Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868
Versão para cópiaJaneiro - Os Aissaouá ou os convulsionários da rua Le Reletier
“Os aïssaouá formam uma seita religiosa muito espalhada na África e sobretudo na Argélia. Não conhecemos o seu objetivo; sua fundação remonta, dizem uns, a Aïssa, o escravo favorito do Profeta; outros pretendem que sua confraria foi fundada por Aïssa, piedoso e sábio marabu do século dezesseis. Seja como for, os aïssaouá sustentam que o seu piedoso fundador lhes dá o privilégio de serem insensíveis ao sofrimento.”
Tiramos do Petit Journal de 30 de setembro de 1867 o relato de uma das sessões que uma companhia de aïssaouá deu em Paris, durante a Exposição, primeiro no teatro do Campo de Marte e em último lugar na sala da arena atlética da rua Le Peletier. Sem dúvida a cena não tem o caráter imponente e terrível das que se realizam nas mesquitas, cercadas pelo prestígio das cerimônias religiosas. Mas, à parte algumas nuanças de detalhes, os fatos são os mesmos e os resultados idênticos, e aí está o essencial. Aliás, tendo-se passado as coisas em plena Paris, aos olhos de numeroso público, o relato não pode ser suspeito de exagero. É o Sr. Timothée Trimm que fala:
“Confesso que ontem à noite vi coisas que deixam muito para trás os irmãos Davenport e os pretensos milagres do magnetismo. Os prodígios são produzidos numa pequena sala, ainda não classificada na hierarquia dos espetáculos. Isto se passa na arena atlética da rua Le Peletier. Sem dúvida é por isso que tão pouco se trata dos feiticeiros, dos quais falo hoje.
É evidente que tratamos com iluminados, porque eis vinte e seis árabes que se agacham e, para começar, se servem de castanholas de ferro para acompanhar seus cantos.
Do corpo de balé muçulmano inicialmente saiu o primeiro, um jovem árabe que tomou um carvão aceso. Não suspeito que pudesse ser um carvão de um calor fictício, adrede preparado, porque senti o seu ardor quando ele passou em minha frente e queimou o assoalho quando escapou das mãos que o sustinham. O homem tomou esse carvão ardente, colocou-o em sua boca com gritos horríveis e ali o conservou.
Para mim é evidente que esses bárbaros aïssaouá são verdadeiros convulsionários maometanos. No século passado houve os convulsionários de Paris. Os aïssaouá da rua Le Peletier certamente acharam essa curiosa descoberta do prazer, da volúpia e do êxtase na mortificação corporal.
Théophile Gautier, com seu estilo inimitável, descreveu as danças desses convulsionários árabes. Eis o que ele dizia no Moniteur de 29 de julho último:
O primeiro interlúdio de dança era acompanhado por três grandes caixas e três oboés, tocando em modo menor uma cantilena de uma melancolia nostálgica, sustentada por esses ritmos implacáveis que acabam se apoderando de nós e sentimos uma vertigem. Dir-se-ia uma alma lamentosa que a fatalidade força a marchar com um passo sempre igual para um fim desconhecido, mas que se pressente doloroso.
Em breve levantou-se uma dançarina com esse ar abatido que têm as dançarinas orientais, como uma morta que despertasse de uma encantação mágica e por imperceptíveis deslocamentos dos pés aproximou-se do proscênio; uma de suas companheiras juntou-se a ela e começaram, animando-se pouco a pouco, sob a pressão da mesura, essas torções de ancas, essas ondulações de torso, esses balanços de braços agitando lenços de seda raiados de ouro e essa pantomima langorosamente voluptuosa que forma o fundo da dança das bailadeiras orientais. Levantar a perna para uma pirueta ou um “jeté-battu” seria, aos olhos dessas dançarinas, o cúmulo da indecência.
No fim, todo o elenco se pôs de lado e notamos, entre as outras, uma dançarina de uma beleza arisca e bárbara, vestida de “haïks” brancos e enfeitada com uma espécie de “chachia” cercada de cordões. Suas sobrancelhas negras unidas com “surmeh” na raiz do nariz e sua boca vermelha como um pimentão, no meio da face pálida, lhe davam uma fisionomia ao mesmo tempo terrível e encantadora; mas a atração principal da noite era a sessão dos aïssaouá, ou discípulos de Aïssa, a quem o mestre legou o singular privilégio de impunemente devorar tudo o que lhes apresentam.
Aqui, para dar a compreender a excentricidade dos nossos convulsionários argelinos, prefiro a minha prosa simples e sem arte à fraseologia elegante e sábia do mestre. Eis, então, o que vi:
Chega um árabe; dão-lhe um pedaço de vidro para comer! Ele o toma, mete-o na boca e o come!... Por alguns minutos ouvem-se os seus dentes mastigando o vidro. Aparece sangue na superfície dos lábios trêmulos... Ele engole o pedaço de vidro quebrado, dançando e fazendo genuflexões, ao som dos tam-tans.
A este sucede um árabe que traz na mão galhos de figueira da Barbária, o cacto de espinhos compridos. Cada aspereza da folhagem é como uma ponta acerada. O árabe come essa folhagem picante, como comeríamos uma salada de alface ou de chicória.
Quando a folhagem mortal de cactos acabou de ser absorvida, veio um árabe que dançava com uma lança na mão. Ele apoiou a lança no olho direito, dizendo versículos sagrados, que bem deveriam compreender os nossos oculistas... e o olho direito saiu completamente da órbita!... Todos os assistentes soltaram um grito de terror!
Então veio um homem que mandou amarrar o corpo com uma corda... vinte homens puxam; ele luta, sente a corda entrar nas carnes; ri e canta durante essa agonia.
Eis um outro energúmeno diante do qual trazem um sabre turco. Passei os dedos pela lâmina fina e cortante como a de uma navalha. O homem desfaz a cintura, mostra seu ventre nu e se deita sobre a lâmina; empurram-na, mas o damasco respeita a sua epiderme; o árabe venceu o aço.
“Passo em silêncio os aïssaouá que comem fogo, colocando os pés descalços sobre um braseiro ardente. Fui ver o braseiro nos bastidores e atesto que é ardente e composto de lenha inflamada. Também examinei a boca dos que são chamados comedores de fogo. Os dentes são queimados, as gengivas são calcinadas, a abóbada palatina parece ter-se endurecido. Mas é mesmo fogo, todos esses tições que engolem, com contorções danadas, procurando aclimatar-se no inferno... que passa por um país quente.
