

Essas perguntas dolorosas encontravam tão somente o silêncio da jovem, que chorava comovida. Breve, porém, como tomada de súbita resolução, acentuou:

— Meu amigo, antes de tudo precisamos confiar plenamente em Jesus, observando em todos os nossos sofrimentos a determinação sagrada da sua sabedoria e bondade infinitas! Não desprezemos, porém, o tempo, a lastimar o passado. Deus abençoa os que trabalham e o Mestre prometeu amparo divino a quantos laborem no mundo, com perseverança e boa vontade!… Se ainda não reencontrastes a filhinha carinhosa, é necessário dilatar os laços do sangue, a fim de que eles se conjuguem nos laços eternos e luminosos da família espiritual. Deus velará por vós, desde que, para substituir o afeto da filha ausente, busqueis estender o coração a todos os desamparados da sorte… Há milhares de seres que suplicam uma esmola de amor aos semelhantes! Debalde mostram os braços nus aos que passam, felizes, pelos caminhos floridos de esperanças mundanas.

 

Conheço Roma  e o turbilhão de suas misérias angustiosas. Ao lado das residências nobres das Carinas, dos edifícios soberbos do Palatino  e dos bairros aristocráticos, há os leprosos da Suburra,  os cegos do Velabro,  os órfãos da Via Nomentana,  as famílias indigentes do Trastevere,  as negras misérias do Esquilino!…  Estendei vosso braço às filhas dos pais anônimos, ou dos lares desprotegidos da fortuna!… Abracemo-nos com os miseráveis, repartamos nosso pão para mitigar a fome alheia! Trabalhemos pelos pobres e pelos desgraçados, pois a caridade material, tão fácil de ser praticada, nos levará ao conhecimento da caridade moral que nos transformará em verdadeiros discípulos do Cordeiro. Amemos muito!… Todos os apóstolos do Senhor são unânimes em declarar que o bem cobre a multidão de nossos pecados! (1Pe 4:8) Toda vez que nos desprendemos dos bens deste mundo, adquirimos tesouros do Alto, inacessíveis ao egoísmo e à ambição que devoram as energias terrestres. Convertei o supérfluo de vossas possibilidades financeiras em pão para os desgraçados. Vesti os nus, protegei os órfãozinhos! Todo o bem que fizermos ao desamparo constitui moeda de luz que o Senhor da Seara entesoura para nossa alma. Um dia nos reuniremos na verdadeira pátria espiritual, onde as primaveras do amor são infindáveis. Lá, ninguém nos perguntará pelo que fomos no mundo, mas seremos inquiridos sobre as lágrimas que enxugamos e as boas ou más ações que praticamos na estância terrena.”

 

E, de olhos fixos como a vislumbrar paisagens celestes, prosseguia:

— Sim, há um reino de luz onde o Senhor nos espera os corações! Façamos por merecer-lhe as graças divinas. Os que praticam o bem são colaboradores de Deus no infinito caminho da vida… Lá, não mais choraremos em noite escura, como acontece na Terra. Um dia perene banhará a fronte de todos os que amaram e sofreram nas estradas espinhosas do mundo. Harmonias sagradas vibrarão nos Espíritos eleitos que conquistarem essas moradas cariciosas!… Ah! que não faremos nós para alcançar esses jardins de delícia, onde repousaremos nas realizações divinas do Cordeiro de Deus?! Mas, para penetrar essas maravilhas, temos de início o trabalho de aperfeiçoamento interior, iluminando a consciência com a exemplificação do Divino Mestre!

 

Havia no olhar do Irmão Marinho um clarão sublimado, como se os olhos mortais estivessem descansando nesse país da luz, formoso e fulgurante, que as suas promessas evangélicas descreviam. Lágrimas serenas deslizavam-lhe dos olhos calmos, selando a verdade das suas palavras. Helvídio Lúcius chorava, sensibilizado, sentindo que as sagradas emoções da jovem lhe invadiam igualmente o coração, num divino contágio.

— Irmão Marinho — disse a custo — pressinto a realidade luminosa dos vossos conceitos e por isso trabalharei indefessamente, afim de obter a precisa paz de consciência e poder meditar na morte, com a beleza de vossas concepções. Praticarei o bem, doravante, sob todos os aspectos e por todos os meios ao meu alcance, e espero que Jesus se apiade de mim.

— Certo, o Divino Mestre nos ajudará — concluiu a jovem; acariciando-lhe os cabelos brancos.

 

A noite ia adiantada e Célia, deixando o coração paterno banhado de consoladoras esperanças, recolheu-se a um mísero cubículo, onde, desfeita em pranto, rogou a Cneio Lúcius a esclarecesse naquele transe difícil, por isso que o afeto filial se apossava de suas fibras mais sensíveis.

Sorriso piedoso e calmo, o Espírito do velhinho correspondeu-lhe às súplicas, dizendo do seu intenso agradecimento a Deus, por ver o filho entre as luzes cristãs, mas, advertindo que a revelação da sua identidade filial era, naquelas circunstâncias, inaproveitável e extemporânea, e encarecendo aos seus olhos a delicadeza da situação e as realizações do porvir.

 

Fortalecida e encorajada, Célia preparou a primeira refeição da manhã; que o tribuno ingeriu, sentindo um novo sabor e experimentando as melhores disposições para enfrentar de novo a vida.

Sabendo da sua antiga predileção pelo ambiente rural, o Irmão Marinho levou-o a visitar o horto extenso, onde, à custa de seus esforços e trabalhos ingentes, o mosteiro de Epifânio possuía um verdadeiro parque de produção sadia e sem preço.

Nos grandes talhões da terra, elevavam-se árvores frutíferas, cultivadas com esmero, salientando-se as seções de legumes e a zona bem cuidada onde se alinhavam animais domésticos. Sob as ramagens frondosas descansavam cabras mansas, a confundirem-se com as ovelhas de lã clara e macia. Além, pastavam jumentas tranquilas e, de quando, em quando, nuvens de pombos passavam alto em revoada alegre. Entre as verduras, brincavam os fios móveis de um grande regato e, em tudo, observava Helvídio Lúcius cuidadosa limpeza, convidando o homem à vida bucólica, simples e generosa.

 

De espaço a espaço, encontravam um velhinho humilde ou uma criança sadia, que o Irmão Marinho saudava com um gesto de ternura e bondade.

Fundamente impressionado com o que via, o filho de Cneio Lúcius acentuou, comovidamente:

— Este horto maravilhoso dá-me a impressão de um quadro bíblico! Entre estas árvores respiro o ar balsâmico, como se o campo aqui me falasse mais intimamente à alma! Esclarecei-me! Quais os vossos elementos de trabalho? Quanto pagais aos trabalhadores dedicados, que devem ser os vossos auxiliares?…

— Nada pago, meu bom amigo, cultivo este horto há muitos anos e é daqui que se abastece o mosteiro, do qual tenho sido modesto jardineiro. Não tenho empregados. Meus auxiliares são antigos moradores da vizinhança, que me ajudam graciosamente, quando podem dispor de alguma folga. Os demais, são crianças da minha modesta escola, fundada há mais de cinco anos para satisfazer as necessidades da infância desvalida, dos povoados mais próximos!…

 

— Mas, que segredo haverá nestas paragens — exclamou Helvídio respirando a longos haustos — para que a terra se mostre tão dadivosa e exuberante?

— Não sei — disse o Irmão dos pobres, com singeleza — aqui tão somente amamos muito a terra! Nossas árvores frutíferas nunca são cortadas, para que recebamos as suas dádivas e as suas flores. Os cordeiros nos dão a lã preciosa; as cabras e as jumentas o leite nutritivo, mas não os deixamos matar, nunca. As laranjeiras e oliveiras são as nossas melhores amigas. Às vezes, é à sua sombra que fazemos nossas preces, nos dias de repouso. Somos, aqui, uma grande família. E os nossos laços de afeto são extensivos à Natureza.

 

Fornecendo as explicações que Helvídio aceitava atenciosamente; enumerava fatos e descrevia episódios de sua observação e experiência próprias, imprimindo em cada palavra o cunho de amor e simplicidade do seu espírito.

— Um dia — explicou com um sorriso infantil — observamos que os cabritos mais idosos gostavam de perseguir os cordeirinhos mansos e pequeninos. Então, as crianças da escola, recordando que Jesus tudo obtinha pela brandura do ensinamento, resolveram auxiliar-me na criação das ovelhas e das cabras, construindo para isso um só redil… Ainda pequenos, uns e outros, filhos de mães diferentes; eram reunidos em todos os lugares e, com o amparo dos meninos, levados às nossas preces e aulas ao ar livre. As crianças sempre acreditaram que as lições de Jesus deviam sensibilizar os próprios animais e eu às tenho deixado alimentar essa convicção encantadora e suave. O resultado foi que os cabritos brigões desapareceram. Desde então, o redil foi um ninho de harmonia. Crescendo juntos, comendo o mesmo pão e sentindo sempre a mesma companhia, uns e outros eliminaram as instintivas aversões!… Por mim, observando essas lições de cada instante, fico a pensar como será feliz a coletividade humana quando todos os homens compreenderem e praticarem o Evangelho!…

 

O tribuno ouviu a historieta na sua radiosa simplicidade, com lágrimas nos olhos.

Fixando o interlocutor, Helvídio Lúcius acentuou, deixando transparecer um brilho novo no olhar:

— Irmão Marinho, estou compreendendo, agora, a exuberância da terra e a maravilha da paisagem. Todos esses feitos são um milagre do devotamento com que vindes consagrando todas as energias à terra benfazeja! Tendes amado muito e isso é essencial. Por muitos anos, fui também homem do campo, mas, até agora, venho explorando o solo apenas com o interesse comercial. Agora compreendo que, doravante, devo amar também a terra, se algum dia regressar à lavoura. Hoje entendo que tudo no mundo é amor e tudo exige amor.

