Sexo e destino
Versão para cópiaCapítulo VIII
Satisfazendo a recomendações de Félix, que nos esperava a cooperação, junto de Cláudio e Marina, demoramo-nos no Flamengo, ao pé do amigo que a consternação abatia.
Entregue a si mesmo, sem qualquer consolação humana, Nogueira refletiu e compreendeu. Havia lido bastante. Conversara o suficiente com Agostinho e Salomão. Não lhe cabia escusar-se à verdade. Recolhera a fé por misericórdia da Bondade Divina; entretanto, a Divina Justiça não poderia forrá-lo à solidão que ele mesmo plantara.
Represava-se-lhe o coração de saudades da filha que o túmulo escondera. Aquela quinzena de hospital unira-os em espírito para sempre. Ao lado de Marita, obtivera a luz da renovação. Doía-lhe pensar que não mais experimentaria o conforto de carregá-la, sustentá-la, socorrê-la…
Abatido, sentou-se e chorou.
A noite avançava e Márcia não aparecia.
Telefonou, discreto, para vizinhos de Dona Justa. A servidora, chamada por obséquio à residência de amigos, veio atender. Informou-se da desencarnação de Marita e lamentou não haver conseguido a notícia, antes, com o tempo necessário para assistir-lhe ao funeral. Esclareceu que a madama subira a Petrópolis, sem precisar o regresso. Dona Márcia alegara cansaço, depois da internação de Marina para tratamento, e avisara-a de que pretendia passar alguns dias na serra, ganhando forças. Ela, Dona Justa, segundo o combinado, comparecia, pela manhã, no apartamento, e folgava à tarde.
Nogueira perguntou pelo estabelecimento, onde se achava a filha doente; no entanto, a servidora respondeu com sinceridade que não sabia. Dona Márcia não lhe fornecera informações. Aliás, solicitava licença para inteirá-lo, sem a menor intenção de afligi-lo, de que julgava a patroa também esgotada. Parecia nervosa, enferma.
Cláudio agradeceu e tomou o catálogo telefônico.
Pediu, infrutiferamente, ligação para conhecida casa de repouso em Santa Teresa. E seguiu procurando pelo fio, até que na sexta pesquisa encontrou o que buscava. Enfermeira prestimosa, com quem Dona Márcia deixara endereço, respondeu de uma casa de saúde, localizada em Botafogo, notificando que Marina aí se hospedava. As visitas, no entanto, mesmo para os familiares, estavam proibidas. A moça andava em crise; sob a atenção dos médicos.
Mesmo na condição de progenitor, que ele fizesse a gentileza de ouvir a administração, antes de procurar pessoalmente avistá-la.
Cláudio acolheu-se à poltrona, a fim de pensar. Restava a casa dos Torres. Gilberto, com certeza; poderia elucidá-lo; entretanto, a figura do rapaz assomava-lhe à imaginação semelhante a bisturi que lhe retalhasse uma chaga mental. Rememorava a entrevista do Lido, em que lhe ilaqueara a boa-fé, e envergonhava-se. Meditou, meditou. Examinou-se sem compaixão para consigo, e acabou inferindo que, se quisesse realmente apresentar personalidade nova, não lhe cabia isentar-se das consequências que as passadas faltas lhe propunham:
Consolidado o raciocínio, não mais vacilou.
Recorreu ao fone com escassa esperança de ouvir o rapaz, já que o relógio assinalava mais de nove da noite, mas o moço atendeu.
Não obstante acanhado, Cláudio expressou-lhe o pesar pelo falecimento da genitora, ao mesmo tempo que lhe comunicava a perda de Marita.
Figurou-se-lhe Gilberto deprimido, torturado.