O que mais me impressionou nessa estranha exibição dos convulsionários da rua Le Peletier, foi o comedor de serpentes. Imaginai um homem que abre um cesto. Dez serpentes de cabeça ameaçadora saem, silvando. O árabe manipula as serpentes, agrada-as, faz que elas se enrolem em torno de seu torso nu. Depois escolhe a maior e mais esperta e com os dentes morde e lhe arranca a cauda. Então o réptil se torce nas angústias da dor. Ela apresenta a cabeça irritada ao árabe que põe a íngua à altura do dardo; de repente, com uma dentada, arranca a cabeça da serpente e a come. Ouve-se o estalar do corpo do réptil nos dentes do selvagem, que mostra através dos lábios ensanguentados o monstro decapitado. Durante esse tempo, a música melancólica dos tam-tans continua o seu ritmo sagrado, e o devorador de serpentes vai cair, perdido e atordoado, aos pés dos cantores místicos.
Até a semana passada eles tinham feito esse exercício somente com serpentes da Argélia, que poderiam ter sido domesticadas na viagem. Mas as serpentes argelinas se acabam, como todas as coisas. Ontem era a estréia das serpentes de Fontainebleau; o Argelino parecia cheio de desconfiança em relação aos nossos répteis nacionais.
Vá quanto ao fogo devorado, suportado nas extremidades... na planta dos pés e na palma das mãos... mas o mastigador de vidro e o comedor de serpentes!... são fenômenos inexplicáveis.
Nós os tínhamos visto outrora num aduar, nas proximidades de Blidah, diz o Sr. Théophile Gautier, e esse sabá noturno nos deixou lembranças ainda arrepiantes. Os aïssaouá, depois de excitados pela música, pelo vapor dos perfumes e esse balanço de fera, que agita como uma juba sua imensa cabeleira, morderam folhas de cactos; mastigaram carvões ardentes; lamberam pás rubras; engoliram vidro moído que se ouvia estalar em seus maxilares; atravessaram a língua e as bochechas com agulhas; fizeram os olhos saltarem fora das órbitas e andaram sobre o fio de um yatagan de aço de Damasco; um deles, atado em um nó corrediço de uma corda puxada por sete ou oito homens, parecia cortado em dois. Isto não os impediu, acabados os exercícios, de virem saudar-nos em nosso lugar, à maneira oriental, e receber o seu “bacchich”.
Das horríveis torturas a que acabavam de se submeter, não restava qualquer marca. Que alguém mais sábio que nós explique o prodígio, pois de nossa parte, renunciamos.
Sou da opinião de meu ilustre colega e venerado superior na grande arte de escrever, tão difícil quanto a de engolir répteis. Não procuro explicar estas maravilhas; mas era meu dever de cronista não deixá-las passar em silêncio.”
Nós próprio assistimos a uma sessão dos aïssaouá e podemos dizer que este relato nada tem de exagerado. Vimos tudo o que aí está contado e mais, um homem atravessar a face e o pescoço com um espeto cortante, em forma de lardeadeira. Tendo tocado o instrumento e examinado a coisa bem de perto, convencemo-nos que não havia nenhum subterfúgio e que o ferro realmente atravessava as carnes. Mas, coisa bizarra, o sangue não corria e a ferida cicatrizava quase que instantaneamente. Vimos um outro manter na boca ardentes carvões de pedra, do tamanho de um ovo, cuja combustão ativava pelo sopro, passeando em redor da sala e lançando centelhas. Era fogo tão real que vários espectadores nele acenderam os charutos.
Aqui não se trata, pois, de golpes de mágica, de simulacros, nem de charlatanice, mas de fatos positivos; de um fenômeno fisiológico que confunde as mais vulgares noções da Ciência; entretanto, por mais estranho que seja, não pode ter senão uma causa natural. O que é mais estranho ainda é que a Ciência parece não lhe haver prestado a menor atenção. Como é que sábios, que passam a vida à procura das leis da vitalidade, ficam indiferentes à vista de semelhantes fatos e não lhes buscam as causas? Julgam-se dispensados de qualquer explicação, dizendo que “são simplesmente convulsionários como havia no último século”. Seja, estamos de acordo. Mas, então, explicai o que se passava com os convulsionários. Considerando-se que os mesmos fenômenos se produzem hoje, aos nossos olhos, diante do público, que o primeiro pode vê-los e tocá-los, então não era uma comédia. Esses pobres convulsionários, dos quais tanto zombaram, não eram, então, pelotiqueiros e charlatães, como pretenderam? Os mesmos efeitos, produzindo-se à vontade, por infiéis, em nome de Alá ou de Maomé, não são, pois, milagres, como outros pensaram? Dirão que são iluminados. Seja, ainda; mas então seria preciso explicar o que é ser iluminado. É preciso que a iluminação não seja uma qualidade tão ilusória quanto supõem, porquanto seria capaz de produzir efeitos materiais, tão singulares; seria, em todo caso, uma razão a mais para estudá-la com cuidado. Se esses efeitos não são milagres nem habilidades de prestidigitação, há que concluir que são efeitos naturais cuja causa é desconhecida, mas que sem dúvida não é impossível de ser encontrada. Quem sabe se o Espiritismo, que já nos deu a chave de tantas coisas incompreendidas, não nos dará ainda esta? É o que examinaremos num próximo artigo.
Maio 2 A CONDESSA DE MONTE-CRISTO
1. — A literatura contemporânea, periódica e outras, penetra-se diariamente de ideias espíritas; e tanto isto é verdade, como temos dito desde muito tempo, que essas ideias são uma mina fecunda para os trabalhos de imaginação, rica em quadros poéticos e em situações cativantes; assim, os escritores aí colhem a mancheias. As doutrinas materialistas lhes oferecem um campo muito limitado, muito prosaico. O que daí se pode tirar, susceptível de tocar o coração e de elevar o pensamento? que poesia oferece a perspectiva do nada, da destruição eterna de si mesmo e daqueles a quem se ama? O materialista sente necessidade de falar à alma de seus leitores, se não as quiser gelar; de oferecer uma alma às suas personagens, se quiser que se interessem. Em todos os tempos os poetas e os literatos tomaram das ideias espiritualistas suas mais belas imagens e suas mais emocionantes situações. Mas hoje o Espiritismo, precisando as crenças no futuro, dá corpo aos pensamentos e uma acentuação que eles não tinham; abre um novo campo que começa a ser explorado. Já citamos numerosos exemplos do fato, e continuaremos a fazê-lo, de vez em quando, porque é um sinal característico da reação que se opera nas ideias.
Além das obras literárias propriamente ditas, a imprensa também registra, diariamente, fatos que entram no quadro do Espiritismo.
2. A CONDESSA DE MONTE-CRISTO.
Sob esse título, o jornal Petite Presse publica um romance-folhetim, no qual se encontram as passagens seguintes, extraídas dos capítulos 30 e XXXI:
“— Meu paraíso, querida mãe, dizia à condessa de Monte-Cristo sua filha agonizante, será ficar perto de ti, junto a vós! sempre viva em vossos pensamentos, escutando-vos e vos respondendo, conversando baixinho com as vossas almas.