 

A jovem ouvia as considerações paternas, enlevada nas suas esperanças.

— Três dias ali ficou Helvídio Lúcius, a edificar-se naquela paz inalterável. Horas de tranquilidade suave, em que todas as amarguras terrestres como por encanto se lhe aquietavam no íntimo do coração entristecido.

Por vezes, Célia teve ímpetos de lhe comunicar as carinhosas emoções do seu coração filial e, contudo, estranha força parecia coarctar-lhe a vontade, dando-lhe a entender que ainda era prematura qualquer revelação.

 

Por fim, ao despedir-se, mais fortalecido e confortado, o tribuno falou:

— Irmão Marinho, parto com o espírito tocado de novas disposições e de outras energias para enfrentar a luta e as tristes expiações que me competem na Terra!… Rogai a Deus por mim, pedi a Jesus que eu tenha o ensejo e a força de por em prática os vossos conselhos. Volto a Roma com a ideia do bem a cantar-me n’alma. Seguirei vossas sugestões em todos os passos e, nesse escopo, é bem possível que o Senhor satisfaça as minhas justas aspirações paternas. Logo que possa, regressarei para abraçar-vos!… Jamais poderei esquecer o bem que me fizestes!

 

Ela tomou-lhe, então, a destra e beijou-a de olhos úmidos, enquanto o tribuno considerava, comovido, aquele gesto de humildade.

Ansiosamente, deteve-se a contemplar o carro que o transportava, de volta a Alexandria, até que ele se sumisse ao longe, numa nuvem de pó. Fechando-se então, no seu cubículo, abriu uma pequena caixa de madeira trazida de Minturnes, na qual guardava a túnica com que saíra de casa no dia do seu exílio. Entre as poucas peças, repousava a pérola que o pai lhe trouxera da Fócida,  única joia que lhe ficara, depois de totalmente espoliada pela criminosa ambição de Hatéria. E revirava nas mãos, entre lágrimas, os objetos antigos e simples de suas cariciosas lembranças.

Elevando-se em prece a Deus, rogou não lhe faltassem as energias indispensáveis ao cumprimento integral de sua missão.

 

Quanto a Helvídio Lúcius, de regresso, sentia-se como que banhado numa corrente de pensamentos novos.

O Irmão Marinho, a seus olhos, era um símbolo perfeito dos dias apostólicos, quando os seguidores de Jesus operavam no mundo, em seu nome.

Desembarcando em Nápoles,  dirigiu-se para Cápua,  onde foi recebido pelos filhos com excepcionais demonstrações de carinho.

Caio e a esposa exultaram com as suas melhoras físicas e espirituais, apenas estranhando que regressasse do Egito com tantas ideias de caridade e beneficência.

 

Depois de esclarece-los, quanto ao Irmão Marinho e à fascinação que ele exercera no seu espírito, Helvídio Lúcius acentuou:

— Filhos, sinto que não poderei viver muito tempo e quero morrer de conformidade com a doutrina que abracei de coração. Voltarei agora a Roma e tratarei de preparar o porvir espiritual, conforme as minhas novas concepções. Espero que me não contrariem os últimos desejos. Dividirei nossos bens e a terça parte ser-lhes-á entregue em tempo oportuno. O restante, buscarei movimentar de acordo com a minha crença nova. Conto com o auxílio de ambos, neste particular.

 

No íntimo, Caio e Helvídia atribuíram a súbita transformação paterna a sortilégio dos cristãos, que, a seu ver, teriam abusado da sua situação de fraqueza e abatimento, em face dos muitos abalos morais. Nada obstante, com a generosidade que a caracterizava, a esposa de Fabrícius acentuou:

— Meu pai, não ouso discutir vossos pontos de fé, pois, acima de qualquer controvérsia religiosa estão o nosso amor e o vosso bem-estar! Procedei como melhor vos aprouver. Financeiramente, não há preocupar-vos com o nosso futuro. Caio é trabalhador e eu não tenho grandes pretensões. Além do mais, os deuses velarão sempre por nós, como o têm feito até agora. Portanto, podereis agir, sempre confiante em nosso afeto e acatamento às vossas decisões.

 

Helvídio Lúcius abraçou a filha, em sinal de júbilo pela sua compreensão, enquanto Caio, num sorriso, esboçava o seu assentimento.

Voltando a Roma dos seus dias de triunfo e mocidade, o orgulhoso patrício estava radicalmente transformado. Seu primeiro ato de verdadeira conversão a Jesus foi libertar todos os escravos da sua casa, providenciando solicitamente pelo futuro deles.

 

Afrontando os perigos da situação política, não fez mistério de suas convicções religiosas, exaltava as virtudes do Cristianismo nas esferas mais aristocráticas. Os amigos, porém, o ouviam penalizados. Para os de sua esfera social, Helvídio Lúcius padecia as mais evidentes perturbações mentais, provenientes da tragédia dolorosa que lhe enchera o lar de um luto perpétuo e angustioso. O tribuno, todavia; como se prescindisse de todas as honrarias exigidas pelos de sua condição, parecia inacessível aos conceitos alheios e, com assombro de todas as suas relações, dispôs da maioria dos bens patrimoniais em obras piedosas, com as quais os órfãos e as viúvas se beneficiavam. Seus companheiros humildes da Porta Ápia [início da Via Ápia]  se regozijaram com o ardor evangélico de que dava, agora, pleno testemunho, auxiliando-lhes os esforços e defendendo-os publicamente. Não mais se entregou aos ócios sociais, porquanto, às vezes, pela manhã, era visto no Esquilino  ou na Suburra,  no Trastevere  ou no Velabro,  buscando informações dessa ou daquela família de indigentes. Não só isso. Visitou os descendentes de Hatéria, procurou-a no intuito de perdoá-la e não encontrou sequer notícias, pois ninguém conhecia o trágico fim da velhinha, ocorrido no mesmo sentido oculto por ela utilizado para a prática do mal. O tribuno, todavia, aproveitou a estada em Benevento  para ensinar aos membros daquela família, que se considerava integrada na sua tutela, os métodos seguidos pelo Irmão Marinho no trato carinhoso da terra. Em seguida, ei-lo na herdade de Caio Fabrícius, onde assumiu voluntariamente a direção de numerosos serviços rurais, utilizando aqueles processos que jamais poderia esquecer, tornando-se amado como um pai pelos que recebiam, de boa vontade, suas ideias novas e interessantes.

 

Todavia, depois de tantos benéficos labores, o antigo tribuno adoeceu, sobressaltando o coração dos filhos e dos amigos.

Assim esteve um mês, combalido e padecente, quando um dia, melancólico e trêmulo, chamou a filha e lhe disse com a maior ternura:

— Helvídia, sinto que meus dias neste mundo estão contados e desejava rever o Irmão Marinho, antes de morrer.

Ela lhe fez sentir a inconveniência da viagem, mas o tribuno insistia com tanto empenho que acabou anuindo, com a condição de fazer-se acompanhar pelo genro. Helvídio Lúcius recusou, porém, alegando não desejar interromper o ritmo doméstico. Resolveram, então, que seguisse acompanhado por dois servos de confiança, na previsão de qualquer eventualidade.

 

Sentindo-se melhor com a consoladora perspectiva de voltar a Alexandria e rever os sítios onde lograra tanto conforto para o espírito abatido, o tribuno preparou-se convenientemente, não obstante os temores da filha, que lhe beijou as mãos enternecida, de coração pressago, quando o viu partir.

Helvídio Lúcius estreitou-a nos braços com um olhar intraduzível, contemplando em seguida a paisagem rural, melancolicamente, como se quisesse guardar na retina um quadro precioso, observado pela última vez.

Caio e sua mulher, a seu turno, não conseguiram ocultar as lágrimas afetuosas.

 

Com o espírito de resolução que o caracterizava, o filho de Cneio Lúcius não se deu conta dos temores e inquietações dos filhos, partindo serenamente, seguido pelos dois servos de Caio Fabrícius, que o não abandonavam um só instante.

Contudo, antes que a embarcação aproasse a Alexandria ele começou a sentir a recrudescência do seu mal orgânico. À noite, não conseguia forrar-se à dispneia inflexível e, durante o dia, sentia-se tomado de profunda fraqueza.

Fazia mais de um ano que conhecera de perto o Irmão Marinho. Um ano mais, de trabalhos incessantes ao serviço da caridade evangélica. E Helvídio Lúcius, que se deixara fascinar pelo espírito carinhoso do irmão dos infortunados e humildes, não queria morrer sem lhe demonstrar que aproveitara as lições sublimes. Não sabia explicar a simpatia infinita que o monge lhe despertara. Sabia, tão somente, que o amava com arroubos paternais. Assim, vibrando de júbilo por haver aplicado os seus ensinamentos com dedicação e destemor, aguardava ansioso o instante de reve-lo e cientificá-lo de todos os seus feitos, que, embora tardios, lhe haviam calmado extraordinariamente o coração.

 

De Alexandria ao mosteiro, viajou numa liteira especial, com o conforto possível. Ainda assim, chegou ao destino grandemente combalido.

O Irmão Marinho, por sua vez, estava vivendo os derradeiros dias do seu apostolado. Os olhos se lhe haviam tornado mais fundos e, no rosto, pairava uma expressão dolorosa e resignada, como se tivesse absoluta certeza do próximo fim.

