Sexo e destino

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Capítulo X

Capítulo X


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Precedendo o descanso, entendi-me a sós com Félix, que me aprovou o desejo de continuar prestando assistência a Nogueira e à filha.

Cientificara-se o instrutor de todos os sucessos em curso, mas solicitava minudências. Ouviu-me a exposição, preocupado, e deduziu que as dificuldades de Cláudio e Marina atingiam o clímax. Necessário apoiá-los, socorrê-los. Mediante os compromissos em que se emaranhavam, impossível alinhar previsões.

O benfeitor falava sereno. Para mim, porém, muito fácil verificar-lhe o suplício oculto. De quando em quando, lágrimas lhe umedeciam os olhos, que ele, padrão de coragem, não chegava a derramar.

Mesmo assim, contendo a emotividade, sugeriu providências e articulou planos. Que eu voltasse, encetando a nova etapa de assistência, junto de Marina, em Botafogo. Apreciava em Moreira um cooperador diligente que o tempo ae incumbiria de valorizar; todavia, supunha trabalho complexo demais para ele sozinho o encargo de manter a jovem doente livre dos vampirizadores, cujo número aumentava com as atitudes inesperadas de Márcia, estimulando Nemésio a uma aventura que raiava pela demência. Que me reunisse, desse modo, a Moreira, alentasse Marina, estendesse os braços para Cláudio e, quanto nos fosse possível, amparasse Márcia e os dois Torres, sempre que nos propiciassem os meios para isso. Prometeu que nos acompanharia, confiando na Bênção do Senhor, que a tudo prevê e provê nas horas justas.

Compreendi. Félix sofria conformado. Chorava por dentro.


Acatando-lhe as instruções, no dia seguinte dispus-me ao retorno. Antes, porém, de empreender o regresso, porque me interessasse pelos assuntos de sexo e penalogia, refletindo nas enfermidades obscuras que enxameiam na Terra, o próprio Félix conduziu-me, de passagem, a pequeno palácio, localizado no centro da instituição. “Casa da Providência”, esse o nome com que o edifício é designado. Curioso foro do “Almas Irmãs”, onde dois juízes funcionam, atendendo aos petitórios formulados pelos integrantes da comunidade, com respeito aos irmãos reencarnados na esfera física.

De entrada, faceando com dezenas de pessoas que iam e vinham, Félix, sempre cumprimentado com apreço por todos os passantes, explicou-me que ali somente se organizavam processos de auxilio e corrigenda, relacionados sos companheiros destinados à reencarnação e aos que já se achassem no estágio físico, espiritualmente ligados aos interesses do instituto. Renascimentos, berços torturados, acidentes da infância, delitos da juventude, dramas passionais, lares periclitantes, divórcios, deserções afetivas, certas modalidades de suicídio tanto quanto moléstias e obsessões resultantes de abusos sexuais e uma infinidade de temas conexos são aí examinados, segundo as rogativas e sa queixas entregues aos pronunciamentos da justiça. A Casa da Providência apenas delibera em definitivo nos problemas que se limitem ao “Almas Irmãs”; contudo, os casos, em maioria, revelam derivações para outros setores. Nessa hipótese, as questões são aí discutidas, de começo, seguindo para, instâncias superiores. Ainda assim, os dois magistrados amigos e ele mesmo, Félix, que é constrangido pela força do cargo a estudar e informar todas as peças, uma por uma, não decidem só por si. Um conselho constituído por dez orientadores, seis companheiros e quatro irmãs, com méritos suficientes perante a Governadoria da cidade, opina, através de assembleias semanais, em todas as recomendações e diligências, aprovando-as ou contrariando-as, a fim de que as decisões não se comprometam em arbitrariedades. Alegou, talvez por humildade, que, em muitas ações, fora esclarecido muito mais pelos pareceres dos juízes e dos conselheiros que pelo próprio critério, o que lhe fornecia dobradas razões para respeitá-los. Clareando com mais segurança os informes iniciais, voltou a esclarecer que mais da metade dos autos tramitam na direção de autoridades do Ministério da Regeneração e do Auxílio que, aliás, primam pela rapidez nos despachos e provimentos.


No corpo do edifício, seguimos por vias interiores, no rumo do gabinete central.