“Quando a flor embalsamar o jardim, e a levares ao teu lábio, estarei na flor e serei eu quem receberá o beijo! Também me farei o raio, o sopro que passa, o murmúrio que sussurra. O vento que agitar os teus cabelos será a minha carícia; o perfume que dos lilases floridos se elevar para a tua janela será o meu hálito; o canto longínquo que te fará chorar será a minha voz…
“Mãe, não blasfemes! Nada de cólera contra Deus! Oh! essas cóleras e essas blasfêmias talvez nos separassem para sempre.
“Enquanto ficares aqui, eu me farei tua companheira de exílio; mais tarde, porém, quando, resignada às vontades de nosso Pai, que está nos céus, por tua vez tiveres fechado os olhos para não mais os abrir, então por minha vez estarei à tua cabeceira, esperando a tua libertação; e, inebriadas de uma alegria eterna, nossos dois corações, unidos para sempre, enlaçados para a eternidade, voarão num mesmo impulso para o céu clemente. Compreendes esta alegria, mãe? jamais nos deixarmos, sempre nos amarmos, sempre! Formar, por assim dizer, ao mesmo tempo dois seres distintos e um só; ser tu e eu ao mesmo tempo? Amar e saber que se é amada e que a medida do amor que se inspira é a mesma do que se experimenta?
“Aqui não nos conhecemos; ignoro-te, como me ignoras; entre os nossos dois Espíritos nossos dois corpos representam um obstáculo; não nos vemos senão confusamente, através do véu da carne. Mas lá no alto, leremos claramente no coração uma da outra. E saber a que ponto a gente se ama é o verdadeiro paraíso, não vês?
“Ai! todas essas promessas de felicidade mística e infinita, longe de acalmar as angústias de Helena, não faziam senão torná-las mais intensas, fazendo-lhe medir o valor do bem que ia perder.
“Entretanto, de quando em quando, ao sopro destas palavras inspiradas, a alma de Helena alçava voo quase às alturas serenas onde planava a da Pippione. Suas lágrimas se estancavam, a calma voltava em seu seio transtornado; parecia-lhe que seres invisíveis flutuavam no quarto, soprando a Blanche as palavras à medida que as pronunciava.
“A criança adormecera e, em seu sonho, parecia conversar com alguém que não via, escutar vozes que só ela ouvia, e lhes responder.
“De repente, um brusco sobressalto agitou seus membros frágeis, ela abriu largamente os grandes olhos e chamou sua mãe, que sonhava apoiada à janela.
“Aproximou-se do leito e Pippione tomou sua mão, com a sua já úmida pelos últimos suores.
“— Chegou o momento, disse ela. Esta noite é a última. Eles me chamam, eu os escuto! Queria muito ficar ainda, pobre mãe, mas não posso; a vontade deles é mais forte que a minha; eles estão lá no alto e me fazem sinal.
“— Loucura! gritou Helena; visão! sonho! Tu, morrer hoje, esta noite, entre os meus braços! Isto é possível?
“— Não, não morrer, disse a Pippione; nascer! eu saio do sonho, em vez de nele entrar; o pesadelo acabou, eu desperto. Oh! se tu soubesses como é belo, e que luz brilha aqui, junto à qual o vosso Sol não passa de uma mancha negra!
“Ela se deixou cair sobre as almofadas, ficou um instante silenciosa, depois continuou:
“São curtos os instantes que tenho para passar junto de vós. Quero que todos estejais aqui para me dizer o que chamais um eterno adeus, o que não é, na realidade, senão um breve até logo. Todos, entendeste bem? Primeiro tu, o bom doutor, Úrsula, Cipriana e José.
“Este nome foi pronunciado mais baixo que os outros; era o último suspiro, o último pesar humano da Pippione. A partir desse instante ela pertencia inteiramente ao céu…
“— Era minha filha!
“— Era!… repetiu com voz quase paternal o doutor Ozam, atraindo Helena ao peito. Era!… então não é mais… Que resta aqui? um pouco de carne meio decomposta, nervos que não vibram mais, sangue que se engrossa, olhos sem olhar, uma garganta sem voz, ouvidos que não mais escutam, um pouco de lama!
“Vossa filha! este cadáver no qual a Natureza fecunda já fez germinar a vida inferior, que disseminará os seus elementos? — Vossa filha, esse lodo que amanhã reverdecerá em erva, florirá em rosas e devolverá ao solo todas as forças vivas que dele tirou? Não, não. Isto não é vossa filha! isto não passa da vestimenta delicada e encantadora que ela tinha criado para atravessar a nossa vida de provações, um andrajo que ela abandonará com desdém, como um vestido velho que se joga fora!
“Se quiserdes ter uma lembrança viva de vossa filha, pobre mulher, é preciso olhar alhures… e mais alto.
“— Vós também credes nisto, doutor, perguntou ela, nesta outra vida? Diziam que éreis materialista.
“O doutor esboçou um doce sorriso irônico.
“Talvez eu o seja, mas não da maneira por que o entendeis.
“Não é numa outra vida que eu creio, mas na vida eterna, na vida que não começou e que, por conseguinte, não terá fim. — Cada ser, no começo igual aos outros, faz, a bem dizer, a educação de sua alma e aumenta as suas faculdades e o seu poder, na medida de seus méritos e de seus atos. Consequência imediata desta argumentação: a alma mais perfeita agrega em torno de si um envoltório igualmente mais perfeito. Finalmente, chega um dia em que este envoltório não lhe basta mais, e então, como se diz, a alma rompe o corpo.
“Mas ela o rompe para encontrar outro mais em relação com as suas necessidades e qualidades novas? Onde? Quem sabe? Talvez num desses mundos superiores, que brilham sobre as nossas cabeças, num mundo onde encontrará um corpo mais perfeito, dotado de órgãos mais sensíveis, por isto mesmo melhor e mais feliz!
“Nós mesmos, seres perfeitos, dotados desde o primeiro dia de todos os sentidos que nos põem em relação com a natureza exterior, de quantos esforços não necessitamos! Que trabalhos latentes não são precisos para que a criança se torne homem, o ser ignorante e fraco, rei da Terra! E, incessantemente, até a morte, os corajosos e os bons perseveram nesta via árdua do trabalho; alargam a inteligência pelo estudo, o coração pelo devotamento. Eis o trabalho misterioso da crisálida humana, o trabalho pelo qual ela adquire o poder e o direito de romper o invólucro do corpo e de planar com asas.”
Observação. – O autor, que até aqui tinha guardado o anonimato, é o Sr. du Boys [Jean Charles du Boys, 1836-1873], jovem escritor dramático. Por certas impressões quase textuais, vê-se que, evidentemente, ele se inspirou na Doutrina.