O reencontro de ambos foi uma cena comovedora e tocante, porque Célia também esperava ansiosa o coração paterno, crente de que, em breve, partiria ao encontro dos entes queridos que a precederam nas sombras do sepulcro. Havia meses, interrompera as prédicas porque todos os esforços físicos lhe produziam hemoptises. Todavia, os estudos evangélicos continuavam sempre. Os 1rmãos do mosteiro se incumbiram de prosseguir na tarefa sagrada, e os velhos e as crianças substituíam-na nos serviços do horto, onde as árvores se cobriam de flores, novamente. Foi debalde que Epifânio, então tocado pelos atos de sacrifício e humildade daquela alma generosa, tentou levá-la para um aposento confortável e lavado de Sol, no interior do mosteiro, afim de lhe atenuar os padecimentos. Ela preferiu a casinhola singela do horto, fazendo questão de ficar no insulamento das suas meditações e das suas preces, convicta de que o pai voltaria e desejando revelar-se-lhe, antes de morrer.

 

Era quase noite fechada quando o patrício bateu-lhe à porta, atormentado por singulares padecimentos.

Recebeu-o com intenso júbilo, e, embora fraquíssima, providenciou a acomodação imediata dos servos em singela dependência distante, e logo voltando ao interior, onde Helvídio a esperava aflito, dado o agravo súbito de todos os seus males.

Debalde lhe trouxe a jovem os recursos da sua medicina caseira, porque, de hora a hora o tribuno experimentava a dispneia, cada vez mais intensa, enquanto o coração lhe pulsava em ritmo precipitoso…

A noite ia adiantada quando Helvídio Lúcius, fazendo a filha sentar-se junto dele, murmurou com dificuldade:

— Irmão Marinho… não cuides mais do meu corpo… Tenho a impressão de estar vivendo os últimos instantes… Guardava o secreto desejo de morrer aqui, ouvindo as vossas preces, que me ensinaram a amar a Jesus… com mais carinho…

 

Célia começou a chorar amargamente, percebendo a realidade dolorosa.

— Chorais?!… sereis sempre o irmão… dos infelizes e desditosos… Não me esqueçais nas vossas orações…

E, lançando à filha um olhar inolvidável e triste, continuava na voz reticenciosa da agonia:

— Quis voltar para dizer-vos que procurei por em prática as vossas lições sublimes. Sei que outrora fui um perverso, um orgulhoso… Fui pecador, Irmão, vivia longe da luz e… da verdade. Mas… desde que me fui daqui, tenho procurado proceder conforme me ensinastes… Dispus da maior parte dos bens em favor dos pobres e dos mais desfavorecidos da sorte… Procurei proteger as famílias desventuradas do Trastevere, busquei os órfãos e as viúvas do Esquilino… Proclamei minha crença nova entre todos os amigos que me ridicularizaram… Doei uma casa aos companheiros de fé, que se reúnem perto da Porta Ápia… Busquei todos os meus inimigos e lhes pedi perdão para poder repousar o pensamento atormentado… Permanecendo muitos meses na herdade de meus filhos, ensinei o Cristianismo aos escravos, dando-lhes notícias do vosso horto, onde a terra recebe a mais elevada cooperação de amor… Então, via que todos trabalhavam como me ensinastes… Em cada moeda que oferecia aos desgraçados, eu vos via abençoando o meu gesto e a minha compreensão… Não tenho coragem de me dirigir a Jesus… Sinto-me fraco e pequenino diante da sua grandeza… Pensava assim em vós, que conheceis a dolorosa história da minha vida… Pedireis por mim ao Divino Mestre, pois as vossas orações devem ser ouvidas no Céu…

 

Fizera uma pausa na exposição dolorosa, enquanto a jovem se mantinha em silêncio, orando com lágrimas.

Sentando-se a custo, porém, o patrício tomou-lhe a destra e fixando-lhe os olhos percucientes, continuou em voz entrecortada a revelar as suas derradeiras esperanças e desejos:

— Irmão Marinho, tudo fiz com a mesma aspiração paterna de encontrar minha filha no Plano material… Buscando os pobres e desamparados da sorte, muitas vezes julguei encontrá-la; restituída ao meu coração… Desde que me fiz adepto do Senhor, creio firmemente na outra vida… Creio que encontrarei além do sepulcro todos os afetos que me antecederam no túmulo e quisera levar à minha companheira a certeza de haver reparado os erros do passado doloroso… Minha esposa foi sempre ponderada e generosa e eu desejava levar-lhe a notícia… de haver reparado os impulsos doutros tempos, quando não sentia Jesus no coração…

 

E como se desejasse mostrar o seu último desencanto, o moribundo concluía, depois de uma pausa:

— Entretanto… Irmão… o Senhor não me considerou digno dessa alegria… Esperarei, então, o seu breve julgamento, com o mesmo remorso e com o mesmo arrependimento…

Ante aquele ato de humildade suprema e de suprema esperança no Senhor Jesus, o Irmão Marinho levantou-se e, fitando-o de olhos úmidos e brilhantes, exclamou:

— Vossa filha aqui está, esperando a vossa vinda!… Haveis de reconhecer que Jesus ouviu as nossas súplicas!…

Helvídio despediu um olhar penetrante, cheio de amargura e de incredulidade, enquanto, pelas faces pálidas, lhe escorria copioso o suor da agonia.

— Esperai! — Disse a jovem num gesto carinhoso.

 

E volvendo rápida ao interior, desfez-se do burel, e vestiu a velha túnica com que se ausentara do lar no momento crítico do seu doloroso destino, colocando ao peito a pérola da Fócida que o pai lhe ofertara na véspera do angustioso acontecimento. E dando aos cabelos o seu penteado antigo, penetrou no quarto ansiosamente, enquanto o moribundo verificava a sua metamorfose, assomado de espanto.

— Meu pai! meu pai!… — Murmurou enlaçando-lhe o busto, com ternura, como se naquele instante conseguisse realizar todas as esperanças da sua vida.

 

Mas, Helvídio Lúcius, com a fronte empastada de álgido suor, não teve forças para externar a alegria íntima, colhido de surpresa e assombro indefiníveis. Quis abraçar-se à filha idolatrada, beijar-lhe as mãos e pedir-lhe perdão, na sua alegria suprema. Desejava ter voz para dizer do júbilo que lhe dominava o coração paterno, inquirindo-a e expondo-lhe os seus sofrimentos inenarráveis. A alegria intensa havia rompido, porém, as suas derradeiras possibilidades verbais. Apenas os olhos, percucientes e lúcidos, refletiam o estado d’alma, dando conta da sua emoção indefinível. Lágrimas silenciosas começaram a rolar-lhe pelas faces descarnadas, enquanto Célia o osculava, murmurando ternamente:

— Meu pai, do seu reino de misericórdia Jesus ouviu as nossas preces! Eis-me aqui. Sou vossa filha!… Nunca deixei de vos amar!…

 

E como se quisesse identificar-se por todos os modos aos olhos paternais, no instante supremo, acrescentava:

— Não me reconheceis? Vede esta túnica! É a mesma com que saí de casa no dia doloroso… Vedes esta pérola? É a mesma que me destes na véspera de nossas provações angustiosas e rudes… Louvado seja o Senhor que nos reúne aqui, nesta hora de dor e de verdade. Perdoai-me se fui obrigada a adotar uma indumentária diferente, afim de enfrentar a minha nova vida! Precisei desses recursos para defender-me das tentações e furtar-me à concupiscência dos homens inferiores!… Desde que saí do lar, tenho empregado o tempo em honrar o vosso nome… Que desejais vos diga ainda, por demonstrar minha afeição e meu amor?…

 

Mas, Helvídio Lúcius sentia que misteriosa força o arrebatava do corpo; uma sensação desconhecida lhe vibrava no íntimo, envolvia-o numa atmosfera glacial.

Ainda tentou falar, mas as cordas vocais estavam hirtas. A língua paralisara na boca intumescida. Todavia, atestando os profundos sentimentos que lhe vibravam no coração, vertia copiosas lágrimas, envolvendo a filha adorada num olhar amoroso e indefinível. Esboçou um gesto supremo desejando levar as mãos de Célia aos lábios, mas, foi ela quem, adivinhando-lhe a intenção, tomou-lhe as mãos inertes, frias, e osculou-as longamente. Depois, beijou-lhe a fronte, tomada de imensa ternura!…

Ajoelhando-se em seguida, rogou ao Senhor, em voz alta, recebesse o Espírito generoso do pai, no seu reino de amor e de bondade infinita!…

 

Com lágrimas de afeto e de agradecimento ao Altíssimo, cerrou-lhe as pálpebras no derradeiro sono, observando que a fisionomia do tribuno estava, agora, nimbada de paz e serenidade.

Por instantes permaneceu genuflexa e viu que o ambiente se enchera de numerosas entidades desencarnadas; entre as quais se destacavam os perfis de sua mãe e do avô, que ali permaneciam de semblante calmo e radiante, estendendo-lhe os braços generosos.

Figurou-se-lhe que todos os amigos do tribuno estavam presentes no instante extremo, afim de lhe escoltar a alma regenerada, nos luminosos páramos do Cordeiro de Deus.

 

Aos primeiros clarões da aurora, deu as necessárias providências, solicitando a presença dos servos do morto, que acorreram pressurosos ao chamado.

Novamente reintegrada no seu hábito de monge, Célia encaminhou-se ao mosteiro e comunicou o fato à autoridade superior, rogando providências.

Todos, inclusive o próprio Epifânio, auxiliaram o Irmão Marinho na solução do assunto.

Os serviçais de Caio Fabrícius explicaram, porém, que seus patrões, em Cápua, estavam certos de que o viajante não poderia resistir aos percalços da viagem mais que penosa, e os haviam esclarecido sobre as personalidades a quem se deveriam dirigir em Alexandria, para que os despojos voltassem à Campânia,  caso o tribuno falecesse.