O filho de Nemésio confessava-lhe desconhecer não só a extensão do acidente, mas também o óbito. Decerto que, pelas provações da família, com a lenta agonia de Dona Beatriz e com a enfermidade de Marina, que logo se lhe seguiu, não tivessem Dona Márcia e a filha encontrado ocasião para referir-lhe a gravidade das ocorrências. Lastimava o sucedido e enviava pêsames. Prezara sempre em Marita uma irmã pelo coração. Consultado por Nogueira, explicou que Marina fora acometida por acessos de fúria. O facultativo de confiança admitira demência precoce, mas desistira da assistência. Entregara o problema a psiquiatras.
O diálogo prosseguiu.
Antecipando justificativas, Gilberto anunciou haver assumido novas resoluções, nos dias últimos. Quando no encontro de ambos, em Copacabana, estava, sim, decidido a casar-se mais cedo, desposar Marina e recolher-se à tranquilidade do lar, mas, apreensivo ao ver a moça doente qual se achava, o pai, embora reconhecido aos serviços que a jovem lhes prestara, impelira-o à mudança de rumo. O genitor, que se achava ausente em descanso restaurativo, usara franqueza. Não aprovaria o casamento, não considerava Marina suficientemente habilitada para as responsabilidades do matrimônio. Além disso, falara-lhe de “certas coisas” e aconselhara-o a sair do Rio. Sustentá-lo-ia em outra cidade, onde pudesse recomeçar estudos interrompidos. Ele, porém, Gilberto, compreendia a vida de outro modo e, à face das imposições paternas, sentia-se acabrunhado, vencido…
Cláudio aceitou as alegações com humildade e acentuou que ele era ainda muito jovem, que não devia opor contradita sos conselhos de Torres pai e sim continuar refletindo, de vez que casamento, em qualquer pessoa, reclama liberdade, consciência.. Tão sensatas e confortadoras observações formulou, pacificando-lhe o íntimo e clareando-lhe a compreensão para o trato com o próprio pai, que Gilberto se modificou, perante aquela brandura inesperada. Supunha ouvir um outro Nogueira, mais velho, mais amigo… Emocionado, agradeceu e chegou a pedir-lhe não o abandonasse. Verificava-se agora sozinho. O genitor era bom, generoso, mas homem de negócios. Cabeça cheia. Sentia necessidade de alguém que o inspirasse, que lhe estendesse as mãos. Estimaria encontrá-lo, ouvi-lo mais vezes.
Percebeu que Cláudio lhe falava em tom de lágrimas, agradecendo-lhe o apreço. Aquilo como que lhe insuflava confiança nova naquele homem com quem se entendera, dias antes, mas de modo imperfeito.
Nogueira, submisso, consultou acerca de Márcia. Provavelmente que, em se afastando para Petrópolis, a esposa lhe teria deixado o telefone. Gilberto confirmou. Dona Márcia, ao viajar, solicitara-lhe atenção para Marina. Se a menina piorasse, que fizesse o obséquio de chamá-la, incontinenti. E ao expressar-lhe semelhante recomendação, declarara que lhe passava a incumbência e não ao marido, por sabê-lo ocupado no hospital.
De posse das informações, Cláudio agradeceu de novo e repôs o fone no gancho. Em seguida, confiou-se à meditação. Pelo tom da conversa, o rapaz se alterara de todo. Em tudo o que expusera, media as frases. Cerimonioso, desencantado. E que teria desejado dizer com aquelas duas palavras “certas coisas”? Ele, Nogueira, sentia-se renova,do; entretanto, a experiência do pretérito constituía-lhe o fundo da grande transformação. Não ignorava que a filha se arriscava a dualidade perigosa, na aventura afetiva. Convencia-se de que algo de muito grave teria ocorrido. Era bastante maduro para não desconfiar de que pai ou filho houvesse apanhado algum flagrante desagradável. Deduzia que a jovem baqueara, caindo em abatimento, como quem achara nisso a deserção de si mesma. Pensou nela e compadeceu-se. Afinal, não se fizera crente para censurar. Aspirava a compreender, servir. Sabia agora que a obsessão provocava tragédias. E ele mesmo, que nunca auxiliara a filha, na edificação da vida íntima, não podia queixar-se. Cismou, cismou e, depois das dez, chamou a esposa.
