Nos domínios da mediunidade

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Capítulo IV

Ante o serviço


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Leve chamamento à porta provocou a saída de um dos companheiros da atitude de meditação, para atender.

Dois enfermos, uma senhora jovem e um cavalheiro idoso, custodiados por dois familiares, transpuseram o umbral, localizando-se num dos ângulos da sala, fora do círculo magnético.

— São doentes a serem beneficiados — informou-nos o orientador.

Logo após, um colaborador de nosso Plano franqueou acesso a numerosas entidades sofredoras e perturbadas, que se postaram, diante da assembleia, formando legião.

Nenhuma delas vinha até nós, constrangidamente.

Dir-se-ia que se aglomeravam, em derredor dos amigos encarnados em prece, quais mariposas inconscientes, rodeando grande luz.

Vinham bulhentas, proferindo frases desconexas ou exclamações menos edificantes, entretanto, logo que atingidas pelas emanações espirituais do grupo, emudeciam de pronto, qual se fossem contidas por forças que elas próprias não conseguiam perceber.

Atencioso, Áulus notificou:

— São almas em turvação mental, que acompanham parentes, amigos ou desafetos às reuniões públicas da Instituição, e que se desligam deles quando os encarnados se deixam renovar pelas ideias salvadoras, expressas na palavra dos que veiculam o ensinamento doutrinário. Modificado o centro mental daqueles que habitualmente vampirizam, essas entidades veem-se como que despejadas de casa, porquanto, alterada a elaboração do pensamento naqueles a quem se afeiçoam, experimentam súbitas reviravoltas nas posições em que falsamente se equilibram. Algumas delas, rebeladas, fogem dos templos de oração como este, detestando-lhes temporariamente os serviços e armando novas perseguições às suas vítimas, que procuram até o reencontro; contudo, outras, de algum modo tocadas pelas lições ouvidas, demoram-se no local das predicações, em ansiosa expectativa, famintas de maior esclarecimento.

Hilário, que recebia, surpreso, semelhantes informes, perguntou, curioso:

— Que ocorre, porém, quando os encarnados não prestam atenção aos ensinamentos ouvidos?

— Sem dúvida, passam pelos santuários da fé na condição de urnas cerradas. Impermeáveis ao bom aviso, continuam inacessíveis à mudança necessária.

— Mas este mesmo fenômeno se repete nas igrejas de outras confissões religiosas?

— Sim. A palavra desempenha significativo papel nas construções do espírito. Sermões e conferências de sacerdotes e doutrinadores, em variados setores da fé, sempre que inspirados no Infinito Bem, guardam o objetivo da elevação moral.

O Assistente meditou um instante e acrescentou:

— Entre os homens, porém, se não é fácil cultivar a vida digna, é muito difícil habilitar-se a criatura à morte libertadora. Comumente, desencarna-se a alma, sem que se lhe desagarrem os pensamentos, enovelados em situações, pessoas e coisas da Terra. A mente, por isso, continua encarcerada nos interesses quase sempre inferiores do mundo, cristalizada e enfermiça em paisagens inquietantes, criadas por ela mesma. Daí o valor do culto religioso respeitável, formando ambiente propício à ascensão espiritual, com indiscutíveis vantagens, não só para os Espíritos encarnados que a ele assistem, com sinceridade e fervor, mas também para os desencarnados, que aspiram à própria transformação. Todos os santuários, em seus atos públicos, estão repletos de almas necessitadas que a eles comparecem, sem o veículo denso, sequiosas de reconforto. Os expositores da boa palavra podem ser comparados a técnicos eletricistas, desligando “tomadas mentais”, através dos princípios libertadores que distribuem na esfera do pensamento.

Sorriu bem-humorado e prosseguiu:

— Em razão disso, as entidades vampirizantes operam contra eles, muitas vezes envolvendo-lhes os ouvintes em fluidos entorpecentes, conduzindo esses últimos ao sono provocado, para que se lhes adie a renovação.


Observando os irmãos retardados que se abeiravam da mesa num quase semicírculo, tive a ideia de usar o psicoscópio, de modo a examiná-los detidamente, ao que Áulus informou, prestimoso:

— Não será preciso. Bastará uma análise atenta para a colheita de resultados interessantes, de vez que os nossos amigos estampam no próprio corpo perispiritual os sofrimentos de que são portadores.

Notei que o Assistente não desejava alongar a conversação, decerto preparando-se para colaborar nos trabalhos próximos e, por esse motivo, aproveitei os instantes à nossa frente, especificando observações, junto aos companheiros menos felizes que se uniam estreitamente uns aos outros; entre a angústia e a expectação.

Pareciam envolvidos em grande nuvem ovalada, qual nevoeiro cinza-escuro, espesso e móvel, agitado por estranhas formações.

Reparei o conjunto; notando que alguns deles se mostravam enfermos, como se estivessem ainda na carne.

Membros lesados, mutilações, paralisias e ulcerações diversas eram perceptíveis a rápido olhar.

Talvez porque Hilário e eu nos demorássemos em atencioso exame, na posição de aprendizes em aula, um dos colaboradores espirituais da reunião acercou-se de nós e falou, cordial:

— Nossos irmãos sofredores trazem consigo, individualmente, o estigma dos erros deliberados a que se entregaram. A doença, como resultante de desequilíbrio moral, sobrevive no perispírito, alimentada pelos pensamentos que a geraram, quando esses pensamentos persistem depois da morte do corpo físico.