 

E assim, de manhã bem cedo, um grupo de quatro homens, inclusive os dois servos aludidos, transportavam o cadáver de Helvídio Lúcius para a cidade próxima.

Encostada à porta da sua choupana e, ante o olhar dos irmãos do mosteiro, que a acompanhavam, Célia contemplou a liteira fúnebre até que desaparecesse ao longe, entre nuvens de pó.

Quando o grupo desapareceu nas derradeiras curvas da estrada, Célia sentiu-se só e abandonada, como nunca. A revivescência da afeição paterna, em tais circunstâncias, lhe havia trazido amargurosa tristeza. Jamais a angústia do mundo se apossara tão fortemente de sua alma. Buscou o refúgio da prece e, todavia, figurou-se-lhe que as mais pesadas sombras lhe haviam invadido o ser. Não tinha desesperado o coração, nem o senso do infortúnio lhe consentia queixumes e lamentações. Mas, uma saudade singular dos seus mortos bem-amados enchia-lhe, agora, o coração, de um como filtro misterioso de indiferentismo para o mundo. Começou a fixar o pensamento em Jesus, mas, em breve, as rosas de sangue começaram a brotar de sua boca, num fluxo contínuo.

 

Alguns irmãos amigos acercaram-se, enquanto Epifânio, tocado no mais fundo do coração, mandava transferi-la para o mosteiro com a maior solicitude.

De nada valeram, porém, os recursos médicos e as supremas dedicações da extrema hora.

As hemoptises se prolongavam, assustadoramente, sem ensejarem qualquer esperança.

Na sua velhice cheia de unção e arrependimento, o superior tudo envidava para restituir a saúde ao jovem monge, cujas virtudes se impuseram como símbolo de amor e de trabalho…

 

Dois dias se passaram, de angústia infinita. Durante aquelas horas torturantes, Epifânio deu ordem para que as visitas fossem recebidas. Pela primeira vez, as portas do convento se abriram para os populares e os velhinhos das redondezas se aproximarem do Irmão Marinho, cheios de lágrimas sinceras.

Um a um, acercaram-se da jovem, beijando-lhe as mãos trêmulas e descarnadas.

— Irmão Marinho — dizia um deles — tu não deverias morrer!… Se partires agora, quem ensinará o bom caminho às nossas filhas?

— E quem ensinará o Evangelho aos nossos netos? — Clama um outro disfarçando as lágrimas.

Mas a jovem, de olhar firme e sereno, exclamava com bondade:

— Ninguém morre, meus irmãos! Não nos prometeu Jesus a vida eterna?…

 

Para cada qual, tinha um olhar de ternura e a luz cariciosa de um sorriso.

Na noite imediata agravaram-se de maneira atroz os seus padecimentos.

Compreendendo que o fim se aproximava, o velho Epifânio perguntou-lhe algo, quanto aos seus últimos desejos e ela, erguendo para o superior o olhar sereno, acentuou:

— Meu pai, rogo que me perdoeis se alguma vez vos ofendi por atos ou por palavras!… Orai por mim, para que Deus tenha compaixão de minh’alma… e se é permitido pedir-vos alguma coisa… desejo ver as crianças da escola, antes de morrer…

 

Epifânio ocultou as lágrimas levando as mãos ao rosto, e, antes do amanhecer, três irmãos saíram pelos povoados mais próximos, afim de reunir os pequeninos, por satisfazer os últimos desejos da moribunda.

Depois do meio-dia, todas as crianças da escola penetraram no quarto, respeitosas.

O Irmão Marinho, contudo, recostado nas almofadas, enviava-lhes um sorriso bom e compassivo, embora o peito lhe arfasse penosamente.

Num gesto extremo chamou-as a si, inquirindo a cada uma sobre os estudos, o trabalho, a escola…

Os meninos, mal percebendo a hora dolorosa, sentiam-se à vontade, enquanto Célia lhes sorria.

— Irmão Marinho — dizia um pequenote de olhos graves — Todos nós, lá em casa, temos pedido a Deus pelas vossas melhoras!

— Obrigado, meu filho!… — Dizia a agonizante, fazendo o possível por dissimular os sofrimentos.

 

Em seguida, era uma pequenina interessante no seu vestidinho pobre, a balbuciar em tom discreto:

— Irmão Marinho, pai Epifânio não deixou que eu plantasse a roseira ao pé do redil e me repreendeu asperamente.

— Que tem isso, filhinha?… Pai Epifânio tem razão… o redil não é lugar das flores… Plantarás a roseira nova perto da janela. Lá ela receberá mais sol… E tu darás ao pai Epifânio a primeira flor…

— Olha, Irmão — repetia outro pequenito de cabelos despenteados — as ovelhas esta noite nos deram dois novos cordeirinhos.

— Tratarás deles, meu filho!… Dizia a jovem com dificuldade.

— Irmão — exclamava outro menino — tenho rogado a Jesus que te devolva a saúde preciosa.

— Meu filho… — dizia a agonizante — nós não devemos pedir ao Senhor isso ou aquilo, e sim a compreensão de sua vontade que é soberana e justa…

 

Mas, em face da inquietude infantil que a rodeava, exclamou, desejando concentrar as derradeiras energias para a prece.

— Filhinhos… cantem… para mim…

Entre as crianças deu-se ligeiro tumulto, quanto à escolha do hino a ser cantado.

Foi, então, que uma pequenita lembrou que o sol se preparava para mergulhar no horizonte, fazendo sentir aos companheiros que, nessa hora, o Irmão Marinho preferira sempre o “”, ensinado a todos com carinho fraternal.

Então, todos, de mãos dadas, rodearam o leito, no qual a enferma oferecia a Deus os seus derradeiros pensamentos, enquanto todos os irmãos da comunidade observavam, chorando, a distância, a cena comovedora e dolorosa.

Mais alguns minutos e elevaram-se aos céus as notas cristalinas do cântico singelo:

Louvado sejas, Jesus!

Na aurora cheia de orvalho,

Que traz o dia, o trabalho,

Em que andamos a aprender.

Louvado sejas, Senhor!

Pela luz das horas calmas,

Que adormenta as nossas almas

No instante do entardecer…


O campo repousa em preces,

O céu formoso cintila,

E a nossa crença tranquila

Repousa no teu amor;

É a hora da tua bênção

Nas luzes da Natureza,

Que nos conduz à beleza

Do plano consolador.


É nesta hora divina,

Que o teu amor grande e augusto

Dá paz à mente do justo,

Alívio e conforto à dor!

Amado Mestre abençoa

A nossa prece singela,

Faze luz sobre a procela

Do coração pecador!


Vem a nós! Do céu ditoso,

Ampara a nossa esperança,

Temos sede de bonança,

De amor, de vida e de luz!

Na tarde feita de calma,

Sentimos que és nosso abrigo,

Queremos viver contigo,

Vem até nós, meu Jesus!…

 

Célia ouvia o hino das crianças, em seus últimos acordes. Figurou-se-lhe que a sala humilde estava povoada de artistas inimitáveis. Eram todos jovens graciosos e crianças risonhas, que empunhavam flautas e harpas siderais, alaúdes e timbales divinos. Desejou contemplar os meninos da sua escola humilde e falar-lhes, mais uma vez, da sua alegria infinita, mas, ao mesmo tempo, sentiu-se rodeada de seres carinhosos que, sorridentes, lhe estendiam os braços. Ali estavam seus pais, o venerando avô, Nestório, Hatéria, Lésio Munácio e a figura encantadora de Ciro, como que envolta num peplo de neve translúcida… A um gesto da amorável entidade de Cneio Lúcius, Ciro avançava estendendo-lhe os braços. Era o gesto de carinho que o seu coração esperara toda a vida!… Quis falar da sua felicidade e gratidão ao Senhor dos Mundos, mas, sentia-se exausta, como se chegasse de uma luta extenuante.

 

Guardando-lhe a fronte nas mãos, sob a música do carinho, Ciro lhe dizia de olhos úmidos:

— Ouve Célia! Este é um dos sublimes cantos de amor, que te consagram na Terra!

Ela não viu que as crianças ansiosas lhe cobriam de lágrimas as mãos imóveis e alvas, abraçando ternamente o seu cadáver de neve… A um só tempo, todos os irmãos do mosteiro se lançaram comovidos para os seus despojos, ao passo que, no Plano invisível, um grupo de entidades amigas e carinhosas conduzia numa onda de luz e perfumes, aos páramos do Infinito, aquela alma ditosa de mártir.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

A Visita ao Cárcere

1 • 1

A notícia desses acontecimentos repercutiu na residência de Helvídio Lucius, originando as mais tristes inquietações e angustiosas expectativas.

Apesar da fé que lhe fortalecia o coração, a jovem Célia sentiu-se tocada de profunda amargura e a sua única consolação era a possibilidade de ouvir o avô paterno, que, a esse tempo, já lia avidamente os Evangelhos e as Epístolas de Paulo, agasalhando no íntimo a mesma fé que iluminava já tantos heróis e mártires.

Ambos, horas a fio, em confidências cariciosas, deixavam-se ficar no terraço palaciano do Aventino, a observar a fita extensa e clara do Tibre, ou embevecendo-se na contemplação do céu. O venerando Cneio Lucius reconfortava-lhe o espírito abatido, com a sua palavra conceituosa e experiente. Citavam agora os mesmos textos evangélicos, exteriorizando, simultaneamente, análogas impressões.

Quanto a Alba Lucínia, depois de ouvir as mais enérgicas exprobrações do velho pai, concernentes às denúncias de Pausanias, sentia-se mais confortada com a certeza de que o marido regressaria breve e definitivamente ao lar, obedecendo a inesperadas ordens do Governo Imperial.

