Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864
Versão para cópiaJaneiro - Estado do Espiritismo em 1863
Como hoje está bem constatado que essas agressões fizeram progredir o Espiritismo, em vez de detê-lo, naturalmente ver-se-ão diminuir os ataques forçados, mas não se deve dormir sobre esta calma aparente, nem crer que os inimigos do Espiritismo logo vão disto tirar partido. Então é necessário nos persuadirmos que a luta não está terminada, mas haverá uma mudança tática. Eis por que dizemos aos espíritas que estejam constantemente atentos sobre o que se passa em seu redor e se lembrem do que dissemos no número de dezembro último, sobre o período da luta, da guerra surda e dos conflitos; que, assim, não se admirem se o inimigo se infiltra em suas fileiras; que Deus o permite, para experimentar a fé, a coragem, a perseverança dos verdadeiros servidores. De agora em diante, seu objetivo será procurar todos os meios possíveis de comprometer o Espiritismo, a fim de desacreditá-lo; de impelir os grupos, sob a aparência de zelo e sob o pretexto de que é preciso ir avante; a se ocuparem de coisas estranhas ao objeto da doutrina; a tratarem de questões políticas ou de outras de natureza a provocar discussões irritantes e a semear a divisão, tudo para ter pretextos de pedir o seu fechamento. A moderação dos espíritas é o que mais causa admiração e mais contraria os seus adversários. Eles tentarão tudo para afastá-los dela, inclusive a provocação, mas os espíritas saberão desviar essas manobras por sua prudência, como já o fizeram em várias ocasiões, e não cairão nas armadilhas que lhe prepararem; aliás, eles verão os instigadores se embaraçarem em suas próprias teias, pois é impossível que, mais cedo ou mais tarde, não ponham as unhas de fora. Este será um momento mais difícil de passar do que o da guerra aberta, no qual se vê o inimigo face a face, no entanto, quanto mais dura a prova, maior o triunfo.
Aliás, esta campanha teve um imenso resultado, o de provar a impotência das armas dirigidas contra o Espiritismo. Os homens mais capazes do partido contrário entraram na liça; todos os recursos da argumentação foram empregados e, não tendo sofrido o Espiritismo, cada um ficou convencido de que não se lhe podia opor nenhuma razão peremptória, e a maior prova da falta de boas razões é que eles recorreram ao triste e ignóbil expediente da calúnia. Mas em vão quiseram fazer com que o Espiritismo dissesse o contrário do que diz, pois a doutrina aí está, escrita em termos tão claros que desafiam toda falsa interpretação, razão pela qual o odioso da calúnia recai sobre os que a empregam e os convence de sua impotência. Eis aí um fato considerável no ano findo, e se só tivéssemos obtido esse resultado, deveríamos estar satisfeitos, mas outros há não menos positivos.
O ano de 1863 foi marcado sobretudo pelo aumento do número de grupos e sociedades formadas numa porção de localidades onde não os havia ainda, tanto na França quanto no estrangeiro, sinal evidente do aumento do número de adeptos e da difusão da doutrina. Paris, que havia ficado na retaguarda, cede ao impulso geral e começa a mover-se. Todos os dias veem-se novos grupos particulares se formando, com objetivo eminentemente sério e em excelentes condições.
A sociedade que presidimos vê com alegria multiplicarem-se em seu redor os rebentos vivazes, capazes de espalhar a boa semente. Os grupos particulares, quando bem dirigidos, são muito úteis à iniciação de novos adeptos. Em razão da extensão de suas relações, a sociedade principal, como centro de convergência dos grupos de todas as partes do mundo, não pode nem deve ocupar-se senão do desenvolvimento da ciência e das questões gerais, que lhe absorvem todo o tempo. Assim, deve forçosamente abster-se de tudo quanto seja elementar e pessoal. Os grupos particulares vêm, assim, preencher a lacuna que ela forçosamente deixa na prática, e por isso ela encoraja e secunda com seus conselhos e com seu apoio moral as pessoas que se dedicam a essa obra de propagação.
Se por alguns instantes foi possível um certo receio quanto aos efeitos de algumas dissidências na maneira de encarar o Espiritismo, o número sempre crescente das Sociedades que em todos os países se colocam espontaneamente sob o patrocínio da de Paris e erguem a sua bandeira é um fato que dissipa completamente esse receio.