— Mas, adquirem melhoras positivas em reunião de intercâmbio? — indagou Hilário, espantadiço.

— Sim — esclareceu o interlocutor —, assimilam ideias novas com que passam a trabalhar, ainda que vagarosamente, melhorando a visão interior e estruturando, assim, novos destinos. A renovação mental é a renovação da vida.

Meditei na ilusão dos que julgam na morte livre passagem da alma, em demanda do Céu ou do inferno, como lugares determinados de alegria e padecimento…

Quão raros na Terra se capacitam de que trazemos conosco os sinais de nossos pensamentos, de nossas atividades e de nossas obras, e o túmulo nada mais faz que o banho revelador das imagens que escondemos no mundo, sob as vestes da carne!…

A consciência é um núcleo de forças, em torno do qual gravitam os bens e os males gerados por ela mesma e, ali, estávamos defrontados por vasta fileira de almas, sofrendo nos purgatórios diferenciados que lhes eram característicos.


Abeiramo-nos de triste companheiro, de macilenta expressão fisionômica, e Hilário, num impulso todo humano, perguntou-lhe:

— Amigo, como te chamas?

— Eu? — tartamudeou o interpelado.

E, num esforço tremendo e inútil para recordar-se de alguma coisa, ajuntou:

— Eu não tenho nome…

— Impossível!… — considerou meu colega, dominado de espanto — todos temos um nome.

— Esqueci-me, esqueci-me de tudo… — comentou o infeliz, desoladoramente.

— É um caso de amnésia a estudar — aclarou o companheiro da equipe de trabalho que visitávamos.

— Fenômeno natural? — interrogou Hilário, perplexo.

— Sim, pode ser natural, em razão de algum desequilíbrio trazido da Terra, mas é possível que o nosso amigo esteja sendo vítima de vigorosa sugestão pós-hipnótica, partida de algum perseguidor de grande poder sobre os seus recursos mnemônicos. Encontra-se ainda profundamente imantado às sensações físicas e a vida cerebral nele ainda é uma cópia das linhas sensoriais que deixou. Assim considerando, é provável esteja submetido ao império de vontades estranhas e menos dignas, às quais se teria associado no mundo.

— Céus! — clamou meu colega impressionado — é possível semelhante dominação depois da morte?

— Como não? a morte é continuação da vida, e na vida, que é eterna, possuímos o que buscamos.

Atento aos nossos estudos da mediunidade, observei:

— Se o nosso amigo desmemoriado for conduzido ao aparelho mediúnico, manifestar-se-á, acaso, assim, ignorando a identidade que lhe é própria?

— Perfeitamente. E precisará de tratamento carinhoso como qualquer alienado mental comum. Exprimindo-se por algum médium que lhe dê guarida, será para qualquer doutrinador terrestre o mesmo enigma que estamos presenciando.


Nesse momento, renteou conosco uma entidade em deplorável aspecto.

Era um homem esguio e triste, exibindo o braço direito paralítico e ressecado.

Atendendo-me ao olhar interrogativo, o companheiro, como quem não mais dispunha de tempo para o comentário fraterno, apenas me disse:

— Faça uma auscultação. Repare por si mesmo.

Acerquei-me do amigo sofredor.

Toquei-lhe a fronte, de leve, e registrei-lhe a angústia.

Nas recordações que se lhe haviam cristalizado no mundo mental, senti-lhe o drama interior. Fora musculoso estivador no cais, alcoólatra inveterado que, certa feita, de volta a casa esbofeteou a face paterna, porque o velho genitor lhe exprobrara o procedimento.

Incapaz de revidar, o ancião, cuspinhando sangue, praguejou, desapiedado:

— Infame! o teu braço cruel será transformado em galho seco… Maldito sejas!

Ouvindo tais palavras que se fizeram seguidas por terrível jato de força hipnotizante, o mísero tornou à via pública, sugestionado pela maldição recebida, bebericando para esquecer.

Cambaleante, foi vitimado num desastre de bonde, no qual veio a perder o braço.

Sobreviveu por alguns anos, coagulando, contudo, no próprio pensamento a ideia de que a expressão paternal tivera a força de uma ordem vingativa a se lhe implantar no fundo dalma e, por isso, ao desencarnar, recuperara o membro dantes mutilado a pender-lhe, ressecado e inerte, no corpo perispirítico.

Enquanto refletia, o nosso orientador reaproximou-se de nós e, percebendo quanto se passava, informou:

— É um caso de reajuste difícil, reclamando tempo e tolerância.

E, afagando os ombros do paralítico, acentuou:

— Nosso amigo traz a mente subjugada pelo remorso com que ambientou nele mesmo a maldição recebida. Exige muito carinho para refazer-se.

Sem despreocupar-me do tema que nos prendia a atenção, inquiri:

— Se esse companheiro utilizar-se da organização mediúnica, transmitirá ao receptor humano as sensações de que se acha investido?

— Sim — elucidou o Assistente —, refletirá no instrumento passivo as impressões que o possuem, nos processos de imanização em que se baseiam os serviços de intercâmbio.

Sorriu, bondoso, e acrescentou:

— No entanto, não nos percamos agora nos casos particulares. Cada entidade menos equilibrada de quantas se acham reunidas aqui traz consigo inquietantes experiências. Observemos de plano mais alto.

E conduziu-me à cabeceira da mesa, onde o nosso amigo Raul Silva ia começar o serviço de oração.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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