A pobre senhora atribuía esse júbilo às preces de Túlia e da filha, agradecendo ao novo deus, na intimidade de seu espírito, porquanto o regresso de Helvídio era um bálsamo para o seu coração atormentado.

Com efeito, decorridos poucos dias, o tribuno voltava aos penates com um suspiro de satisfação e de alívio, depois de cumprir integralmente todas as obrigações que o prendiam ao recanto das predileções do César.

Informado a respeito de Nestório e da sua atitude, o patrício se surpreendeu penosamente, desejando com sinceridade desviar o ex-cativo da situação delicada em que se encontrava; mas, logo que soube que era também o pai de Ciro, ressurgido em Roma para lhe agravar as preocupações morais, Helvídio Lucius fez um gesto de espanto e de incredulidade. Entretanto, ouviu, até ao fim, a narrativa do sogro, molestando-se profundamente com a conduta da esposa em permitir que a filha comparecesse a uma reunião condenável, ao seu ver.

Alba Lucínia, todavia, soube acatar todas as reprimendas com a humildade necessária à harmonia doméstica e, longe de o desgostar ainda mais com qualquer lamentação, calou as próprias mágoas, ocultando-lhe o procedimento odioso de Lólio Úrbico, bem como os seus receios a respeito de Cláudia Sabina, em vista das confidências de Túlia que lhe haviam ferido profundamente o coração. A

nobre senhora, nas suas elevadas qualidades de devotamento ao lar e de reflexão nos problemas gerais da vida, operou verdadeiros milagres de afeto e dedicação, para que a tranqüilidade espiritual voltasse ao íntimo do esposo amado.

No dia seguinte ao seu regresso, Helvídio Lucius tomou todas as providências para avistar-se com Nestório na Prisão Mamertina.

O aparecimento de Ciro, na Capital do Império, representava para ele um fato inverossímil. Não podia crer que o seu liberto de confiança, cujas atitudes lhe haviam conquistado a maior simpatia, pudesse ser o pai de um homem que o seu coração detestava. Queria, assim, certificar-se da verdade por si mesmo. Além do mais, se os acontecimentos não fossem verdadeiros, empenharia todo o seu prestígio pessoal junto do Imperador, a fim de evitar o martírio e a morte do prisioneiro.

A realidade, porém, haveria de contrariar esse intuito, sem resquícios de fantasia.

Chegado ao presídio, conseguiu de Sixto Plócio, oficial que superintendia o estabelecimento, uma licença incondicional, de modo a se avistar com o prisioneiro como bem entendesse.

Dentro em pouco, varava corredores e descia escadas subterrâneas, ladeando celas imundas, onde a luz era de uma escassez terrível e clamorosa, e não tardou a encontrar Nestório ao lado do filho. Ambos estavam magros, desfigurados, a tal ponto que o patrício, fosse pelo abatimento físico do rapaz, fosse pelas sombras que os cercavam, não reconheceu Ciro de pronto, dirigindo-se ao liberto nestes termos, que profundamente o comoveram:

– Nestório, já sei os motivos que te trouxeram ao cárcere, mas não hesitei em vir até aqui para ouvir-te pessoalmente, tal a estranheza que me causou a relação das ocorrências!

Havia nas suas palavras um tom de sensibilidade e de simpatia feridas, que o ex-escravo recebeu como bálsamo dulcificante para o seu coração.

– Senhor – respondeu respeitosamente –, agradeço do íntimo dalma o vosso impulso generoso... Nestas celas jazem também loucos e leprosos, e, contudo, não vacilastes em trazer ao vosso mísero escravo a palavra de exortação e de conforto!...

– Nestório – continuou Helvídio com generosa deferência –, meu sogro relatou-me, a teu respeito, certos fatos que me custa acreditar, a despeito de sua honorabilidade de homem público e do seu paternal interesse para comigo.

Nesse ínterim, pai e filho contemplavam, ansiosos, aquele de quem poderia depender a sua liberdade, notando-se que Ciro se encolhera a um canto, temendo a atitude de ansiedade suspeitosa com que Helvídio Lucius o observava.

O tribuno prosseguiu:

– Não pude aceitar, integralmente, o que me disseram é vim certificar-me, por mim mesmo, com o teu depoimento pessoal.

E, acentuando as palavras, perguntou, abruptamente:
– És de fato cristão?
– Sim, senhor – murmurou o interpelado, como se respondesse

constrangidamente, em face de tão grande generosidade. – Prometi a Jesus, no sacrário da consciência, que não renegaria a minha fé em tempo algum.

O tribuno esfregou o rosto, num gesto muito seu, quando contrariado, acrescentando em tom de mágoa:

– Nunca pensei que houvera colocado um cristão na intimidade do meu lar e, no entanto, vim até aqui sinceramente desejoso de pleitear a tua liberdade.

– Agradeço-vos, senhor, de todo o meu coração e jamais esquecerei o vosso alvitre – ajuntou Nestório com dolorosa serenidade.

– Interessando-me pela tua sorte – prosseguiu Helvídio constrangidamente –, procurei o senador Quirino Brutus, incumbido pela autoridade imperial da instrução do processo atinente aos agitadores do Cristianismo, vindo a saber, ainda ontem, que treze dos implicados receberam a sentença de banimento perpétuo e vinte e dois foram condenados à morte pelo suplício.

Apesar do seu fervor religioso, ambos os prisioneiros ficaram lívidos. Helvídio Lucius, porém, continuou imperturbável.
– Entre estes últimos, vi o teu nome e o de um rapaz que me disseram ser teu

filho. Que me dizes a tudo isso? Não desejarás, porventura, abjurar uma fé que nada te facultará a não ser a morte infamante pelos suplícios mais atrozes? E esse homem que te acompanha? Será de fato teu filho? Dize uma palavra que me esclareça ou me proporcione elementos para uma defesa justa...

– Senhor – acudiu o liberto invocando todas as suas energias para não fracassar no testemunho –, minha gratidão pelo vosso interesse generoso há de ser eterna! Vossas palavras me sensibilizam todas as fibras do coração!... Ouvindo- vos, sinto que deveria seguir vossos passos com humildade e submissão, através de todos os caminhos; mas, é também por amor que não posso ceder em minha fé, à própria tentação da liberdade!... Jesus exerce em mim um jugo divino e suave... Embora vos ame, senhor, não posso trair a Jesus nas atuais circunstâncias de minha vida... Se o Mestre de Nazaré deixou que o imolassem na cruz, puro e inocente, pela redenção de todos os pecadores deste mundo, porque me haveria de escusar ao sacrifício, quando me sinto cheio da lama do pecado? Jamais poderei, em consciência, abjurar uma fé que constituiu a luz de minhalma, por toda a

vida!... A morte não me atemoriza, porque, além do martírio e do sepulcro, esplende uma alvorada imortal para o nosso espírito!

Helvídio Lucius ouvia, surpreso, aquela demonstração de esperança numa vida espiritual, que sua mentalidade estava longe de compreender, enquanto Nestório continuava a falar, pousando, então, no rapaz que o acompanhava, os olhos úmidos e ternos:

– Entretanto, senhor, sou pai e, como pai, sou ainda muito humano! Não vos interesseis por mim, imprestável e doente, para quem a condenação à morte pela causa de Jesus deve representar uma bênção divina!... Mas, se vos for possível, salvai meu filho, de modo que ele viva para vos servir!...

Ciro acompanhava a atitude paterna com idêntico espírito de fervor e decisão, como que desejoso de protestar contra aquela rogativa, demonstrando também preferir o sacrifício; mas o liberto continuava entre lágrimas mal contidas, dirigindo-se ao tribuno, que o ouvia eminentemente impressionado:

– Agora, senhor, sei de todo o pretérito amargurado e doloroso e lamento o proceder de meu filho na vossa casa de Antipátris!... Mas peço-vos perdão para as inquietudes da sua mocidade!... Meu pobre Ciro obedeceu à impulsividade do coração, sem dar ouvidos ao raciocínio, com que se deveria aconselhar, mas, na amargura destas masmorras sombrias, deu-me a sua palavra de que, se volver à liberdade, nunca mais erguerá os olhos para a criança adorável, que é um arcanjo do céu no âmbito do vosso lar... Se assim o exigirdes, senhor, Ciro poderá sair de Roma para sempre, de maneira a nunca mais vos perturbar a felicidade doméstica!...

Helvídio Lucius, porém, fechara o semblante, em atitude de quem tomara implacável decisão.

Da generosidade mais pura, passara à negativa mais violenta, dada a presença do seu ex-cativo de Antipátris, a quem os seus princípios não poderiam tolerar, nunca.

– Nestório – exclamou em tom quase rude –, sabes da simpatia que sempre me inspiraste, mas, se nunca te supus cristão e conspirador, muito menos chegaria a pensar que pudesses ter engendrado um homem como esse. Como vês, não posso intervir a favor de ambos... Certas árvores morrem, às vezes, pelo apodrecimento dos galhos!... Vim aqui para socorrer-te, mas encontrei uma realidade intolerável para o meu espírito. Destarte, preferirei esquecê-los, antes de tudo.

– Senhor... – murmurou ainda o liberto, como se desejasse reter a sua amizade, pedindo-lhe perdão, para morrer com a certeza de que o tribuno lhe havia reconhecido o sincero agradecimento.

Helvídio Lucius, contudo, lançando a ambos um olhar contrafeito, ajustava a toga para retirar-se quanto antes, exclamando impulsivamente:

– É impossível!