Dona Márcia respondeu.
Interpelada, comunicou estar descansando, junto de pessoas amigas. Ciente da morte de Marita, confessou-se aliviada. Não a desejava sobrevivendo ao desastre, deformada como a vira. Alinhou comentários desairosos, fez chiste.
Pela inflexão com que se manifestava, o esposo reconheceu-a num dos dias mais infelizes. Sarcasmo em cada sílaba. Irritação à mostra.
Cláudio apequenou-se, rogou desculpas. Não queria interromper-lhe a excursão. Não conseguia, porém, sossegar-se quanto à filha doente. Se possível, ensinasse a ele o melhor caminho de visitá-la com urgência. Solicitava-lhe o nome dos médicos amigos. Esperava colher-lhes a opinião.
A palavra dele deslizava tão mansamente no fio que a interlocutora mudou de jeito. Amaciou-se. Informou que precisava completar informações com amigas, que ele, Cláudio, aguardasse um minutinho.
Transcorridos instantes breves, voltou participando que viria ao Rio, na manhã seguinte, a fim de conversarem. Guardava “certos assuntos” para tratar com ele, mas preferia falar-lhe de boca a boca. Que ele a esperasse no Flamengo. Chegaria cedo, de automóvel, apenas com o objetivo de vê-lo e retornar ao hotel serrano em que repousava.
Efetivamente, no dia imediato, antes das nove da manhã, logo após entender-se com Dona Justa, em matéria caseira, viu-se o bancário defrontado pela esposa.
Dona Márcia parecia regressar de outro país. Adereçada, sorridente. Os cabelos em penteado excêntrico realçavam-lhe a graça, remoçando-a inteiramente. Harmonizava-se a maquilagem com o róseo do vestido novo. O porte se lhe erguia nos sapatos de salto alto, com a esbelteza da cegonha jovem, quando caminha descuidada em campo livre. Exibia cores, destilava perfumes.
Contudo, a flor humana em que se metamorfoseara não escondia para nós as larvas que a carcomiam. Jazia Dona Márcia assessorada por pequena corte de vampirizadores desencarnados que lhe alteravam a cabeça.
Mesmo à nossa frente, que nos acostumáramos a identificá-la por matrona difícil, mas ajustada ao lugar que as conveniências lhe indicavam, surgia quase irreconhecível.
Metalizara-se-lhe a voz, o olhar fizera-se mais frio.
De entrada, cumprimentou o marido e Dona Justa com ademanes de protetora complacente.
Assustou-se Nogueira. Não compreendia. Padeciam em casa a provação de uma filha morta e outra enferma… Por outro lado, Márcia, pelo fio, anunciara-se esfalfada. De que maneira se amoldava a uma excursão, assim festiva? Instintivamente, recordou Gilberto preocupado com “certas coisas” e a própria esposa prometendo-lhe “certos assuntos” e, apreensivo, perguntava-se que sucessos ocultos se lhe vedavam ao coração…
A recém-chegada sentou-se, cruzando as pernas com desenvoltura juvenil, e, sem mais aquela, reportou-se à pressa que trazia.
Nogueira indagou por Marina.
Dona Márcia, evidentemente interessada em outros problemas, sintetizou, quanto pôde, a história da enfermidade, indicou o psiquiatra que respondia pelo caso, aludiu ao conforto de que a filha se rodeava na casa de saúde e exalçou a generosidade do senhor Torres, que não calculava sacrifícios para que lhe sobejasse assistência. Comentou largamente a nobreza do viúvo de Dona Beatriz, cuja grandeza de alma apenas agora — dizia, entusiasmada —, começava a conhecer. E, finalmente, propôs um ajuste de providências pelas quais se transferisse a menina para um sanatório em São Paulo, onde estagiasse, no tratamento devido, por alguns meses. Bastava que ele, Cláudio, concordasse. Nemésio, em sinal de gratidão da firma pelos serviços prestados por Marina, custearia todas as despesas.