É notório que a doutrina do Livro dos Espíritos é hoje o ponto de convergência da imensa maioria dos adeptos. A máxima Fora da caridade não há salvação reuniu todos os que veem o lado moral do Espiritismo, porque não há duas maneiras de interpretá-lo, e ela satisfaz a todas as aspirações.
Desde a constituição do Espiritismo em corpo de doutrina, já caíram muitos sistemas isolados, e os poucos traços que ainda deixam não têm influência na opinião geral. As bases sólidas em que ele se apoia triunfarão sem dificuldade das divisões que seus adversários não deixarão de suscitar, porque eles não contam com Espíritos que protegem a sua obra, e se servem de seus próprios inimigos para garantirem o sucesso.
Teria sido sem precedentes o estabelecimento de uma doutrina sem dissidências, e se de alguma coisa nos podemos admirar, é de se ver, em relação ao Espiritismo, a unidade formar-se tão prontamente.
Seja como for, o Espiritismo ainda não penetrou em toda parte e em muitos lugares é apenas conhecido de nome. Os raros adeptos aí encontrados atribuem esse fato a duas causas: primeiro, ao caráter das populações muito absorvidas pelos interesses materiais; depois, à ausência de pregações contrárias. Eis por que apelam com todas as veras por sermões do gênero dos que foram pregados alhures, ou de alguma manifestação brilhante de hostilidade, que chame a atenção e desperte a curiosidade. Mas, que eles tenham paciência. Como é preciso que todos lá cheguem, os Espíritos saberão muito bem como suprir essa necessidade através de outros meios.
Mas o traço mais característico do ano de 1863 foi o movimento que se produziu na opinião, no que concerne à Doutrina Espírita. Fica-se surpreendido com a facilidade com que o princípio é aceito por pessoas que até há pouco tê-lo-iam repelido e levado ao ridículo.
As resistências ─ e falamos das que não são sistemáticas e interessadas ─ diminuem sensivelmente. Citam-se vários escritores de boa-fé que combateram violentamente o Espiritismo, e que hoje, dominados por seu meio social, sem se confessarem vencidos, renunciam a uma luta considerada inútil. É que a necessidade de uma transformação moral se faz sentir mais e mais. A ruína do velho mundo é iminente, porque as ideias que ele preconiza não mais estão à altura a que chegou a Humanidade inteligente. Tudo parece a ele conduzir, mas, por outro lado, se reconhecem vagamente novos horizontes; sente-se que há necessidade de algo de melhor do que aquilo que existe e busca-se inutilmente no mundo atual. Alguma coisa circula no ar como uma corrente elétrica precursora, e todos esperam, mas todos dizem para si mesmos que não é a Humanidade que deve retroceder.
Outro fato não menos significativo que muitos notaram, e que é consequência do atual estado de ânimo, é o prodigioso número de escritos, sérios ou ligeiros, feitos fora, e provavelmente sem o conhecimento do Espiritismo, nos quais se encontram pensamentos espíritas. O princípio da pluralidade das existências, sobretudo, tem uma tendência a entrar na opinião das massas e na filosofia moderna. Muitos pensadores a isto são conduzidos pela lógica dos fatos e em pouco essa crença tornar-se-á popular. Evidentemente são os precursores da adoção do Espiritismo, cujas vias assim são preparadas e cujo caminho é plainado. Estas ideias são todas semeadas de diversos lados, em escritos que caem nas mãos de todos, tornando cada vez mais fácil a sua aceitação.
O estado do Espiritismo em 1863 pode, pois, assim resumir-se: Ataques violentos; multiplicação de escritos pró e contra; movimento nas ideias; notável expansão da doutrina, mas sem sinais exteriores de natureza a produzir uma sensação geral; as raízes se estendem, crescem os rebentos, esperando que a árvore desenvolva os seus ramos. Ainda não chegou o momento da sua maturidade.
