Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

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Capítulo II

Janeiro - Os servos - História de um criado

Janeiro


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O caso descrito em nosso número de dezembro último, sob o título O tugúrio e o salão, lembra-nos outro, um tanto pessoal. Numa viagem feita há dois anos, vimos, numa família da alta sociedade, um jovem criado, cujo rosto fino e inteligente nos chamou a atenção pelo ar de distinção. Nada, em suas maneiras, denotava inferioridade. Sua dedicação ao serviço dos amos não tinha essa obsequiosidade servil própria da gente de tal condição. Voltando àquela família no ano seguinte, não mais vimos o rapaz e perguntamos se fora despedido. “Não”, disseram-me, “ele foi passar uns dias em sua terra e morreu. Lamentamos muito, pois era um excelente empregado e tinha sentimentos realmente acima de sua posição. Era-nos muito dedicado e nos deu provas do maior devotamento.” Mais tarde veio-nos a ideia de evocá-lo. Eis o que ele nos disse:

1. ─ Em minha penúltima encarnação eu era, como se diz na Terra, de boa família, arruinada pela prodigalidade de meu pai. Muito cedo fiquei órfão e sem recursos. O Sr. de G... foi meu benfeitor. Educou-me como filho e deu-me uma boa educação, que me encheu de vaidade. Na última existência eu quis expiar meu orgulho, nascendo em condição servil e tive ocasião de provar minha dedicação ao meu benfeitor. Até lhe salvei a vida, sem que ele o tivesse notado. Era ao mesmo tempo uma prova, da qual tirei proveito, pois tive bastante força para não me corromper no contacto com um meio geralmente vicioso. A despeito dos maus exemplos, fiquei puro, pelo que dou graças a Deus por ter sido recompensado com a felicidade de que desfruto.

2. ─ Em que condições você salvou a vida do Sr. de G...? ─ Num passeio a cavalo, em que só eu o seguia, percebi uma grande árvore que caía ao seu lado, sem que ele a visse. Chamei-o, com um grito terrível. Ele voltou-se bruscamente, enquanto a árvore caía aos seus pés. Sem o movimento que provoquei, ele teria sido esmagado.

NOTA: Ao ser relatado o fato ao Sr. de G..., ele lembrou-se perfeitamente.

3. ─ Por que você morreu tão jovem? ─ Deus tinha julgado minha prova suficiente.

4. ─ Como você pôde tirar proveito da prova, se não tinha lembrança da vida anterior e da causa que a motivara? ─ Em minha humilde posição, restava-me o instinto do orgulho, que tive a sorte de dominar. Isto tornou a prova proveitosa, sem o que eu teria de recomeçá-la. Em seus momentos de liberdade, o meu Espírito se recordava e, ao despertar, ficava-me um desejo intuitivo de resistir às tendências, que sentia serem más. Tive mais mérito na luta do que se me lembrasse do passado. A lembrança de minha antiga posição teria exaltado o meu orgulho, perturbando-me, ao passo que tive que lutar apenas contra o arrastamento da nova posição.

5. ─ Você havia recebido uma educação brilhante. De que isto lhe serviu na última existência, já que você não se recordava dos conhecimentos que havia adquirido? ─ Esses conhecimentos teriam sido inúteis, e até mesmo um contra-senso, em minha nova situação. Ficaram latentes, e hoje eu os reencontro. Contudo, não me foram inúteis, pois desenvolveram minha inteligência. Instintivamente eu tinha gosto pelas coisas elevadas, o que me inspirava repulsa pelos exemplos baixos e ignóbeis que tinha sob meus olhos. Sem tal educação eu teria sido um simples criado.

6. ─ Os exemplos de servidores dedicados a seus amos até à abnegação, têm por causa vínculos anteriores? ─ Sem dúvida. É pelo menos o caso mais comum. Por vezes tais criados são membros da própria família ou, como eu, devedores que pagam uma dívida de reconhecimento e cujo devotamento lhes ajuda a progredir. Não sabeis de todos os efeitos das simpatias e antipatias que essas relações anteriores produzem no mundo. Não! A morte não interrompe tais relações, que se perpetuam, às vezes, de um a outro século.

7. ─ Por que tais exemplos de devotamento dos servos são hoje tão raros? ─ Sua causa é o espírito de egoísmo e de orgulho do vosso século, desenvolvido pela incredulidade e pelas ideias materialistas. A verdadeira fé é destruída pela cupidez e pelo desejo de ganho, e com ela os devotamentos. Trazendo os homens para o sentimento do verdadeiro, o Espiritismo fará renascer as virtudes esquecidas.