Cláudio escutou, humilde, e obtemperou que a situação talvez não fosse tão grave, que a palavra “meses” o alarmava. Acreditava que a filha, conjugando medicação do corpo e da alma; lograria recuperar-se em menos tempo.
Argumentou, sensato. Demonstrou, sem afetação de virtude, que não lhes seria lícito abandoná-la, destacou que a proteção dinheirosa significava muitíssimo, principalmente naquela hora em que os cuidados exigidos por Marita lhe haviam esgotado as reservas, mas admitia que a filhinha conturbada reclamava deles carinho, dedicação.
Após enfileirar judiciosos apontamentos que a interlocutora recebia, contrafeita, levantou para ela os olhos súplices e convidou-a, com dignidade, a abraçar, junto dele, uma existência nova. Vida de harmonia, de construção recíproca. Sincero, confiou-lhe todos os propósitos diferentes que edificara naqueles dias de luta, dos quais emergira transformado. Descerrava-lhe o íntimo. Fizera-se espírita-cristão. Sentia-se outro homem. Participou-lhe que, entre ele e o passado, erigia-se a fé por barreira de luz. Aspirava, agora, à bênção do lar, à tranquilidade da família… Comprometia-se a adotar conduta reta, ser-lhe-ia companheiro leal. Não lhe constrangeria o ânimo a aceitar-lhe as ideias; no entanto, anelava mostrar-lhe quanto a amava… Disse-lhe que vinha orando, desde a véspera, rogando a Jesus o inspirasse, no sentido de revelar-se a ela abertamente, para que ela, Márcia, lhe perdoasse e o compreendesse… Concedia-lhes Deus o futuro à frente. Penitenciar-se-ia quanto aos erros cometidos, dispunha-se a testemunhar-lhe fidelidade, afeição…
A senhora, porém, aprumou-se de um salto, plantou as mãos na cintura, numa risada de escárnio, e zombeteou:
— Sim, senhor! o diabo, depois de velho, se fez ermitão!… sempre a mesma história!…
E aditou com ar de troça:
— Era só o que faltava! Você espírita!… Eu logo vi!.. Juro que no hospital você já estava nessa baboseira. Aquele jeito de conversar, quando Nemésio e eu fomos lá, aquele modo de tratar Marita!… Ora, ora… quem teria hipnotizado você dessa forma?!…
O marido, arrancado à esperança que alentava no sentido de se reconciliarem para uma experiência doméstica respeitável e batido na fé que principiava a entesourar, objurgou, francamente ofendido:
— Mas você conhece o Espiritismo?
Márcia, obsidiada, com a disposição de quem procura deixar o carreiro, trilhado desde muito, para arrojar-se a outro caminho, revidou, irônica:
— Perfeitamente, conheço sim! Quando Aracélia morreu, andei conversando nisso com amigas e acabei desistindo. Espiritismo é um movimento de pessoas, querendo sentar cachorros no banco e apanhar estrelas como se fossem laranjas!… Bobagem! Nós todos no mundo somos canalhas!… Eu sou, você é, os outros são!… Os espíritas me parecem cães querendo sentar na poltrona da falsa virtude. Asneira deles! Temos de rolar é no chão mesmo…
— Eu não penso assim…
— Pois se você pensa de maneira diversa e se é verdade tudo o que você me falou, é pena que a mudança chegue tão tarde!… Venho de Petrópolis, justamente para dizer a você que entre nós tudo está acabado… Agora, meu velho, faça a sua vida, que eu vou me arranjar…
E continuou alegando que, depois de sofrer tantos anos, naquele apartamento que apelidava por “minha gaiola”, iria fazer ninho certo. Esperaria tão somente as melhoras de Marina, a fim de promover o desquite. Se ele, Cláudio, não assinasse, que escolhesse rumo. Declarava-se farta. Queria liberdade, sossego, distância…
Nogueira escutava, triste.