3. O BARÃO CLOOTZ.
Sob o título de: Um voto humanitário, Anacharsis Clootz, barão prussiano, convencional francês, aos seus concidadãos de Paris e de Berlim, o Progrès de Lyon, de 27 de abril de 1867, publicava, sob a forma de uma carta supostamente escrita do outro mundo, pelo convencional Clootz, um artigo muito longo, começando assim:
“No outro mundo em que habito, desde a terrível jornada de 24 de março de 1794, que, confesso, me desiludiu um pouco sobre os homens e sobre as coisas, só a palavra guerra guarda o privilégio de me lembrar as preocupações da política terrestre. Aquilo que mais amei, que digo eu? adorei e servi, quando habitava o vosso planeta, foi a fraternidade dos povos e a paz. A esse grande objeto de estudo e de amor, dei um penhor muito sério: minha cabeça, à qual as minhas cem mil libras de renda, aos olhos de muita gente, acrescenta importante valor. O que me consolava mesmo um pouco, ao subir os degraus do cadafalso, eram os considerandos pelos quais Saint Just acabava de justificar a minha prisão. Era dito, se bem me lembro, que doravante a paz, a justiça e a probidade seriam postas na ordem do dia. Eu teria dado minha vida, declaro altivamente e sem hesitar, e duas vezes em vez de uma, para obter a metade desse resultado. E notai, por favor, que meu sacrifício seria mais completo e mais profundo do que teria sido o da maior parte dos meus colegas. Eu era de boa-fé e guardava o respeito à justiça no fundo do coração; mas, sem falar dos cultos aos quais tinha horror, o próprio Ser supremo de Robespierre me irritava os nervos, e a vida futura tinha para mim a aparência de um bonito conto de fadas. Sem dúvida me perguntareis o que ela é. Eu estava errado? Eis o grande segredo dos mortos. Julgai vós mesmos os vossos riscos e perigos. Contudo, parece que eu ia um pouco longe, porquanto, nesta ocasião solene, me é permitido vos escrever.”
Sendo o artigo exclusivamente político e saindo do nosso quadro, citamos apenas este fragmento, para mostrar que, mesmo nesses graves assuntos, pode-se tirar partido da ideia dos mortos, dirigindo-se aos vivos, para continuar junto a estes relações interrompidas. A cada instante o Espiritismo vê realizar-se esta ficção. É mais que provável que é ele que tenha dado esta ideia. Aliás, se ela fosse dada como real, ele não a desaprovaria.
4. METEMPSICOSE.
“Conheceis a causa dos ruídos que nos chegam? dizia a Sra. Des Genêts. Será alguma nova cena de tigres enfurecidos, que esses senhores nos preparam?
“– Sossegai, cara amiga, tudo está em segurança: os nossos vivos e os nossos mortos. Escutai a encantadora melodia do rouxinol, que canta no salgueiro! Talvez seja a alma de um dos nossos mártires, que plana em torno de nós sob essa forma amável. Os mortos têm esses privilégios; e eu de boa vontade me convenço de que eles voltam assim junto àqueles a quem amaram.
“– Oh! se dissésseis a verdade! exclamou vivamente a senhora Des Genêts.
“– Eu o creio sinceramente, disse a jovem duquesa. É tão bom acreditar nas coisas consoladoras! Aliás, meu pai, que é muito sábio, como não o ignorais, assegurou-me que esta crença tinha sido espalhada antigamente por grande filósofos. O próprio Lesage também nela acredita.”
Esta passagem é tirada de um romance-folhetim, intitulado: O calabouço da Torre dos Pinheiros, por Paulin Capmat, publicado pelo Liberté de 4 de novembro de 1867. Aqui a ideia não é tomada à Doutrina Espírita, porque esta, em todos os tempos, ensinou e provou que a alma humana não pode renascer num corpo animal, o que não impede que certos críticos, que não leram a primeira palavra do Espiritismo, repitam que ele professa a metempsicose; mas é sempre o pensamento da alma individual sobrevivendo ao corpo, voltando sob uma forma tangível junto daqueles a quem amou. Se a ideia não é espírita, pelo menos é espiritualista, e melhor seria ainda crer na metempsicose do que não crer em nada. Essa crença, ao menos, não é desesperadora como o materialismo; nada tem de imoral, ao contrário; ela conduziu todos os povos que a professaram a tratar os animais com doçura e benevolência. Esta exclamação: É tão bom crer nas coisas consoladoras é o grande segredo do sucesso do Espiritismo.
5. ENTERRO DO SR. MARC MICHEL.
Lê-se no Temps de 27 de março de 1868:
“Ontem, no enterro do Sr. Marc Michel, † o Sr. Jules Adenis † disse adeus, em nome da Sociedade dos Autores Dramáticos, † ao escritor que a comédia alegre e ligeira acaba de perder.
“Encontro esta frase em seu discurso:
“Foi Ferdinand Langlé † quem, recentemente, precedeu no túmulo aquele que hoje choramos… E, quem sabe? quem pode dizê-lo?… assim como acompanhamos aqui estes despojos mortais, talvez a alma de Langlé tenha vindo receber a alma de Marc Michel no limiar da eternidade.”
“Com toda certeza a falta é de meu espírito muito leviano, mas confesso que me é difícil imaginar, com a gravidade conveniente, a alma do autor do Le Sourd - Google Books, do Le camarade de lit - Google Books, de Une Sangsue - Google Books, da Grève dês portiers, vindo receber no limiar da eternidade a alma do autor de Maman Sabouleux - Google Books, de Mesdames de Montenfriche - Google Books, de Un tigre du Bengale - Google Books e de La station champbaudet - Google Books.”
X. Feyrnet.
O pensamento emitido pelo Sr. Jules Adenis é do mais puro Espiritismo. Suponhamos que o autor do artigo, o Sr. Feyrnet, que acha difícil conservar a gravidade conveniente ouvindo dizer que a alma do Sr. Ferdinand Langlé talvez esteja presente e venha receber a alma de Marc Michel, tivesse tomado a palavra e, por sua vez, assim se tivesse expressado: “Senhores, acabam de vos dizer que a alma de nosso amigo Langlé está aqui, que nos vê e nos ouve! Ele não precisaria mais senão acrescentar que nos pode falar. Não acrediteis uma só palavra; a alma de Langlé não existe mais; ou, então, o que dá no mesmo, ela se fundiu na imensidade. De Marc Michel não resta mais nada; será o mesmo quando morrerdes, como vossos pais e amigos. Esperar que eles vos aguardem, que venham vos receber no desembarque da vida, é loucura, superstição, iluminismo. Eis o positivo: Quando se morre, tudo está acabado.” Qual dos dois oradores teria encontrado mais simpatia entre os assistentes? Qual teria enxugado mais lágrimas, dado mais coragem e resignação aos aflitos? O infeliz, que não espera mais alívio neste mundo, não teria razões para lhe dizer: “Se é assim, acabemos o mais cedo possível com a vida?” Deve-se lamentar o Sr. Feyrnet por não poder manter-se sério ante a ideia de que seu pai e sua mãe caso os tenha perdido, ainda vivam, velem à sua cabeceira e que os verá de novo.