Entre as publicações que no ano passado vieram participar da luta e concorrer para a defesa do Espiritismo, colocamos em primeira linha la Ruche, de Bordeaux e la Vérité, de Lyon, cujos redatores merecem o reconhecimento e o encorajamento de todos os verdadeiros espíritas pela perseverança, devotamento e desinteresse de que deram provas. No centro espírita mais numeroso da França, e talvez do mundo inteiro, la Vérité veio postar-se como um atleta temível, por seus artigos de uma lógica tal que não deixam margem à crítica.
O Espiritismo terá em breve, ─ assim nos fazem esperar ─ um novo e importante órgão na 1tália que, como os seus mais velhos da França, marchará de comum acordo com os grandes princípios da doutrina.
Novembro VARIEDADES
1. — Escrevem-nos de Lyon, † em 3 de outubro de 1864:
“Conheceis a reputação do capitão B… É um homem de fé ardente, de convicção comprovada; dele já falastes em vossa Revista. [v. Epidemia demoníaca na Saboia.] Há algum tempo achava-se nas margens do rio Saône, † em companhia de um advogado, espírita como ele. Prolongando o passeio, aqueles senhores entraram num restaurante para almoçar e logo viram outro viajante, entrando no mesmo estabelecimento. O recém-chegado falava alto, ordenava o prato com brusquidão e parecia querer monopolizar o pessoal do restaurante. Vendo esse sem-cerimônia, o capitão disse em voz alta algumas palavras um pouco severas ao recém-vindo. De repente sentiu-se tomado de estranha tristeza. O Sr. B… é médium audiente; ouve distintamente a voz de seu filho, do qual recebe frequentes comunicações, murmurando ao seu ouvido: “O homem tão rude que estais vendo vai suicidar-se. Vem aqui fazer sua última refeição.”
“O capitão levanta-se precipitadamente, dirige-se ao desordeiro e lhe pede perdão por ter externado tão alto o seu pensamento. Depois o arrasta para fora do estabelecimento e lhe diz: “Senhor, ides suicidar-vos.” Houve grande estupefação da parte do indivíduo, ancião de setenta e seis anos, que lhe respondeu:
“Quem vos pode revelar semelhante coisa?” – “Deus”, respondeu o Sr. B… Depois, começou a falar-lhe docemente e com bondade sobre a imortalidade da alma e, reconduzindo-o a Lyon, o entreteve sobre o Espiritismo e de tudo quanto em casos tais Deus pode inspirar, a fim de encorajar e consolar.
“O velho contou-lhe sua história. Antigo ortopedista, tinha sido arruinado por um sócio infiel. Ficando doente, viu-se forçado a ficar longo tempo no hospital; mas, uma vez curado, sua saúde o atirou no olho da rua, sem nenhum recurso. Foi recolhido por uma pobre operária, criatura sublime que, durante meses seguidos, o alimentou, sem a isto ser obrigada por nenhum laço que não fosse a piedade. Mas o medo de lhe continuar sendo um fardo o havia impelido ao suicídio.
“O capitão foi ver a digna mulher, encorajou-a, ajudou-a; mas quando se tem de viver, o dinheiro acaba depressa e ontem todo o parco mobiliário da operária teria sido vendido se alguns espíritas não tivessem resgatado os poucos móveis de seu único quarto, pois, desde que passou a alimentar o velho, há um ano, a casa de penhores havia apreendido colchões, cobertores, etc. A penhora foi suspensa graças aos bons corações, tocados por esse generoso devotamento. Mas não é tudo: é preciso continuar até que o velho tenha conseguido um refúgio junto às irmãs de caridade. A respeito, Cárita fez-me escrever uma comunicação, que vos remeto, com toda a expressão de nosso reconhecimento, a vós, caro senhor, que nos tornastes espíritas. Quanto a mim, não esqueço que me convidastes a ir ter convosco, quando voltardes.”
2. — Eis a comunicação:
Apelo aos bons corações.
“O Espiritismo, esta estrela do Oriente, não vem somente abrir-vos as portas da Ciência. Faz mais que isto: é um amigo que vos conduz uns aos outros, para vos ensinar o amor ao próximo e, sobretudo, a caridade. Não esta esmola degradante, que procura na bolsa a menor moeda para lançar na mão do pobre, mas a doce mansuetude do Cristo, que conhecia o caminho onde se encontra o infortúnio oculto.