Félix, que se achava ali unicamente para favorecer-me, não se atribuía o direito de penetrar, intempestivamente, no salão de audiências públicas, onde a massa de requerentes e querelantes se acomodava. Alguns talvez lhe dirigissem apelos pessoais, no intuito, embora vão, de pressionar os julgadores, inconveniência que era preciso evitar.

Em recinto sóbrio, o instrutor deu-me a satisfação de saudar o juiz Amantino, que se achava em serviço, acompanhado de cinco auxiliares. Ambiente digno, em que a direção e a subalternidade não se confundem, conquanto reunidas pela cordialidade na base do acatamento recíproco.

A chegada de Félix provocou afetuoso tumulto que ele próprio suprimiu, avisando que se tratava de contacto ligeiro. Apenas uma vista de olhos. E frisou que eu voltaria, mais tarde, com tempo bastante para engolfar-me no estudo.

Os colaboradores retomaram posição. Amantino, porém, pelo jeito, queria ofertar-nos alguns minutos de atenção, que era forçoso receber. Sentamo-nos.

Mais para corresponder à gentileza que pelo propósito de analisar de afogadilho os mecanismos da casa, que exigiam aturada consideração, perguntei pela percentagem dos companheiros que regressam, absolutamente irrepreensíveis, da existência terrestre, segundo as conclusões daquele templo de justiça, e o interpelado respondeu com humor que principiávamos o interrogatório manejando inesperada proposição. Elucidou, afirmando que em apontamentos fiscalizados de quase oitenta anos consecutivos, a média de irrepreensibilidade não excedia de cinco em mil, não obstante surgirem fichas honrosas de muitos que atingiam até mais de noventa por cem na matéria de distinção absoluta, o que, no “Almas Irmãs”, representa elevado grau de mérito.

Articulando novas inquirições, Amantino aclarou que, apesar da equidade nos julgamentos, prevalece o rigor no registro de todas as culpas e defecções dos reencarnados, para que não se afrouxe a disciplina; no entanto, os limites da tolerância, na Espiritualidade Superior, são mais amplos. Isso porque os árbitros e mentores não se valem exclusivamente dos textos, mas também dos princípios de compreensão humana que lhes palpitam nas consciências e, usando a própria consciência, o executor da lei não ignora as dificuldades que se antepõem às criaturas para que se conduzam em medidas de correção integral, no dédalo dos próprios sentimentos, quase sempre ainda tisnados pela eiva da animalidade primitiva.


Aproveitei o assunto e indaguei sobre o divórcio.

O juiz atendeu. Em se reconhecendo que todos os matrimônios terrestres, entre as pessoas de evolução respeitável, se efetuam na base dos programas de trabalho, previamente estabelecidos, seja em questões de benefício geral ou de provas legítimas, o divórcio é dificultado, nas esferas superiores, por todos os meios lícitos; contudo, em muitos casos, é permitido ou prestigiado, sob pena de transformar-se a justiça em prepotência contra vítimas de crueldades sociais que a legislação na Terra, por enquanto, não consegue remediar, nem prever. Surgido o problema, o companheiro ou a companheira, responsável pela ruptura da confiança e da estabilidade da união conjugal, passa à condição de julgado. A vítima é induzida à generosidade e à benevolência, através dos recursos que a Espiritualidade Superior consiga veicular, a fim de que não se frustrem planos de serviço, sempre importantes para a comunidade, compreendendo-se dentro dela os Espíritos encarnados e os desencarnados, cujas vantagens são recíprocas com a humildade e a benemerência de qualquer dos seus membros. Em razão disso, alcançam a Pátria Espiritual, na condição de enobrecidos filhos de Deus, as grandes mulheres e os grandes homens, justificadamente considerados grandes, diante da Providência, quando suportam, sem queixa, as infidelidades e as violências do parceiro ou da parceira de reduto doméstico, esquecendo incompreensões e ultrajes recebidos, por amor às tarefas que os Desígnios do Senhor lhes colocaram nos corações e nas mãos, seja no amparo moral à família consanguínea ou na sustentação das boas obras. Os que possuem semelhante comportamento dignificam todos os grupos espirituais a que se entrosam e venham dessa ou daquela religião, desse ou daquele clima do mundo, são acolhidos sob galardões de heróis verdadeiros, por haverem abraçado sem revolta os que lhes espancavam a alma; sem repelir-lhes a afeição e a presença. No entanto, os que patenteia,m incapacidade de perdoar as afrontas, conquanto se lhes lastime a ausência de grandeza íntima, são igualmente amparados, no desejo de separação conjugal que revelem, adiando-se-lhes os débitos para resgates futuros e concedendo-se-lhes as modificações que requeiram. Chegados a esse ponto, o homem ou a mulher continuam recolhendo o apoio espiritual que lhes seja preciso, segundo o merecimento e a necessidade de cada um, atribuindo-se tanta liberdade e tanto respeito ao homem quanto à mulher, no que tange à renovação de companhia e caminho, com as responsabilidades naturais que lhes decorram das decisões.