NOTA: Nada pode melhor que este exemplo ressaltar os benefícios do esquecimento das vidas anteriores. Se o Sr. de G... se tivesse recordado quem tinha sido seu jovem criado, ficaria muito constrangido e não o teria conservado naquela condição. Assim, teria entravado a prova que para ambos foi proveitosa.

Janeiro A Boïeldieu

Janeiro


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1. — As estrofes seguintes, do Sr. Méry, foram recitadas na milésima representação da Dama Branca, no teatro da Ópera Cômica, em 16 de dezembro de 1862:


A Boïeldieu.


Glória à peça onde canta inteira a melodia

Da obra de Boïeldieu com aplausos de alegria,

E, como no passado, ainda jovem, sem danos!

Sala cheia, a rever Paris, sempre louçã,

A Dama d’Avenel, a nobre castelã!

Dez vezes centenária, após trinta e seis anos!


É que lhe deu o autor tudo quanto um poeta

Pode dar de melhor ao que a lira interpreta,

Prodigaliza o mestre, em sucessivo ardor,

Encantos que jamais soube alguém traduzir:

O tom que faz sonhar, o tom que faz sorrir,

Do Espírito a alegria em êxtase de amor!


Sonoridade tal vem da graça suprema

Que se evola da voz, e da orquestra, e do poema,

Não conseguiu vencê-la a arte da noite então;

Porque de Boïeldieu é a mais bela vitória,

Torna o público artista e à plateia em glória

Expressa-lhe o universo a voz do coração!


Com que felicidade o mestre augusto lida

Em inspirados tons pela musa querida!

Qual rio de ouro cai do alaúde sereno!

Como raios que vêm de uma bruma escocesa!

Para tal obra, pois, a música francesa

Nada tem a temer dos Alpes ou do Reno!


Cabe-nos festejar milésimo tão nobre,

Que tão alto se eleva e de aplausos se cobre;

E… conhecemos nós os segredos do além?…

Quem sabe? aqui talvez sob este céu desfrute

Uma sombra, esta noite, e alegre nos escute,

Como um ouvinte a mais e não vemos ninguém!


2. — Todos os espíritas devem ter notado esta última estrofe, que não poderia corresponder melhor ao seu pensamento, nem melhor exprimir a presença, em nosso meio, do Espírito dos que deixaram seus despojos carnais. Para os materialistas, é um simples jogo de imaginação do poeta, porque, em sua opinião, do homem de gênio, cuja memória se celebrava, nada restava e as palavras que lhe eram dirigidas se perdiam no vazio, sem encontrar eco. As lembranças e os pesares que deixou, para eles nada valem; ainda mais: sua vasta inteligência é mero acaso da Natureza e de sua organização. Onde, então, o seu mérito? Não o teria por haver composto suas obras-primas do que os órgãos da Barbária que os executam. Tal pensamento não tem algo de glacial, diríamos até, de profundamente imoral? E não é triste ver homens de talento e de ciência preconizá-los em seus escritos e, do alto de suas cátedras, os ensinar à juventude das escolas, buscando provar-lhes que só o nada nos espera e, consequentemente, que aquele que pôde ou soube subtrair-se à justiça humana, nada mais tem a recear? Esta ideia — nunca seria demais repetir — é eminentemente subversiva da ordem social e, cedo ou tarde, os povos sofrem as terríveis consequências de sua predominância pelo desencadeamento das paixões. Porque seria o mesmo que lhes dizer: Podeis fazer impunemente tudo o que quiserdes, contanto que sejais mais fortes. Entretanto, esta ideia — é preciso convir em louvor à Humanidade — encontra um sentimento de repulsa nas massas. Perguntamos que efeito teria produzido o poeta sobre o público se, em vez daquela imagem tão verdadeira, tão comovente e tão consoladora da presença do Espírito Boïeldieu em meio ao numeroso auditório, feliz com a aprovação à sua obra, tivesse dito: Do homem que lamentamos não resta senão o que foi para o túmulo e que se destrói dia a dia; mais alguns anos e nem mesmo o seu pó restará; mas do seu ser pensante nada resta; entrou no nada de onde saiu; não mais nos vê nem nos escuta. E vós, seu filho aqui presente, que venerais a sua memória, vossos pesares não mais o atingem; em vão o chamais em vossas preces fervorosas: não poderá vir, porque não existe mais; a tumba fechou-se para sempre sobre ele. É em vão que esperais revê-lo ao deixar a Terra, porque também entrareis no nada, como ele; em vão lhe pedireis apoio e conselhos: ele vos deixou só e bem só. Credes que ele continua a ocupar-se de vós, que está ao vosso lado, que está aqui, entre nós? Ilusão de um espírito fraco. Sois médium — dizeis — e acreditais que ele pode manifestar-se por vós! Superstição oriunda da Idade Média; efeito de vossa imaginação, que se reflete em vossos escritos.