Dito isso, deu costas aos prisioneiros e, chamando os dois guardas que o acompanhavam, retirou-se apressado, enquanto os dois condenados alongavam o olhar para fixar-lhe o porte firme e austero, e aguçavam o ouvido para escutar os seus derradeiros passos nas lajes da prisão, como se percebessem, pela última vez, a esperança que os poderia reconduzir à liberdade.

Nestório sentia-se sufocado, mas a nuvem de suas lágrimas, como que se rompera para atenuar-lhe as amarguras, enquanto Ciro se lhe lançava aos pés, beijando-lhe as mãos, a murmurar:

– Meu pai! Meu pai!...

Ambos desejavam retornar ao sol claro da vida, sentir as emoções da Natureza, mas o ambiente abafado do cárcere asfixiava.

Todavia, na tarde imediata, Sixto Plócio, recebendo as ordenações da justiça imperial, separava os treze prisioneiros destinados ao exílio perpétuo, reunindo os demais numa cela menos triste e largamente espaçosa.

Os dois libertos foram retirados do cubículo em que se encontravam, transportados para junto dos demais condenados.

A nova cela também demorava na parte subterrânea, mas, de um dos seus lados, podia ver-se o céu através de reforçadas grades.

Descera o crepúsculo, entornando sobre a cidade as suas tintas maravilhosas, mas todos aqueles corações atormentados contemplaram o casario e o horizonte, tomados de infinita alegria.

Ao longe, no firmamento, acendiam-se, na tela muito azul, as primeiras estrelas!...

Policarpo, o venerável pregador da Porta Nomentana, transportado do Esquilino para o Capitólio, a fim de reunir-se aos companheiros, traçou no ar uma cruz com a mão calosa e encarquilhada... Então, todos os irmãos de fé, em cujo número se contavam algumas mulheres, se prosternaram e, contemplando o céu romano, formoso e constelado, começaram a cantar hinos de devoção e de alegria. Esperanças versificadas, que deviam subir a Jesus, traduzindo o amor e a confiança daqueles corações resignados, que viviam embevecidos nas suaves promessas do seu Reino...

Aos poucos, as vozes se elevavam, harmoniosas e argentinas, nas estrofes de hosana e de esperança! Seres espirituais, imperceptíveis, ajoelhavam-se junto dos condenados, a cujos ouvidos chegavam os ecos suaves das cítaras do invisível...

Então, alguns pretorianos que lhes montavam guarda, escutando-lhes os cânticos de fé, compararam a voz daqueles corações angustiados a soluços de rouxinóis apunhalados em pleno luar, na vastidão do espaço.

Enquanto os prisioneiros aguardam o dia reservado ao sacrifício, acompanhemos nossas personagens no desdobramento de sua vida cotidiana.

Depois de uma visita a Tibur, Élio Adriano certificou-se do valioso concurso de Helvídio Lucius às suas caprichosas edificações, convidando-o a visitá-lo com a família, a fim de lhe testemunhar o seu reconhecimento.

No dia aprazado, com exceção de Célia, que não podia dissimular o seu abatimento, compareciam ao ágape, que o Imperador lhes oferecia, o tribuno e sua família, acompanhado de Caio Fabricius e Fábio Cornélio.

Adriano os recebeu com amabilidade extrema, versando as palestras da tarde sobre os mais variados assuntos atinentes à vida social e política do Império.

Em dado instante, após as libações habituais, Adriano dirigiu-se a Helvídio Lucius, nestes termos:

– Meu amigo, o principal escopo do meu convite é agradecer-te a preciosa colaboração prestada aos meus planos em Tibur. Francamente, as tuas realizações excederam a minha expectativa mais otimista!

– Obrigado, Augusto! – respondeu o patrício, emocionado e satisfeito.

E como se houvera transportado a sua palavra a objetivos diferentes, o Imperador obtemperou com evidente interesse:

– Quando se efetua o enlace de tua filha? Pretendo fazer uma viagem demorada pela Grécia, antes de me recolher a Tibur de modo definitivo, mas não desejaria partir sem contemplar a felicidade dos nubentes.

Designando Caio, que experimentava a maior alegria à vista do interesse imperial pela sua situação, Helvídio replicou:

– Augusto, muito nos honramos com a vossa generosa atenção. O enlace de minha filha depende tão-somente do noivo, que está aliciando a experiência da vida, antes de atender aos reclamos do amor.

– Que é isso, Caio? – perguntou o Imperador num largo sorriso. – Que esperas ainda? Se Vênus ainda não te bateu fortemente às portas da alma, não podes entreter com promessas o coração que te aguarda em primaveras de amor.

– Vossa palavra, ó César – respondeu o interpelado como um perfeito augustino –, conforta-me o espírito como os raios do Sol; entretanto, tendo de substituir Vênus por Juno em meu santuário doméstico, aguardo a oportunidade propícia à minha tranqüilidade futura.

Élio Adriano fez um gesto expressivo, fixando em Helvídio Lucius o seu olhar enigmático, e acrescentando:

– O ensejo esperado deve estar chegando agora. Afirmava a sabedoria dos antigos que melhor fala aos pais o bem que se faz aos filhos, razão por que tomo o dote da jovem Helvídia ao meu cuidado. Resolvi doar-lhe uma propriedade deliciosa nas imediações de Cápua, ao pé do Vulturno, onde o fruto das vinhas e das oliveiras bastaria para entreter a felicidade de uma família durante cem anos de existência, sem outras preocupações de ordem material.

Um sopro de alegria animou todos os semblantes, desenhando-se, com especialidade, nos de Helvídio Lucius e sua mulher, que se entreolharam felizes, tomados de sincero reconhecimento pela espontânea generosidade do Imperador, a quem Fábio Cornélio se dirigiu com a mais respeitosa cortesia, agradecendo em nome de todos a régia dádiva.

Caio Fabricius, não podendo conter a sua alegria, apertou as mãos da noiva, exclamando:

– Depois da palavra de Fábio, queremos confirmar nosso reconhecimento à vossa magnanimidade, ó Augusto! Vossa lembrança expressa a generosidade e o poder do senhor do mundo!... E já que depende de mim a fixação do matrimônio, marcá-lo-emos para o mês próximo, como vos apraz!... Todo o nosso desejo é que nos honreis com a vossa presença, porquanto, em face de vossa paternal proteção, sentimos que os deuses nos abençoam e guiam!...

– Sim – ponderou Adriano pensativo –, no mês vindouro pretendo realizar minha última viagem pela Itália e pela Grécia. Prometi aos amigos de Atenas que não me recolheria a Tibur antes de levar-lhes a minha visita derradeira! Antes de me ausentar, pretendo comemorar com festejos públicos a inauguração dos novos edifícios da cidade[1]. Aproveitaremos, então, a oportunidade para que se efetive a tua ventura.

Alba Lucínia tinha os olhos úmidos, abraçando a filha alegremente, e assim terminava o banquete com júbilo inexcedível.

No dia imediato, o Imperador ordenou todas as providências para a doação e, enquanto Helvídio Lucius e família se preparavam convenientemente para o evento familiar, Caio Fabricius dirigia-se à antiga “Terra da Lavoira”, a fim de conhecer a região em que ficava a sua futura vivenda.

Todavia, a par dos grandes júbilos, persistiam as graves preocupações e as grandes dores.

Helvídio e sua mulher não podiam forrar-se à contrariedade que os martirizava intimamente, ao verem que Célia definhava, apesar dos esforços que ela mesma fazia, mercê das energias poderosas da sua fé, a fim de não amargurar o coração dos genitores.

Comparando a filha a uma flor mirrada e triste, o tribuno aumentava o seu ódio às idéias cristãs, recordando Ciro com aversão e rancor. O doloroso contraste do destino de suas filhas era-lhe objeto de profundas meditações. Interessava-se por ambas, com o mesmo afeto; contudo, malgrado a boa intenção, a mais nova parecia afastada da sua devoção paternal. Não sabia freqüentar os ambientes sociais, nem se integrava convenientemente no ritmo doméstico, como fora de desejar. Seus olhos jamais haviam manifestado qualquer interesse pelas fantasias da juventude e, mergulhados em cismas constantes, pareciam fixar-se noutros rumos, que o seu espírito paternal jamais pudera definir com acerto. Ao seu conceito, ela era vítima de umas tantas fraquezas que, no seu zelo, atribuía à influência dos princípios cristãos, no convívio dos escravos, lá na Palestina... Ainda bem que Helvídia seria ditosa e isso, de algum modo, o consolava!... Quanto a Célia, ele e a esposa mais tarde levá-la-iam a terras estranhas, onde a sua sensibilidade doentia pudesse modificar-se a contento.

Enquanto o tribuno desenvolvia todos os esforços por dissimular tais conjeturas, multiplicavam-se no lar os júbilos festivos.

Mas, ao passo que aumentavam as esperanças e as alegrias familiares, Célia verificava que os seus padecimentos morais lhe superavam as próprias forças.

A notícia da condenação de Ciro, como conspirador, acabrunhava-lhe profundamente o coração. Além disso, bastaria uma palavra só, do Imperador, para que os terríveis suplícios se consumassem. Aquelas perspectivas angustiosas lhe anulavam todas as esperanças. Ao seu lado, o enxoval da irmãzinha cobria-se de pérolas e de flores! Por si, não lhe invejava a ventura, mas desejava conservar a vida do eleito do seu destino. Orava sempre, mas as suas preces estavam eivadas das angústias terrenas, sem a leveza suave de outros tempos, que as fazia ascenderem ao céu. Agora, as vibrações espirituais mesclavam-se de ansiedades amargas e dolorosas!... Desejava ver Ciro, ouvir-lhe a palavra, saber da sua boca que o seu coração continuava forte e resignado diante da morte, a fim de que a sua alma haurisse ânimo na coragem dele, mas não podia pensar nisso. Os pais não lho consentiriam nunca. Tão penosas reflexões foram-lhe invadindo o cérebro, enfraquecendo-o.