6. UM SONHO.
Extrato do Figaro de 12 de abril de 1868:
“Por mais extraordinário que pareça o relato seguinte, o autor, declarando tê-lo recebido do próprio vice-presidente do Corpo Legislativo (o barão Jérôme David), † dá às suas palavras uma autoridade incontestável.
“Durante sua estada em Saint-Cyr, † David foi testemunha de um duelo entre dois de seus camaradas de promoção, Lambert e Poirée. Este último recebeu uma estocada e foi curar-se na enfermaria, onde seu amigo David subia para vê-lo todos os dias.
“Uma manhã Poirée lhe pareceu singularmente perturbado; crivou-o de perguntas e acabou por lhe arrancar a confissão de que sua emoção provinha de um simples pesadelo.
“– Eu sonhava que estávamos à beira de um rio, recebia uma bala na testa, acima do olho, e tu me sustentavas em teus braços; eu sofria muito e me sentia morrer; recomendava-te a minha mulher e meus filhos, quando despertei.
“– Meu caro, estás com febre, respondeu-lhe David sorrindo; refaze-te; estás no teu leito, não és casado e não tens bala acima do olho; é um sonho muito estúpido; não te atormentes assim, se queres curar-te depressa.
“– É singular, murmurou Poirée, jamais acreditei em sonhos, neles não creio e, contudo estou abalado.
“Dez anos depois, o exército francês desembarcava na Crimeia; † os saint-cyrianos se tinham perdido de vista. David, oficial ajudante, ligado à divisão do príncipe Napoleão, † recebeu ordem de ir descobrir um vau a montante do Alma. † Para impedir que os russos o fizessem prisioneiro, apoiaram esse reconhecimento por uma companhia de fuzileiros, tomada do regimento mais próximo. Os russos faziam cair uma chuva de balas sobre os homens da escolta, que se desdobraram no contra-ataque.
“Não se tinham passado dez minutos quando um dos nossos oficiais rolou por terra, mortalmente ferido. O capitão David saltou do cavalo e correu para o levantar; ele apoiou a cabeça em seu braço esquerdo e, desprendendo o cantil da cintura, aproximou-o dos lábios do ferido. Um grande buraco acima do olho ensanguentava-lhe o rosto; um soldado trouxe um pouco de água e o derrabou sobre a cabeça do moribundo, que já agonizava.
“David olhou com atenção os traços, que parecia reconhecer; um nome foi pronunciado ao seu lado; nada de dúvida: era ele, era Poirée! Chama-o; seus olhos se abrem; o agonizante por sua vez reconhece o camarada de Saint-Cyr…
“– David! Tu aqui?… O sonho… minha mulher…
“Estas palavras entrecortadas não tinham acabado e já a cabeça caía inerte no braço de David. Poirée estava morto, deixando sua mulher e seus filhos à lembrança e à amizade de David.
“Eu não ousaria contar semelhante história se eu mesmo não a tivesse ouvido do honrado vice-presidente do Corpo Legislativo.
“Vox populi.”
Com que propósito o narrador acrescenta as palavras vox populi? Poder-se-ia entendê-las assim: Os fatos desta natureza são de tal modo frequentes que são atestados pela voz do povo, isto é, por um assentimento geral.
7. ESPÍRITOS BATEDORES NA RÚSSIA.
Enviam-nos de Riga, † com data de 8 de abril de 1868, o extrato a seguir, do Courrier russe de São Petersburgo: †
“Acreditais em Espíritos batedores? Por mim, não; absolutamente. E, contudo, acabo de ver um fato material, palpável, que foge de tal modo das regras do senso comum, e também está de tal maneira em desacordo com os princípios de estabilidade e da gravidade dos corpos, que me inculcou o meu professor do quarto ano, que não sei qual dos dois é mais ferido, se o Espírito ou eu.
“Outro dia nosso secretário de redação recebeu um senhor de semblante agradável, de uma idade a não se lhe poder atribuir a ideia de uma piada de mau gosto. Cumprimentos, apresentação, etc.; tudo acabado, o senhor conta que vem ao nosso escritório pedir um conselho; que o que lhe acontece está a tal ponto fora de todos os fatos da vida social, que julga no dever de publicá-lo.
“– Minha casa, disse ele, está cheia de Espíritos batedores; toda noite, em torno de dez horas, começam seus exercícios, transportando os objetos menos transportáveis, batendo, pulando e, numa palavra, pondo todo o meu apartamento de pernas para o ar. Recorri à polícia; um soldado passou várias noites em minha casa. A desordem não cessou, embora a cada alarme ele tenha desembainhado o sabre de maneira ameaçadora. Minha casa está isolada, só tenho uma criada, minha mulher e minha filha, e quando esses fatos se passam estamos reunidos. Moro numa rua muito afastada, em Vassili-Ostroff.
“Eu tinha entrado durante a conversa e escutava de boca aberta. Como vos disse, não acredito em Espíritos batedores, absolutamente. Expliquei a esse senhor que para dar publicidade a esses fatos, era preciso que estivéssemos convencidos de sua existência, e lhe propus ir eu mesmo para me dar conta da coisa. Marcamos encontro para a noite e às nove horas eu estava na casa do homem. Introduziram-me num pequeno salão, mobiliado com muito conforto; examinei a disposição das peças; eram apenas quatro, inclusive a cozinha, tudo ocupando o andar do meio de uma casa de madeira; ninguém mora em cima; o térreo é ocupado por um armazém.
“Por volta de dez horas estávamos reunidos no salão, o homem, a mulher, sua esposa, sua filha, a cozinheira e eu. Uma meia hora e nada de novo! De repente uma porta se abriu e uma galocha caiu no meio da sala; acreditei num comparsa e quis assegurar-me de que a escada estava vazia, quando a galocha saltou sobre um móvel e de lá novamente no soalho; depois foi a vez das cadeiras na peça vizinha, que não tinha saída senão pela que ocupávamos, e que eu acabava de constatar perfeitamente vazia. Só ao cabo de uma hora o silêncio se restabeleceu, e o Espírito, os Espíritos, o hábil comparsa, ou Deus é quem sabe, desapareceu, deixando-nos numa estupefação que, eu vos garanto, nada tinha de jogo. Eis os fatos, eu os vi com os próprios olhos; não me encarrego de vo-los explicar. Se desejardes vós mesmos procurar a explicação, temos à vossa disposição todas as informações, a fim de que possais fazer vossas observações nos locais”
Henri de Brenne.