Perguntamos: O que teria dito o auditório de semelhante quadro? É, entretanto, o ideal da incredulidade. Certamente alguns assistentes, ao ouvirem esses versos, terão pensado: “Linda ideia! Tem fundamento!” Mas outros, em maior número, terão pensado: “Pensamento suave e consolador que aquece o coração!” Contudo, terão acrescentado: “Se a alma de Boïeldieu está presente, como é ela? Sob que forma? É uma chama, uma centelha, um vapor, um sopro? Como vê e escuta?” É precisamente a incerteza quanto ao estado da alma que faz nascer a dúvida. Ora, o Espiritismo vem dissipar tal incerteza, dizendo: Ao morrer, Boïeldieu deixou apenas seu invólucro pesado e grosseiro; mas sua alma conservou o envoltório fluídico indestrutível; doravante, livre do entrave que o retinha ao solo, pode elevar-se e transpor o espaço. Está aqui sob sua forma humana, posto que eterizada e, se o véu que o oculta à nossa vista pudesse ser levantado, veríamos Boïeldieu, indo e vindo, ou pairando sobre a multidão; associados ao seu triunfo, estariam com ele milhares de Espíritos de corpos etéreos.

Ora, se o Espírito Boïeldieu lá está, é que se interessa pelo que lá se passa, é que se associa ao pensamento dos assistentes. Por que, então, não daria a conhecer seu próprio pensamento, se tem esse poder? É tal poder que o Espiritismo constata e explica. Seu envoltório fluídico, por mais invisível e etéreo que seja, não deixa de ser uma espécie de matéria; em vida, servia de intermediário entre a alma e o corpo; por ele transmitia sua vontade, à qual o corpo obedecia e pelo qual a alma recebia as sensações experimentadas pelo corpo; numa palavra, é o traço de união entre o Espírito e a matéria propriamente dita. Hoje, desembaraçado do seu invólucro corpóreo, associando-se por simpatia a outro Espírito encarnado, pode, de certo modo, servir-se do corpo deste para exprimir seu pensamento pela palavra ou pela escrita; dito de outro modo, por via mediúnica, isto é, por um intermediário.

Assim, da sobrevivência da alma à ideia de que ela pode estar em nosso meio não há senão um passo; dessa ideia à possibilidade de se comunicar a distância não é grande. Tudo está em nos darmos conta da maneira pela qual se opera o fenômeno. Vê-se, pois, que a Doutrina Espírita, dando como verdade as relações entre os mundos visível e invisível, não avança uma coisa tão excêntrica quanto alguns o dizem, e a solidariedade que ela prova existir entre esses dois mundos é a porta que abre os horizontes do futuro.


3. — Depois de lidas as estrofes do Sr. Méry na Sociedade Espírita de Paris, em sessão de 19 de dezembro de 1862, a Sra. Costel recebeu do Espírito Boïeldieu a seguinte comunicação:

“Sinto-me feliz em poder manifestar meu reconhecimento aos que, celebrando o velho músico, não esqueceram o homem. Um poeta — os poetas são divinos — sentiu o sopro da minha alma ainda tomada de harmonia. A música ressoava em seus versos de notável inspiração, nos quais vibrava também uma nota comovida, que fazia planar acima dos vivos a sombra feliz daquele que festejavam.

“Sim, eu assistia àquela festa comemorativa do meu talento humano e ouvia, acima dos instrumentos, uma voz, mais melodiosa que a melodia terrena, que cantava a morte despojada de seu antigo terror, aparecendo não mais como uma sombria divindade do Erebo, mas como a estrela brilhante da esperança e da ressurreição.

“A voz também cantava a união dos Espíritos com seus irmãos encarnados. Doce mistério! Fecunda associação que completa o homem e lhe restitui as almas, que em vão chamava do silêncio do túmulo.

“Precursor dos tempos, o poeta é abençoado por Deus. Cotovia matinal, ele celebra a aurora das ideias muito antes que elas surjam no horizonte. Mas eis que a revelação sagrada se espalha como uma bênção sobre todos e, como o poeta amado, sentis todos em redor de vós a presença daqueles que vossa lembrança evoca.”

Boïeldieu.




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