“Meus bons amigos, encontrei em meu caminho uma destas misérias de que a História não fala, mas de que o coração se lembra, quando testemunhou tão rudes provas. É uma pobre mulher; é mãe; tem um filho desempregado há vários meses; além disso, alimenta uma infeliz operária, como ela. E, como se não bastasse, um velho vem diariamente encontrá-la à hora do almoço, quando há o que comer. Mas no dia em que falta o necessário, as duas pobres mulheres, criaturas admiráveis pela caridade, dão a sua refeição aos dois homens, o velho e o jovem, sob a alegação de que,, estando com fome, comeram antes. Vi isto repetir-se muitas vezes; vi o velho, num momento de desespero, vender sua última roupa, e querer, por insigne ato de loucura, dar o último adeus à vida, antes de partir para o mundo invisível, onde Deus vos julga a todos.
“Vi a fome imprimir suas marcas nesses deserdados do bem-estar social, mas as mulheres oraram a Deus com fervor, e foram ouvidas. Já pôs irmãos, espíritas, sobre os seus passos, e quando a caridade chama, os corações devotados respondem. As lágrimas do desespero já secaram; só resta a angústia do amanhã, o fantasma ameaçador do inverno, com seu cortejo de geadas, de gelo e de neve. Eu vos estendo a mão em favor deste infortúnio. Os pobres, amigos, são envidados de Deus. Vêm dizer-vos: Nós sofremos; Deus o quer; é o nosso castigo e, ao mesmo tempo, um exemplo para a nossa melhora. Vendo-nos tão infelizes, vosso coração se enternece, vossos sentimentos se dilatam, aprendeis a amar e a lamentar o infeliz. Socorrei-nos, a fim de que não murmuremos e, também, para que Deus vos sorria dos píncaros de seu belo paraíso.
“Eis o que disse a pobre em seus farrapos; eis o que repete o anjo-da-guarda que vos vela e o que vos repito, simples mensageira da caridade, intermediária entre o Céu e vós.
“Sorride ao infortúnio, ó vós que sois tão ricamente dotados de todas as qualidades do coração; ajudai-me em minha tarefa; não deixeis fechar-se esse santuário de vossa alma, onde mergulhou o olhar de Deus. E um dia, quando entrardes na mãe-pátria, quando, com o olhar incerto e o passo inseguro, buscardes o vosso caminho através da imensidade, eu vos abrirei a porta do templo de par em par, onde tudo é amor e caridade, e vos direi: Entrai, meus amados, eu vos conheço!”
Cárita.
3. — A quem farão acreditar seja esta a linguagem do diabo? Foi a voz do diabo que se fez escutar ao ouvido do capitão, sob o nome de seu filho, para adverti-lo que o velho ia suicidar-se e, ao mesmo tempo, manifestar-lhe pesar por haver dito palavras que o deviam ferir? Conforme a doutrina que um partido busca fazer prevalecer, segundo a qual só o diabo se comunica, esse capitão deveria ter repelido como satânica a voz que lhe falava; disso teria resultado o suicídio do velho, o mobiliário das pobres operárias teria sido vendido e elas talvez tivessem morrido de fome.
Entre os donativos que recebemos em sua intenção, há um que devemos mencionar, embora sem nomear o autor. Estava acompanhado da seguinte carta:
“Senhor Allan Kardec,
“Soube por um parente, que o obteve de vós, o relato da bela ação, verdadeiramente cristã, realizada por uma pobre operária de Lyon, em benefício de um velho infeliz. O parente também me mostrou um apelo muito eloquente em seu favor, por um Espírito que se dá o nome de Cárita. À sua pergunta, se nele eu reconhecia a linguagem do demônio, respondi que os nossos melhores santos não falariam melhor. É minha opinião, e foi por isso que tomei a liberdade de pedir-lhe uma cópia.
“Senhor, não passo de um pobre padre, mas vos envio o óbolo da viúva, em nome de Jesus-Cristo, para essa brava e digna mulher. Anexo, encontrareis a módica soma de cinco francos, lamentando não poder dar mais. Peço o favor de silenciar o meu nome.
“Dignai-vos aceitar, etc.”
Abade X…