Repunha no pensamento as instruções de Agostinho e Salomão, lembrava Marita, reconstituía na memória os textos lidos.
Sim, concluía mentalmente, aquele matrimônio destruído era obra dele. Recolhia o que semeara. Uma filha morta, outra doente e a esposa obsessa… Seara de espinhos para quem os plantara. Fitou Márcia, aplicada ao sarcasmo, e reconheceu que ambos eram comparáveis a dois náufragos na viagem do mundo, com a diferença de que ele aceitara refúgio no salva-vidas da fé, ao passo que ela preferia mergulhar no desconhecido. Por minutos amargos, ouviu-lhe, pacientemente, os remoques, até que o “homem antigo” ressurgiu nele.
Impossível aguentar tanto insulto — monologou de si para consigo. A doutrina restauradora que abraçara não se destinava a criar homens indignos. Doutrina de compreensão e benevolência, mas também de limpeza e respeitabilidade. Não se julgava habilitado a receber tanta injúria sem revolta. Indignou-se. Quis reagir, esbravejar, espancá-la.. Entretanto, ao querer deslocar a destra, a fim de agredi-la, a noção de responsabilidade acordou-se-lhe, de repente… Recordou o hospital e reviu na imaginação a pequena mão gelada que o saudava, num gesto de perdão, no momento do adeus… Os dedos submissos e frios da filha desencarnada estavam nas mãos dele, relembrando-lhe que devia perdoar como tinha sido perdoado… Súbita calma lhe tomou o coração e entrou em lágrimas copiosas…
Márcia divertiu-se. Destacou que não faria falta a um marido que se efeminara, tornando-se poltrão e choramingueiro. Afirmou que, mediante aquele espetáculo de covardia, estava decidida a não contar com Marina, refeita. Tomaria atitude. Nada mais tinha a ver com aquela casa. Chamou Dona Justa e avisou com o indicador em riste que mandaria buscar todos os seus pertences para serem alojados em casa de Selma, a companheira de infância que residia na Lapa. E, vociferando, colérica, estrondou a porta, atrás dos próprios passos, sem mais uma palavra para o esposo que permanecia na sala, esmagado de sofrimento.
Demorou-se Nogueira em casa, durante algumas horas, refazendo forças. A tarde, procurou Salomão, em Copacabana. Consolou-se ao vê-lo. Palestraram por momentos. Da própria farmácia, telefonou ao psiquiatra que a esposa nomeara.
O especialista ouviu, cortês. Sim, proporcionar-lhe-ia todas as facilidades para que se avistasse com a filha, no dia seguinte.
Cláudio agradeceu e, encerrando a ligeira conversação pelo fio, rogou a Salomão um minuto de entendimento em particular. Atendido, solicitou ao amigo para que o auxiliasse através da oração, em benefício da outra filha, que supunha obsidiada, relacionando-lhe o problema de modo sucinto.
Salomão confortou-o. Possuía companheiros diversos, dedicados à desobsessão. A todos solicitaria socorro, junto aos benfeitores que lhes supervisionavam as tarefas, no plano espiritual. A seu turno, consagrar-se-ia ao caso, imbuído da melhor confiança. Notando que o pai de Marita entremostrava o coração atenazado de angústia no semblante abatido, convidou-o ao café e, sentados em recanto ameno, permutaram confidências, observações, projetos, esperanças. Partilhariam atividades espirituais, seriam irmãos no trabalho, no ideal.
Nogueira retornou, aliviado, ao Flamengo, e, na manhã imediata, estava a postos, em Botafogo. No horário marcado, ganhou o recinto a que Marina foi trazida.
Afligiu-se em lhe verificando a depressão. Emagrecera. Desfigurara-se. Por fora, o alheamento de si mesma; entretanto, através dos olhos, despedia a alma incendiada de angústia.
Comovi-me, não apenas ao abraçá-la, mas também ao notar Moreira rente, esmerando-se na execução do que prometera.