Assim acontece, ajuntou Amantino compreensivo, porque a Divina Providência manda exaltar as virtudes dos que amam sem egoísmo, sem desconsiderar o acatamento que se deve às criaturas de vida reta espoliadas no patrimônio afetivo. Os Executores das Leis Universais, agindo em nome de Deus, não aprovam a escravidão de ninguém e, em qualquer sítio cósmico, se propõem levantar consciências livres e responsáveis, que se elevem para a Suprema Sabedoria e para o Amor Supremo, veneradas e dignas, ainda mesmo que para isso escolham multimilenárias experiências de ilusão e de dor.


Impressionado, inquiri sobre a moral nos países terrestres, onde um homem guarda o direito de possuir várias esposas. Amantino, porém, destacou que a poligamia, mesmo aparentemente legalizada entre os homens, é uma herança animal que desaparecerá da face do mundo e que, em nos achando numa estância inspirada pelos ensinamentos do Cristo, não nos cabia olvidar que, perante o Evangelho, basta um homem para uma mulher e basta uma mulher para um homem. Ponderou que há provações e circunstâncias difíceis em que o homem ou a mulher são chamados à abstenção sexual, no interesse da tranquilidade e da elevação daqueles que os cercam, situação essa que não modificam sem alterar ou agravar os próprios compromissos.


Perguntei se a Casa providenciava auxílio, conforme a extensão dos erros. Ele redarguiu, bem-humorado, que o auxílio se verifica justamente pela extensão dos acertos. Quanto mais exato o Espírito reencarnado, na prática dos deveres que lhe competem, mais amparo recolhe nos dias obscuros em que resvale no desatino. Qualquer pedido de ajuda ali formulado, antes de tramitar, é analisado à luz de contabilidade segura, pelo documentário pertencente ao candidato para quem se requisita favor. Acertos como haveres, desacertos por débitos. Somados uns e outros, verifica-se, de imediato, até que ponto será possível ou aconselhável o atendimento, determinando-se a média do auxílio atribuível a cada petitório individual. Salientou, entretanto, que, nessa clara aplicação do direito, muitos requerimentos de socorro, nas diligências empreendidas, se transformam, automaticamente, em provisões de corrigenda, porque, se escasseassem créditos aos interessados, sobejando dívidas, o resguardo assumia a forma de emenda, o que, às vezes, irritava os solicitantes, sem que lhes fosse possível modificar o curso da justiça. Nesse sentido, as preces ou mesmo apenas as vibrações de alegria e reconhecimento de todas as criaturas encarnadas ou desencarnadas, beneficiadas pelos requeredores, funcionam à guisa de abonos e cauções de significado muito importante para cada um, tanto ali quanto em qualquer lugar, sublinhou Amantino, convincente. Creia ou não na imortalidade, qualquer pessoa é alma eterna. Por isso, independentemente da própria vontade, as leis da Criação marcam no caminho de todo Espírito os bens ou os males que pratique, devolvendo frutos na base da sementeira. (34:11) Efetuando-se o aperfeiçoamento moral de etapa em etapa e compreendendo-se a existência física por aprendizado da alma, entretecido de acertos e desacertos, com raras exceções a individualidade, em qualquer plano da vida, é apreciada e sustentada, acima de tudo, pelo rendimento de utilidade com que se caracterize no bem comum. Isso, destacou o juiz, é princípio geral da Natureza. Arvore benfeitora atrai a defesa imediata do pomicultor. Animal prestimoso recebe do dono cuidados especiais. Lícito que a pessoa, quanto mais valor demonstre para a coletividade, na Terra ou em outras paragens, mais devotamento receba das Esferas Superiores.