Julho 6 O PARTIDO ESPÍRITA
1. — Bem que os espíritas se consideravam uma escola filosófica, mas nunca lhes tinha vindo à mente se julgar um partido. Ora, eis que um belo dia o Moniteur lhes dá esta notícia, que os surpreendeu um pouco. E quem foi que lhes deu esta qualificação? Foi um desses jornalistas inescrupulosos, que lançam epítetos ao acaso, sem lhes compreender o alcance? Não; é um relatório oficial, feito ao primeiro corpo do Estado, ao Senado. Assim, não é provável que, num documento dessa natureza, essa palavra tenha sido pronunciada levianamente. Sem dúvida não foi a benevolência que a ditou, mas foi dita e faz sucesso, porque os jornais não a deixaram cair. Alguns, crendo aí encontrar um agravo a mais contra o Espiritismo, nada tiveram de mais urgente do que estampar em suas colunas o título de: O Partido Espírita.
Assim, esta pobre escolinha, tão ridicularizada, tão humilhada, que caridosamente pretendiam enviar em massa ao hospício; sobre a qual diziam que bastava soprar para que ela desaparecesse; que vinte vezes a declararam morta e para sempre enterrada; à qual não há mais fino escritor hostil que não se tenha gabado de lhe haver dado o golpe de misericórdia, mas concordando, com estupefação, que ela invadia o mundo e todas as classes da sociedade; da qual quiseram, a todo custo, fazer uma religião, gratificando-a com templos e sacerdotes, grandes e pequenos, que ela jamais viu, ei-la de repente transformada em partido. Por esta qualificação, o Sr. Genteur, o relator do Senado, não lhe deu o seu verdadeiro caráter, mas a exaltou; deu-lhe uma posição, um lugar, pondo-a em evidência. Porque a ideia de partido implica a de uma certa força, de uma opinião bastante importante, bastante ativa e bastante espalhada para representar um papel, e com a qual é preciso contar.
Por sua natureza e por seus princípios, o Espiritismo é essencialmente pacífico; é uma ideia que se infiltra sem ruído, e se encontra numerosos aderentes, é que agrada; jamais fez propaganda nem exibições quaisquer; forte pelas leis naturais, nas quais se apoia, vendo-se crescer sem esforços nem abalos, não vai ao encontro de ninguém, não violenta nenhuma consciência; diz o que é e espera que a ele venham. Todo o ruído que se fez a sua volta é obra de seus adversários; atacaram-no, ele teve que se defender, mas sempre o fez com calma, moderação e só pelo raciocínio; jamais se afastou da dignidade que é própria de toda causa que tem consciência de sua força moral; jamais usou de represálias, pagando injúria por injúria, maus procedimentos por maus procedimentos. Hão de convir que não é este o caráter ordinário dos partidos, turbulentos por natureza, fomentando a agitação e a quem tudo é bom para chegar aos fins. Mas, já que lhe dão este nome, ele o aceita, certo de que não o desonrará por qualquer excesso, pois repudiaria quem quer que dele se prevalecesse para suscitar a menor perturbação.
O Espiritismo seguia sua rota sem provocar qualquer manifestação pública, mas aproveitando a publicidade que lhe faziam os seus adversários; quanto mais a sua crítica era zombeteira, acerba e virulenta, tanto mais excitava a curiosidade dos que não o conheciam e que, para saberem como proceder diante dessa assim chamada nova excentricidade, iam simplesmente informar-se na fonte, isto é, nas obras especiais; estudavam-no e encontravam outra coisa do que tinham ouvido dizer. É um fato notório que as declamações furibundas, os anátemas e as perseguições ajudaram poderosamente a sua propagação, porque, em vez de lhe desviar a atenção, provocaram o seu exame, ainda que fosse pela atração do fruto proibido. As massas têm sua lógica; elas se dizem que se uma coisa nada fosse, dela não falariam, e medem a sua importância precisamente pela violência dos ataques de que é objeto e pelo pavor que causa aos seus antagonistas.
Instruídos pela experiência, certos órgãos de publicidade se abstinham de falar dele, bem ou mal, evitando mesmo pronunciar o seu nome, para não lhe dar repercussão, limitando-se, de vez em quando, a lhe lançar alguns ataques violentos às escondidas, quando uma circunstância o punha forçosamente em evidência. Alguns também guardaram silêncio, porque a ideia tinha penetrado em suas fileiras e, com ela, se não talvez a convicção, pelo menos a hesitação.
Então a imprensa em geral se calava sobre o Espiritismo, quando uma circunstância, que não poderia ser obra do acaso, a obrigou a falar dele. E quem provocou o incidente? Sempre os adversários da ideia que, ainda dessa vez, se equivocaram, produzindo um efeito totalmente contrário ao que esperavam. Para dar mais repercussão ao seu ataque, conduzem-no com pouca habilidade, não no terreno de uma folha sem caráter oficial e cujo número de leitores é limitado, mas por via de petições à própria tribuna do Senado, onde ela é objeto de discussão e de onde saiu a expressão de partido espírita. Ora, graças aos jornais de todas as colorações, obrigados a notificar o debate, a existência desse pequeno partido foi revelada instantaneamente a toda a Europa e além.
É verdade que um membro da ilustre assembleia disse que não havia senão patetas que fossem espíritas, ao que o presidente respondeu que os tolos também podiam formar um partido. Ninguém ignora que hoje os espíritas se contam por milhões, e que altas notabilidades simpatizam com suas crenças; é, pois, de admirar que um epíteto tão pouco cortês e tão generalizado tenha saído daquele recinto, dirigido a notável parte da população, sem que o autor tenha refletido até onde ele atingia.
De resto, os próprios jornais se encarregaram de desmentir tal qualificação, certamente não por benevolência, mas, que importa! O jornal Liberté, entre outros, que aparentemente não quer que se seja livre de ser espírita, como se o é de ser judeu, protestante, são-simonista ou livre-pensador, publicou, em seu número de 13 de junho, um artigo assinado por Liévin, do qual eis um extrato:
2. — “O Sr. Genteur, comissário do governo, revelou ao Senado a existência de um partido que não conhecíamos, e que, como os outros, parece contribuir, no limite de suas forças, para abalar as instituições do império.” Sua influência já se fizera sentir o ano passado, e o partido espírita — nome que lhe deu o Sr. Genteur — tinha obtido do Senado, sem dúvida graças à sutileza dos meios de que dispõe, a remessa ao governo da famosa petição de Saint-Étienne, † na qual eram denunciadas, como se lembram, não as tendências materialistas da Escola de Medicina, mas as tendências filosóficas da biblioteca da comuna. Até aqui tínhamos atribuído ao partido da intolerância a honra desse sucesso, e o considerávamos por si como uma consolação por seu último revés; mas parece que nos tínhamos enganado e que a petição de Saint-Étienne não passava de uma manobra desse partido espírita, cujo poder oculto parece querer exercer-se mais particularmente em detrimento das bibliotecas.