Enquanto o amigo que se guindará à condição de enfermeiro me acolhia, fraterno, a jovem enleara-se ao pai numa explosão de lágrimas.
Sentaram-se.
A enfermeira deixou-os a sós e Marina perguntou pela mãezinha. Por que não viera, por que a desprezava? por quê? por quê?
Empenhou-se Nogueira em acalmá-la e fê-lo de tal modo que a menina, espantada, cobrou mais ampla lucidez. O pai dirigia-se a ela num tom que nunca ouvira. Vasculhava-lhe as fibras mais íntimas, lenindo, ajustando… Falou-lhe de forças imponderáveis à maioria das pessoas, reportou-se a Inteligências desencarnadas que se imanizam às criaturas em perturbação, agravando-lhes os desequilíbrios. Persuadiu-a quanto à obrigação de acatar as instruções médicas, participou-lhe que fora iniciado nos júbilos da prece, desde o acidente que lhes arrebatara Marita, de cuja desencarnação a inteirou com afetuosa cautela. Transmitir-lhe-ia oportunamente aa instruções que recebera de amigos, acerca da reencarnação, do sofrimento reparador, da obsessão e do intercâmbio espiritual. Estudariam juntos e acrescentou, piedoso: “Mesmo que Márcia não quisesse”. Que ela, Marina, guardasse paciência, calma, inspirando confiança naqueles que a tratavam. Dissesse a ele, pai renovado pela fé, o que mais a preocupava. Achava-se ali para alentá-la, entendê-la. Que se desabafasse, para que ele soubesse por onde começar. Nada lhe ocultasse, nada temesse. Queria vê-la robusta, feliz. Todas as palavras lhe escapavam da boca impregnadas de tanto carinho, e clareadas por tamanho amor, que ela se lhe aconchegou ao peito com mais devoção, lembrando alguém que se agarrasse a inesperada raiz ao escorregar na direção de queda fatal… Perguntou ao pai se ele algum dia chegara a ouvir vozes estranhas, se já divisara vultos que ninguém percebia. Cláudio acariciou-a, assegurando que lhe explicaria semelhantes fenômenos tão logo a visse refeita, insistindo, porém, para que o auxiliasse com as informações de que carecia, a fim de prestar-lhe o apoio necessário.
Foi então que a filha, implorando a ele não a condenasse e estimulada pelo sorriso bondoso com que era ouvida, descreveu para o genitor os caprichos femininos com que requestara Nemésio Torres. Ele, amadurecido, ela, quase criança; contudo, ensoberbecia-se ao reconhecê-lo chefe e vassalo. A princípio, os passeios alegres, o dinheiro a rodo, os afagos recíprocos, aos quais ela se entregava muito mais pela vaidade de impressioná-lo que por motivos de atração. Contou como Nemésio, cativo, deu para escravizá-la. Historiou a noite em que ele a embriagara de propósito, quando lhe despertou nos braços, dentro de uma casa rústica em São Conrado, que, até então, não conhecia… Desde essa época se lhe fizera companheira, entrando, a instâncias dele, para o serviço de Dona Beatriz, para que a tivesse sempre à mão… Apaixonara-se por ela, repetia-lhe declarações, aspirava a desposá-la, assim que a viuvez sobreviesse naturalmente. Mas Gilberto aparecera e, por mais lutasse contra si própria, não conseguira controlar-se. Desde o primeiro encontro, adivinhou nele o homem com que sonhava… Pintando as emoções ao vivo, com todas as tintas de realismo que o delírio lhe punha nas palavras, confessou que o provocara, afastando-o, deliberadamente, da irmã e, vingando-se de Nemésio, copiou-lhe a iniciativa… Numa noite de farra, impeliu-o a exceder-se no uísque e, ao tê-lo inflamado, conduziu-o, ela mesma, ao quarto de que dispunha no lar dos Torres, a título de fazê-lo descansar, para entregar-se a ele, sem qualquer noção de vigilância ou censura… Ao acordar, induzira-o a crer-se responsável pelo futuro… Passara, dessa forma, a dividir-se com habilidade entre um e outro, embora conservasse a indiferença por Nemésio transformada em aversão. Quanto mais se comunicava com o filho, mais detestava o genitor, até que a morte de Dona Beatriz precipitara os acontecimentos. Observando o chefe positivamente decidido ao matrimônio, apegara-se-lhe ao filho com loucura, a ponto de ser surpreendida por Nemésio, em situação desconcertante…
Nogueira escutava, compungido.