De nossa parte nenhuma objeção. Todas as ponderações articulavam-se ali em direito líquido, espontâneo.


Enunciei o propósito de saber como se operavam as audiências; todavia, diante da recusa de Félix, que não concordava em alterar o serviço, Amantino propôs se ouvisse, pelo menos, um caso,.ali mesmo no gabinete, para que mostra ligeira me fosse facultada.

O instrutor anuiu, solicitando, porém, a presença de dois sentinelas, capazes de guarnecerem a entrada.

Estranhei a exigência do amigo, cuja simplicidade me habituara a venerar; no entanto, o inesperado se encarregaria de sossegar-me.

Descerrada a passagem, uma senhora triste compareceu.

Assinalando a presença de Félix, esqueceu-se da autoridade de que Amantino se achava revestido e precipitou-se na direção do instrutor, prosternando-se de joelhos.

Félix acenou para os guardas e recomendou que a levantassem.

Apenas aí cheguei a entender que o mentor se preparara, de antemão, a rejeitar qualquer manifestação de idolatria, fugindo à lisonja que ele usualmente não suportava.

A recém-chegada, não obstante contrafeita, foi constrangida a falar de pé, mantida por aqueles que a sustentavam.

— Instrutor, tenha compaixão de nós! — chorou a mulher, entregando-lhe os autos que trazia — roguei proteção para minha filha e veja o resultado… Manicômio, manicômio… Coração de mãe concorda com isso? Impossível, impossível…

O benfeitor leu a peça e obtemperou:

— Jovelina, sejamos fortes e razoáveis. O despacho é justo.

— Justo! pois o senhor não conhece minha filha?

— Ah! sim — disse Félix com indefinível tristeza a lhe velar o semblante. — Iria Veletri… Lembro-me de quando se ausentou, há trinta e seis anos… Casou-se aos dezoito e se desligou do marido, homem digno, aos vinte e seis, unicamente porque não pudesse o companheiro sustentar-lhe a vocação para o luxo desmesurado. Em oito anos de ligação conjugal, nunca se portou à altura dos compromissos e praticou seis abortos… Abandonando o lar e afundando-se em prostituição, foi convidada, indiretamente, e por várias vezes, sob a inspiração de amigos daqui, para que se afastasse dos hábitos dissolutos, fazendo-se mãe respeitável de filhos que, embora nascidos do sofrimento, se lhe transformariam, com o tempo, em tutores e companheiros abnegados… Diversos tentames foram empreendidos… Iria, no entanto, expulsou todos os filhinhos, arrancando-lhes do seio o corpo em formação… Seis abortos até agora e, até agora, nada fez que lhe recomende a permanência do mundo… Não lhe consta da ficha o mínimo gesto de bondade à frente das semelhantes… Ela própria se entregou de bom grado aos vampirizadores que lhe desgastam as energias… E a nossa Casa não lhe opôs contradita à vontade de viver assim obsidiada, para que não continue convertendo o claustro materno em antro da morte…

E deixando entrever funda melancolia no olhar, rematou, enlaçando-a com paterna solicitude:

— Ah! Jovelina, Jovelina!.. Quantos de nós aqui teremos filhos amados, nos hospícios da Terra… O manicômio é também refúgio levantado pela Divina Providência para expurgar nossas culpas… Volte sos afazeres e honre a filha, trabalhando e servindo mais… Seu amor de mãe será junto de nossa Iria assim como a luz que remove as trevas!…

A requerente fitou os olhos do instrutor, olhos que lhe falavam de recôndito martírio moral, e agradeceu, engasgada de angústia, beijando-lhe a destra com humildade.

A sala retomou a feição própria, mas a entrevista não estimulou comentários.

Separei-me dos novos amigos e, a poucos passos, fora do edifício, despedi-me também de Félix. Mais algumas horas e entrei na clínica de nervosos, em Botafogo.

Marina, sob as atenções de Moreira, dormia, agitada.




(Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.)



André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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