“Assim, segunda-feira o Senado ocupava-se de uma nova petição, na qual o partido espírita, levantando ainda a cabeça, denunciava as tendências da biblioteca de Oullins † (Rhône). Mas desta vez a venerável assembleia, posta em guarda pelas revelações do Sr. Genteur, frustrou os cálculos dos espíritas, por uma unânime ordem do dia. Apenas o Sr. Nisard † se deixou apanhar mais ou menos por esta astúcia de guerra, e de boa-fé estendeu a mão a esses pérfidos inimigos. Deu-lhes o apoio de um parecer em que, por sua vez, assinalava os perigos dos maus livros. Felizmente o equívoco do honrado senador não foi partilhado e os espíritas, arrependidos e confusos, foram reconduzidos como mereciam.”
Um outro jornal — Revue politique hebdomadaire — de 13 de junho, assim começa um artigo sobre o mesmo assunto:
“Ainda não conhecíamos todos os nossos perigos. Caso se acredite no Constitutionnel, não eram bastantes os partidos legitimista, orleanista, republicano, socialista, comunista e o partido vermelho, sem contar o partido liberal, que os resume todos? Era mesmo sob o segundo império, cuja pretensão é dissolver todos os partidos, que devia nascer um novo partido, crescer e ameaçar a sociedade francesa, o partido espírita? Sim, o partido espírita! Foi o Sr. Genteur, Conselheiro de Estado, quem o descobriu e que o denunciou em pleno Senado.”
3. — Dificilmente se compreende que um partido que só se componha de tolos possa fazer o Estado correr sérios perigos; apavorar-se com isto seria fazer crer que se tem medo dos bobos. Soltando esse grito de alarme à face do mundo, prova-se que o partido espírita é alguma coisa. Não tendo podido abafá-lo sob o ridículo, tentam apresentá-lo como um perigo para a tranquilidade pública. Ora, qual será o resultado inevitável desta nova tática? Um exame tanto mais sério e mais profundo mais terá exaltado o seu perigo; quererão conhecer as doutrinas deste partido, seus princípios, sua palavra de ordem, suas filiações. Se o ridículo lançado sobre o Espiritismo, como crença, despertou curiosidade, será bem outra coisa quando for apresentado como um partido temível; cada um está interessado em saber o que ele quer, para onde conduz: é tudo o que ele pede; agindo às claras, não tendo nenhuma instrução secreta, fora do que é publicado para uso de tudo o mundo, ele não teme nenhuma investigação, certo que está, ao contrário, de ganhar por ser conhecido e que, quem quer que o perscrute com imparcialidade, verá em seu código moral uma poderosa garantia da ordem e da segurança. Um partido, pois é um partido, que inscreve em sua bandeira: Fora da caridade não há salvação, indica suas tendências com bastante clareza, para que ninguém tenha razão para o temer. Aliás, a autoridade, cuja vigilância é conhecida, não pode ignorar os princípios de uma doutrina que não se esconde. Não falta gente para lhe dar conta do que se diz e se faz nas reuniões espíritas, e ela bem saberia chamar à ordem as que dela se afastassem.
É de admirar que homens que fazem profissão de liberalismo, que reclamam com insistência a liberdade, que a querem absoluta para as suas ideias, seus escritos, suas reuniões, que estigmatizam todos os atos de intolerância, queiram proscrevê-la para o Espiritismo.
4. — Mas, vede a que inconsequências conduz a cegueira! O debate que ocorreu no Senado foi provocado por duas petições: uma, do ano passado, contra a biblioteca de Saint-Étienne; outra deste ano, contra a biblioteca de Oullins, assinadas por alguns habitantes daquelas cidades, e que reclamavam contra a introdução, naquelas bibliotecas, de certas obras, em cujo número figuravam as obras espíritas.
Pois bem! o autor do artigo do jornal Liberté, que sem dúvida examinou a questão um tanto levianamente, imagina que a reclamação emana do partido espírita e conclui que este recebeu uma pancada na cabeça pela ordem do dia pronunciada contra a petição de Ouillins. Eis, pois, esse partido tão perigoso, tão facilmente derrubado, e que peticiona para pedir a exclusão de suas próprias obras! Então seria verdadeiramente o partido dos tolos. Aliás, este estranho equívoco nada tem de surpreendente, visto que o autor declara, de início, que não conhecia esse partido, o que não o impede de o declarar capaz de abalar as instituições do império.
Longe de se inquietarem com esses incidentes, os espíritas devem regozijar-se; esta manifestação hostil não podia produzir-se em circunstâncias mais favoráveis, e por certo a Doutrina receberá um novo e salutar impulso, como tem acontecido em todos os levantes de que ela foi objeto. Quanto mais esses ataques repercutirem, mais proveitosos serão. Dia virá em que se transmutarão em aprovações abertas.
5. — O jornal Siècle, de 18 de junho, também publicou seu artigo sobre o partido espírita. Todos aí notarão um espírito de moderação, que contrasta com os dois outros que mencionamos; nós o reproduzimos integralmente:
“Quem disse que não há nada de novo debaixo do sol? O céptico que assim falava não suspeitava que um dia a imaginação de um Conselheiro de Estado faria, em pleno Senado, a descoberta do partido espírita. Já contávamos alguns partidos na França, e Deus sabe se os ministros oradores cometem erro ao enumerar os perigos que podem causar esta divisão dos espíritos! Há o partido legitimista, o partido orleanista, o partido republicano, o partido socialista, o partido comunista, o partido clerical, etc., etc.
“A lista não pareceu bastante longa ao Sr. Genteur. Ele acaba de denunciar à vigilância dos veneráveis pais da política, que têm assento no Palácio do Luxemburgo, † a existência do partido espírita. A esta revelação inesperada, um frisson percorreu a assembleia. Os defensores das duas morais, com o Sr. Nisard à frente, estremeceram.
“Quê! A despeito do zelo desses inumeráveis funcionários, o império francês está ameaçado por um novo partido? – Na verdade, é para desesperar da ordem pública. Como este inimigo, invisível até agora ao próprio Sr. Genteur, pôde ocultar-se a todas as vistas? Há nisto um mistério, que o Sr. Conselheiro de Estado, se o penetrar, bem que nos poderá ajudar a compreender. Pessoas oficialmente informadas afirmam que o partido espírita escondia o exército de seus representantes — os Espíritos batedores — atrás dos livros das bibliotecas de Saint-Étienne e de Oullins.