Em poucos dias, o organismo não se mantinha de pé. Todavia, Alba Lucínia, com o bom-senso que lhe caracterizava as iniciativas, lembrou a conveniência de transportá-la para o Aventino, onde se trataria convenientemente junto do velho avô e de Márcia, que a adoravam.

Aceito o alvitre, Cneio Lucius veio buscá-la pessoalmente, com paternal solicitude.

Em sua casa a jovem melhorara do estado febril que tanto a debilitava, mas o singular abatimento moral zombava de todos os cuidados do venerável ancião, que inventava mil modos de restabelecer a alegria da netinha adorável.

Certo dia, pondo em jogo os seus processos psicológicos cheios de ternura, acercou-se da neta, exclamando com profunda bondade:

– Célia, minha querida, pesa-me o coração ver-te assim abatida e doente, apesar de todos os esforços do nosso amor desvelado.

E como lhe visse as lágrimas brilhando à flor dos olhos, continuou carinhoso:

– Também eu, minha filha, no imo da consciência, sou hoje um adepto do Cristianismo, com todo o fervor do meu espírito! Conheço a essência dos Evangelhos, levado pelas afetuosas sugestões da tua alma cândida e generosa!... Para mim, não valem mais, agora, os sacrifícios aos nossos velhos deuses, silenciosos e frios, mas tão-somente as ofertas do nosso próprio coração àquele que vela por nossos destinos, do seu trono das Alturas! Mas ouve, filhinha: não sabes que Jesus não quer a morte do pecador? Não lhe conheces o ensinamento, cheio de vida e de alegria?

E como se adivinhasse as mágoas que laceravam aquele coração afetuoso e crente, tinha também os olhos úmidos.

A neta recebeu-lhe as palavras como se fossem um bálsamo suave, respondendo-o:

– Sim, compreendo tudo isso e rogo a Jesus me conceda forças, a fim de encontrar nos seus exemplos a razão da minha própria vida...

Essa resposta, porém, ficava a meio, uma onda de lágrimas invadia-lhe os olhos grandes, serenos, como se hesitasse em confessar ao venerando velhinho a sua preocupação dolorosa e incessante.

Cneio Lucius, contudo, abraçou-a ternamente, ao mesmo tempo que ela murmurava em voz súplice:

– Avozinho, prometo ter fé e triunfar de todos os sofrimentos, mas desejava ver Ciro antes da sua morte!

O respeitável ancião compreendeu quão difícil seria satisfazer tal desejo, mas respondeu sem pestanejar:

– Vê-lo-ás comigo, amanhã pela manhã. Falarei a teus pais, ainda hoje, a esse respeito.

A jovem lançou-lhe um olhar jubiloso e profundo, no qual se podia ler a mais terna de todas as alegrias, misto de amor e gratidão.

À tarde, uma liteira saía do Aventino, conduzindo o venerável patrício à casa do filho, que, ao lado da esposa, lhe recebeu a rogativa com o mais fundo

constrangimento a lhe transparecer no rosto.
Alba Lucínia, na sua sensibilidade de mulher, compreendeu de pronto que a

concessão aos desejos da filha era justa, convindo atender àquela súplica ansiosa. O tribuno, porém, relutava consigo mesmo e, se não opunha uma negativa formal, era tão-somente em atenção ao interventor, que, em lhe ser pai, era

também seu mestre e o melhor amigo de toda a vida.
– Mas, meu pai – obtemperou depois de longa meditação –, esse pedido

articulado pela sua boca me surpreende profundamente. Tal medida, posta em prática, atrairá sobre nossa casa e nome numerosos comentários e suspeitas. Que diriam os administradores do cárcere se vissem minha filha a interessar-se por um condenado?

– Filho – replicou Cneio Lucius imperturbável –, compreendo e justifico os teus escrúpulos, mas precisamos considerar que Célia pode piorar, fatalmente, se lhe recusarmos a satisfação desse desejo. Além disso, sou eu próprio que me proponho acompanhá-la. Quanto à nossa entrada na prisão, livre da curiosidade maledicente, já pensei no melhor meio de consegui-la. Levarei minha neta na qualidade de pupila da minha casa, como se fora filha de um sentenciado, pois bem sabemos que os prisioneiros não vão morrer como cristãos, mas como conspiradores e revolucionários. Com as prerrogativas de que disponho, penetrarei no cárcere em sua companhia, sem a presença importuna dos funcionários ou dos pretorianos, de modo que somente eu presenciarei o que venha a ocorrer entre ambos!

Helvídio ouvia-o, silencioso. Mas o venerável patrício, sem desistir dos seus propósitos, tomou-lhe as mãos entre as suas, murmurando humildemente:

– Concorda! Não negues à tua filha, enferma, a satisfação de um desejo tão justo!... Além disso, filho, recorda-te que se trata de um simples encontro pela última vez...

Ao espírito do tribuno repugnava a idéia de que a filha fosse visitar o servo odiado, com o seu consentimento; mas, havia tamanha ternura nas palavras paternas que o seu coração cedeu de chofre àquela atitude de carinho e de humildade.

Fixando o generoso velhinho, como se estivesse anuindo tão-só por consideração a ele, seu pai e maior amigo, murmurou um tanto contrafeito:

– Pois bem, meu pai, que se faça a sua vontade! Deixo a seu critério a solução do caso.

E dando a entender que o assunto lhe desagradava, falou de outras coisas, levando o ancião para o interior, onde se intensificavam os preparativos para os esponsais de Helvídia.

Cneio Lucius, que entendia a alma do filho desde pequeno, gabou-lhe todos os empreendimentos com bom humor e alegria, opinando com otimismo sobre todos os seus feitos e regozijando-se, simultaneamente, com as suas iniciativas, a evidenciar no semblante uma satisfação espontânea e sincera, como se nenhuma preocupação lhe povoasse a mente.

Nas primeiras horas do dia imediato, a liteira do venerável patrício estacionava junto à Prisão Mamertina, enquanto ele e a neta, que se disfarçara em trajes muito simples, dentro de um largo peplo que lhe dissimulava os próprios traços fisionômicos, entravam no tenebroso edifício, salientando-se que Sixto Plócio, previamente avisado, vinha receber Cneio Lucius e aquela que ele apresentava como filha adotiva de sua casa, facultando-lhes a máxima liberdade para tratar com os prisioneiros.

Na cela espaçosa onde se aglomeravam os vinte e dois sentenciados, penetravam os primeiros clarões do Sol como se fossem uma bênção.

Nestório e Ciro, reunidos aos demais, estavam profundamente desfigurados. A alimentação deficiente, as perspectivas angustiosas, os castigos aplicados no cárcere, tudo se conjugava para lhes abater as forças físicas. Todavia, nos olhos serenos de todos os condenados havia um clarão sublimado e ardente, exteriorizando energias misteriosas. Viviam da fé e pela fé, colocando todas as esperanças naquele Reino Divino que Jesus lhes prometera em cada ensinamento.

Volúsio e Lépido, dois pretorianos de plena confiança dos administradores do presídio, conduziram os visitantes ao apartamento dos condenados.

Um grito de júbilo escapou-se do peito de Ciro ao avistar a figura de Célia, que caminhava para ele com um sorriso carinhoso, embora amargo. Nestório não sabia expressar o reconhecimento que lhe inundava a alma, pois que, embora não se revelasse um companheiro de convicção, Cneio lhes estendia os braços generosos.

A princípio, a emoção e alegria emudeceu uns e outros; mas a jovem patrícia, num impulso natural e muito feminino, observando a penosa situação do bem-amado de sua alma, desatara em pranto convulsivo, enquanto o velho avô murmurava com benevolência e carinho:

– Chora, filha!... as lágrimas fazem-te bem ao coração!...

E, bondosamente, como se deferisse ao moço liberto a tarefa de consolá-la, afastou-se com Nestório para outro ângulo da cela, apresentando-lhe o ex-cativo os demais condenados.

Quase a sós, os dois jovens podiam trocar as suas impressões derradeiras.

– Célia, como te entregas ao sofrimento desse modo? – perguntou o mancebo invocando todas as suas forças para revelar coragem e serenidade. –

Não será melhor morrer pelo Mestre, a quem tanto amamos? Estou muito reconhecido a Jesus, ao receber tua visita nesta cela erma e triste. Desde que fui preso, tenho suplicado fervorosamente à sua misericórdia não me permitisse morrer sem consolar-te!...

Ainda esta noite, querida, sonhei que havia chegado ao Reino do Senhor, aí vendo muitas luzes e muitas flores... Chegando aos pórticos desses paraísos indefiníveis, lembrei-me do teu coração e senti uma saudade profunda!... Queria encontrar-te para penetrar no Céu, contigo... Sem a tua companhia, as moradas de luz me pareceram menos belas, mas um ser divino, desses a quem deveremos chamar anjos de Deus, acercou-se, esclarecendo-me com estas palavras: – Ciro, breve baterás a estas portas, livre de qualquer laço dos que ainda te prendem ao corpo perecível! Manifesta a tua gratidão a esse Pai de misericórdia que te concede tantas graças, mas não penses em repouso quando as lutas apenas começam! Terás de ressarcir, ainda, muitos séculos de erro e treva, de ingratidão e impenitência!... Reconforta o espírito abatido, na contemplação dos planos sublimados da Criação, para que possas amar a Terra com as suas experiências mais penosas, que valem também por divino aprendizado, na escola do amor de Deus!...