Detinha a impressão de tomar contacto com os familiares pela primeira vez, em toda a vida. Machucado ainda pelas considerações de Márcia, ignorava agora quais as feridas que mais lhe doíam na alma, se as que a insensibilidade da esposa lhe abrira no espírito, se as que lhe eram produzidas nos tecidos do coração pelos segredos da filha padecente. Enlaçou-a, porém, com mais ternura, e Marina, encorajada, repetiu que anelava libertar-se de Torres pai, ansiando casar-se com Gilberto, ser-lhe a esposa no lar, compreendê-lo, torná-lo feliz.
Cláudio prometeu cooperar, destacando, no entanto, a necessidade da saúde primeiro…
Contudo, o doloroso relatório não terminara.
Imprescindível sorvesse o cálice até à lia.
Em frases entrecortadas de soluços, Marina cientificou-o de que fora visitada, ali mesmo, por Nemésio, quatro dias antes; acentuou que o chefe se prevalecera da intimidade e lhe asseverara que não a cederia ao filho de modo algum, que a esperaria para as segundas núpcias e que manteria todos os compromissos formulados anteriormente, no sentido de enobrecê-la no casamento e beneficiar-lhe toda a família, se ela abandonasse o rapaz, que ele, na qualidade de pai, pretendia remover para o sul… Porque respondesse claramente que não renunciaria a Gilberto, implorando-lhe perdão e que a tratasse por filha, revoltara-se, ameaçando-a… Se o preterisse, matá-la-ia. Ela chorara, suplicara compaixão, assegurando que não tinha coragem de continuar fingindo por mais tempo… Amava Gilberto, queria sarar, viver com ele e por ele… Nemésio rira, mordaz, acentuando que ela lhe pagaria a desconsideração, que jamais lhe permitiria a felicidade junto daquele filho que passara a odiar e que, para humilhá-la, acintosamente, conquistara as atenções de Márcia, sem resistência, decidindo-se a levá-la para Petrópolis, em substituição dela mesma…
Cláudio ambicionava crer que a jovem tresvariava, mas a lembrança da esposa transtornada comprovava o que ouvia e, quanto a mim, recolhia de Moreira a devida confirmação. O enfermeiro, em breves palavras, deixara-me saber que chusmas de Espíritos perturbadores, após a desencarnação de Beatriz, lhe haviam arrebatado o marido, explorando-lhe as energias genésicas.
Nogueira percebeu a gravidade do problema; no entanto, ao término da entrevista, reconfortou a filha, descortinando-lhe paz e esperança à mente atormentada. Recomendou-lhe trabalho, confiança, paciência e controle, a fim de recuperar-se, mais depressa, e garantiu-lhe que se entenderia com Márcia e com ambos os Torres, para que os planos da felicidade futura fossem concretizados em harmonia.
Marina recebeu-lhe a despedida, a sorrir confortada, patenteando sinais de melhora, mas, em se revendo na rua, Cláudio entrou em prece, e, reconhecendo-se no prelúdio de provas amargas, comprimiu a destra de encontro ao peito alanceado, como quem trazia da visita espinhos de fogo a lhe requeimarem o coração.
(Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.)
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III Joao 1:2
Amado, desejo que te vá bem em todas as coisas, e que tenhas saúde, assim como bem vai à tua alma.
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Eclesiastes 1:2
Vaidade de vaidades! diz o pregador, vaidade de vaidades! é tudo vaidade.
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