“Eis-nos, pois, de volta aos belos tempos das histórias da carochinha, das mesas girantes e das indiscretas mesinhas de pés-de-galo!
“Embora o Espiritismo e seu primeiro apóstolo, o Sr. Delage — o mais suave dos pregadores – não tenham ainda convencido muita gente, contudo chegaram a constituir um partido. Isto pelo menos se diz no Senado, e não seremos nós que alguma vez nos permitiremos suspeitar da exatidão do que se afirma num lugar tão importante.
“A influência oculta do partido recentemente assinalado se fez sentir até na última discussão do Senado, onde o Sr. Désiré Nisard, † um dos maiorais, mostrou-se forte contra os reacionários. Um tal papel cabia de direito ao homem que foi, desde a sua saída da escola normal, um dos agentes mais ativos das ideias retrógradas.
“Depois disto, é para admirar ouvir o honrado senador invocar o arbítrio para justificar as medidas restritivas tomadas a propósito da escolha dos livros da biblioteca de Oullins? “Esse estabelecimentos populares, diz o Sr. Nisard, são fundados por associações; encontram-se, pois, sob o disposto do artigo 291 do Código Penal e, por consequência, à mercê do Ministro do Interior. Ele usou, usa e usará desta ditadura.”
“Deixamos ao partido espírita e ao seu Cristóvão Colombo, o Sr. Genteur, Conselheiro de Estado, o cuidado de interrogar os Espíritos reveladores, a fim de que nos digam o que o Senado espera obter impedindo os cidadãos de organizarem livremente as bibliotecas populares, como se pratica na 1nglaterra?”
Anatole de la Forge. †
[Revista de agosto.]
6. O PARTIDO ESPÍRITA.
Um dos nossos correspondentes de Sens † nos transmitiu as observações seguintes, sobre a qualificação de partido, dada ao Espiritismo, a propósito de nosso artigo do mês de julho sobre o mesmo assunto.
“Num artigo do último número da Revista, intitulado: O partido espírita, dizeis que, uma vez que assim nomeiam o Espiritismo, ele o aceita. Mas deve aceitá-lo?
Isto talvez mereça um exame sério.
“Todas as religiões, assim como o Espiritismo, não ensinam que todos os homens são irmãos, que são todos filhos de um pai comum, que é Deus? Ora, deveria haver partidos entre os filhos de Deus? Não é uma ofensa ao Criador? porque é próprio dos partidos armar os homens uns contra os outros; e pode a imaginação conceber maior crime que armar os filhos de Deus uns contra os outros?
“Tais são, senhor, as reflexões que julguei dever submeter à vossa apreciação. Talvez fosse oportuno submetê-las, também, à dos benevolentes Espíritos que guiam os trabalhos do Espiritismo, a fim de conhecer a sua opinião. Essa questão talvez seja mais grave do que parece à primeira vista. De minha parte, repugnar-me-ia pertencer a um partido. Creio que o Espiritismo deve considerar os partidos como uma ofensa a Deus.”
Estamos perfeitamente de acordo com o nosso honrado correspondente, cuja intenção só podemos louvar. Contudo, cremos que seus escrúpulos são um pouco exagerados no caso de que se trata, sem dúvida por não ter examinado suficientemente a questão.
A palavra partido implica, por sua etimologia, a ideia de divisão, de cisão e, por conseguinte, a de luta, de agressão, de violência, de intolerância; de ódio, de animosidade, de vingança, coisas todas contrárias ao espírito do Espiritismo. Não tendo o Espiritismo nenhum desses caracteres, pois que os repudia, por suas tendências mesmas, não é um partido na acepção vulgar da palavra, e nosso correspondente tem muitíssima razão para repelir a qualificação deste ponto de vista.
Mas ao nome de partido se liga também a ideia de uma força, física ou moral, bastante forte para pesar na balança, bastante preponderante para que se possa contar com ela; aplicando-o ao Espiritismo, pouco ou nada conhecido, é dar-lhe um ato de notória existência, uma posição entre as opiniões, constatar a sua importância e, como consequência, provocar o seu exame, o que ele não cessa de pedir. Sob esse aspecto, devia repudiar tanto menos essa qualificação, embora fazendo reservas sobre o sentido a ligar a isto, quanto, partida do alto, ela dava um desmentido oficial aos que pretendem que o Espiritismo seja um mito sem consistência, que se gabavam de o haver enterrado vinte vezes. Foi possível julgar do alcance desta palavra pelo ardor desajeitado com o qual certos órgãos da imprensa dela se apoderam para transformá-la num espantalho.
É por esta consideração, e neste sentido, que dissemos que o Espiritismo aceita o título de partido, já que lho dão, porque era engrandecê-lo aos olhos do público; mas não tivemos em vista fazê-lo perder sua qualidade essencial, a de doutrina filosófica moralizadora, que faz sua glória e a sua força. Longe de nós, pois, o pensamento de transformar em partidários os adeptos de uma doutrina de paz, de tolerância, de caridade e de fraternidade. A palavra partido, aliás, nem sempre implica a ideia de luta, de sentimentos hostis; não se diz: o partido da paz? o partido das pessoas honestas? O Espiritismo já provou, e provará sempre, que pertence a esta categoria.
Quanto ao mais, faça o que fizer, o Espiritismo não pode deixar de ser um partido. Com efeito, que é um partido, abstração feita da ideia de luta? é uma opinião que não é partilhada senão por uma parte da população. Mas essa qualificação só é dada às opiniões que contam um número de aderentes bastante considerável para chamar a atenção e representar um papel. Ora, não sendo ainda de todos, a opinião espírita é, necessariamente, um partido em relação às opiniões contrárias, que o combatem, até que os tenha unido a todos. Em virtude de seus princípios, ele não é agressivo; não se impõe; não subjuga; não pede para si senão a liberdade de pensar à sua maneira, seja; mas, desde que é atacado, tratado como pária, deve defender-se e reivindicar para si o que é de direito comum; ele o deve, é seu dever, sob pena de ser acusado de renegar sua causa, que é a de todos os seus irmãos em crença, que não poderia abandonar sem cobardia. Entra, pois, forçosamente na luta, por maior repugnância que experimente; não é inimigo de ninguém, é verdade, mas tem inimigos que procuram esmagá-lo; é por sua firmeza, por sua perseverança e por sua coragem que se lhes imporá; suas armas são completamente diversas das dos adversários, também é verdade; mas não deixa de ser para eles, e apesar deles, um partido, pois não lhe teriam dado este título se não o tivessem julgado bastante forte para os contrabalançar.
Tais são os motivos pelos quais julgamos que o Espiritismo podia aceitar a qualificação de partido, que lhe era dado por seus antagonistas, sem que o tenha tomado por si mesmo porque era aceitar o repto que lhe era lançado. Pensamos que o podia, sem repudiar os seus princípios.