Então, querida, pedi àquela entidade pura e carinhosa que, depois da morte, me auxiliasse a renascer junto de ti, fosse com a responsabilidade das riquezas terrestres, ou na condição da maior miséria. E sei que Jesus, tão poderoso e tão bom, há de conceder-me essa graça. Não chores mais! desanuvia o coração nas promessas divinas do Evangelho!...

Suponhamos que vou fazer uma longa viagem, imposta pelas circunstâncias... mas, se Deus permitir, estarei de volta ao mundo, no dia imediato, a fim de nos encontrarmos novamente. Como será esse reencontro? Não importa sabê-lo, porque, de qualquer forma, sempre nos amamos pelo espírito, dentro de nossas realidades imortais!

Promete-me que serás alegre e forte, esperando a minha volta. Não permitas que energias destruidoras te maculem o coração!...

E presumindo que a jovem pudesse, mais tarde, enfarar-se do próprio destino, acentuou:

– Confio no teu valor, espero que jamais estranhes a posição social que o Senhor te haja concedido. Nas horas angustiadas da vida, recorda-te que, depois do amor de Deus, deveremos honrar pai e mãe acima de todas as coisas, sacrificando-nos por eles com a melhor das nossas energias!...

Ela deixara de chorar, mas uma névoa de tristeza lhe invadira os olhos desencantados. Contemplava-o à sua frente, com uma ternura que o coração não

saberia jamais definir. Noivo ou irmão? Por vezes, sentia no íntimo que ele deveria também ser filho. As almas gêmeas amam-se em curso de eternidade, confundindo-se na alternativa contingente dos elos do espírito. Aspiram a uma felicidade pura e imortal e só vivem felizes quando integradas na união eterna e indissolúvel.

Na fortaleza moral que lhe ocultava as mais dolorosas emoções, o mancebo continuava:

– Dize-me, Célia, que amarás sempre a vida, que terás muita fé e me esperarás, cheia de confiança. Quero enfrentar o sacrifício com a certeza de que prosseguirás, como sempre, forte na luta e conformada com os desígnios do Criador!...

– Sim – murmurou ela com uma cintilação de fé a lhe brilhar nos olhos –, por ti, nunca odiarei a vida! Através da minha confiança nas promessas do Cristo, rejubilarei quando chegares... tornarei a sentir a branda carícia da tua presença carinhosa, pois meu coração identificará o teu entre mil criaturas, porque te tenho amado como Jesus nos ensinou, com dedicação celestial.

– Assim, querida – murmurou o jovem confortado –, foi sempre assim que idealizei o teu coração humilde e generoso.

– Ciro – disse a donzela candidamente –, rogo a Jesus que nos conserve a fé nas angústias desta hora! Esperarei a tua volta, cheia de confiança em ti, sabendo que me quiseste sempre, tal como te amei!...

Depois de uma pausa, olhos umedecidos, continuou emocionada:

– Sabes? Lembro-me agora de nossa excursão ao lago de Antipátris... Recordas-te? Eu estava surpresa por te ver, quando a onda me colheu, impelida pelo vento... Hoje, pergunto se não seria melhor ter morrido. Aprenderia a amar a Jesus, fora de um mundo como este, e haveria de esperar-te na outra vida com o meu amor grande e santo!... Ainda sinto a emoção do minuto em que me salvaste, trazendo-me à tona!...

– É verdade – atalhou o rapaz fazendo o possível por não trair a emoção daquelas reminiscências –, mas, recordando tudo isso, não somos levados a crer que Jesus, desejava, como ainda deseja, a tua vida? Não fui eu quem te salvou, mas o Mestre Divino, que te queria na Terra.

– Sim – obtemperou comovida –, continuarei implorando a Jesus que te permita voltar, conforme prometes! O mundo, Ciro, é sempre um lago revolvido pelo vento das paixões e, no fundo das águas, há sempre vasa que sufoca as mais nobres aspirações do espírito. Que Jesus não me falte com a tua companhia no futuro, pois quero viver para servi-lo na claridade de tua memória, que honrarei em toda a vida!...

– Célia, não duvides do Senhor nem descreias da minha volta. Pensarei sempre em ti, como nunca te esqueço...

E para dissipar as amargas expectativas do momento, voltou-se para trás, revolvendo um colchão imundo, ali colocado à guisa de cama, de lá retirando um pedaço de pergaminho que ofereceu à jovem, acrescentando:

– Ainda anteontem escrevemos aqui um hino para glorificar o Mestre no dia do sacrifício. Lembrei que deveria sugerir aquela música que te ensinei, sob os cedros de tua casa, sendo aceita a minha idéia. Desde esse instante, querida, minha grande preocupação foi conseguir os recursos precisos para deixar-te uma cópia, pois tinha convicção de que Jesus me concederia a dita de reverte. Há aqui um pretoriano chamado Volúsio, bastante simpático ao Cristianismo, que me facultou os elementos precisos para a grafia destes versos.

Entregando-lhe o fragmento de pergaminho, acentuava:

– Guarda este hino que constitui a minha lembrança antes da partida! Todos nós colaboramos na formação do poema, mas, lembrando-me da nossa eterna afeição, encaixei aí algumas rimas, nas quais traduzi minhas esperanças. Dedico- as a ti, para confirmar-te a dedicação de todos os momentos!

– Deus te abençoe e te proteja! – exclamou a jovem patrícia, guardando a preciosa lembrança.

Ambos se entreolharam com a poderosa atração dos seus sentimentos purificados, mas Cneio Lucius, depois de haver conversado longamente com Nestório e seus companheiros, examinando todos os detalhes da prisão, aproximava-se com um sorriso complacente.

Conhecendo a sentimentalidade da neta, dirigiu-lhe a palavra nestes termos: – Filha, as horas voam, estou à tua disposição para quando desejes regressar. Ela acercou-se do respeitável ancião, que se fazia acompanhar pelo liberto

de seu filho, pousando em Nestório o olhar melancólico, mas o ex-cativo veio-lhe ao encontro com estas palavras:

– Célia, tua vinda a este cárcere representa para nós a visita de um anjo. Não te impressione a nossa condenação, que aos olhos de Deus deve ser útil e justa. Dizia a inspiração de Paulo que a morte é o nosso último inimigo. Venceremos, pois, mais essa etapa, com Jesus e por Jesus. Apesar disso, não te esqueças de que a dádiva da vida é um bem precioso que o Céu nos confia. Para a alma fervorosa, o melhor sacrifício ainda não é o da morte pelo martírio, ou pelo infamante opróbrio dos homens, mas aquele que se realiza com a vida inteira, pelo trabalho e pela abnegação sincera, suportando todas as lutas na renúncia de nós mesmos, para ganhar a vida eterna de que nos falava o Senhor em suas lições divinas!

Célia sentiu que a sua fé atingia um grau superior, mediante aquelas exortações amigas e carinhosas, e voltando-se para Ciro, que, com o olhar, parecia recomendar-lhe que as ouvisse, respondeu, comovida:

– Sim, guardarei tuas palavras com o respeitoso amor de uma filha.

Acercando-se do avô, pediu-lhe permissão para despedir-se de ambos os condenados, e, aproximando-se do jovem, que ocultava a comoção no imo dalma, guardou-lhe as mãos entre as suas por um momento, beijando-as levemente.

– Deus te proteja! – disse em voz baixa, quase imperceptível.

Em seguida, acercou-se de Nestório, a quem abraçou respeitosamente, depositando-lhe um ósculo na fronte.

Ambos os sentenciados desejavam agradecer, mas não o puderam. Uma força poderosa parecia embargar-lhes a voz. Ficaram imóveis, silenciosos, enquanto Cneio Lucius, tocado pela cena comovedora, se despedia com um leve aceno.

Contudo, até o fim, Ciro mostrava no rosto uma expressão de fortaleza, num sorriso carinhoso que consolava profundamente a alma gêmea da sua...

Mais um gesto de adeus naquele silêncio que as palavras profanariam, e a porta do cárcere rangeu de novo nos seus gonzos sinistros e terríveis.

Nesse instante, o sorriso do moço cristão desapareceu-lhe do rosto desfigurado. Dirigiu-se para as grades da prisão, agarrando-se aos varões como um pássaro sedento de luz e liberdade. Seus olhos ansiosos espraiaram-se pelo exterior, buscando ver, pela última vez, a liteira que deveria reconduzir a sua amada.

Mas, aos poucos, sua juventude inquieta voltava-se para Jesus, com todo o fervor de suas aspirações apaixonadas. Desprendeu-se dos varões rígidos e ajoelhou-se. A luz do Sol, que esplendia na manhã alta, banhou-lhe as faces e os cabelos. Orava, rogando a Jesus fortaleza e esperança. A claridade solar parecia inundar-lhe a fronte com as graças do Céu, mas, mesmo assim, deixando pender a cabeça, escondeu o rosto nas mãos emagrecidas, para chorar humildemente.

[1] Entre as numerosas edificações de Adriano, durante o seu reinado, conta-se, como das mais modernas, o famoso Castelo de Santo Ângelo. – Nota de Emmanuel


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Ezequiel 18:23

Desejaria eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? diz o Senhor Jeová: não desejo antes que se converta dos seus caminhos e viva?

ez 18:23
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Habacuque 2:4

Eis que a sua alma se incha, não é reta nele; mas o justo pela sua fé viverá.

hc 2:4
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

I Coríntios 15:26

Ora o último inimigo que há de ser aniquilado é a morte.

1co 15:26
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João 8:7

E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.

jo 8:7
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I Pedro 4:8

Mas, sobretudo, tende ardente caridade uns para com os outros; porque a caridade cobrirá a multidão de pecados.

1pe 4:8
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