Antologia Mediúnica do Natal
Versão para cópiaBilhete a Jesus
Senhor Jesus, enquanto a alegria do Natal acende luzes novas nos lares festivos, torno à velha Palestina, revendo, com os olhos da imaginação, a paisagem de tua vinda…
Roma estendia fronteiras no Nilo, no Eufrates, no Reno, no Tâmisa, no Danúbio, no Mar Morto, no Lago de Genesaré, nas areias do Saara. César “sossegava e protegia” os habitantes das zonas mais remotas, aliciando a simpatia dos príncipes regionais. Todos os deuses indígenas cediam a Júpiter, o dono do Olimpo, de que as águias dominadoras se faziam emissárias, tremulando no topo das galeras, cheias de senhoras e de escravos.
Lembras-te, Senhor, de que se fazia grande estatística, por ordem de Augusto, o Divino? Otávio, cercado de assessores inteligentes, intensificava a centralização no mundo romano, reorganizando a administração na esfera dos serviços públicos. As circunscrições censitárias na Judeia enchiam-se de funcionários exigentes. Cadastravam-se famílias, propriedades, indústrias. E José e Maria também se locomoveram, com os demais, para atender às determinações. A sensibilidade israelita poderia manter-se a distância do culto de César, resistindo ao incenso com que se marcava a passagem dos triunfadores, em púrpura sanguinolenta, mas, a experiência judaica, estruturada em suor e lágrimas, não se esquivaria à obediência, perante os regulamentos políticos. As estalagens, no entanto, estavam repletas e não conseguiram lugar.
Por essa razão, a estrela gloriosa que te assinalou a chegada, não brilhou sobre templos ou residências de relevo. Apenas a manjedoura singela te ofereceu conforto e guarida. Homens e mulheres faziam estatísticas minuciosas de haveres e interesses. Se o governo imperial decretava o recenseamento para reajustar observações e tributos, os governados da província alinhavam medidas, imprimindo modificações aos quadros da vida comum, para se subtraírem, de alguma sorte, às exigências. Permutavam-se cabras e camelos, terras e casas, reduzidos parques agrícolas e pequenas indústrias.
Haveria espaço mental para a meditação nas profecias? para cumprir o dever religioso, não bastava comparecer ao Templo de Jerusalém, nos dias solenes, oferecer os sacrifícios prescritos e prosternar-se ante a oferenda sagrada, ao ressoar das trombetas? Razoável, portanto, seria examinar os melhores recursos para burlar as requisições do romano dominador. A fração do povo eleito, que se aglomerava na cidade de David, lia os textos, recitava os salmos e tomava apressado conselho aos livros da sabedoria; entretanto, não considerava pecado matar o tempo em disputas e conversações infindáveis ou enganar o próximo com a elegância possível.
Por essa razão, Senhor, quem gastaria alguns minutos advogando proteção para Maria e José? Eles traziam a sinceridade dos que andam contigo, falavam de visitas dos anjos, de vozes do céu, e o mundo palestinense estava absorvido no apego fanático aos bens imediatos. Comentava-se, apaixonadamente, as listas e informações, alusivas a rebanhos e fazendas. As narrações do sonho de José ou da experiência de Zacarias, prefeririam noticiário referente à produção de farinha ou ao rendimento de pomares…
Todavia, para entregar à Humanidade a divina mensagem de que te fizeste o Depositário Fiel, não te feriste ao choque da indiferença. Começaste assim mesmo, na manjedoura humilde, o apostolado de bênçãos eternas. O Evangelho iniciou a primeira página viva da revelação nova na estrebaria singela. A Natureza foi o primeiro marco de tua batalha multissecular da luz contra as trevas.
E enquanto prossegues, conquistando, palmo a palmo, o espírito do mundo, os homens continuam fazendo estatísticas inumeráveis.
Aos censos de Otávio, seguiram-se os de Tibério, aos de Tibério sucederam-se arrolamentos de outros dominadores. Depois do poderio romano fragmentado, outras organizações autoritárias não menos tirânicas apareceram. Dilataram-se os serviços censitários em toda parte.
As nações modernas não fazem outra coisa além da extensão do poder, melhorando os gráficos que lhes dizem respeito.
Inventariavam-se na antiga Judeia ovelhas e jumentos, camelos e bois. Hoje, porém, Jesus, o arrolamento é muito mais importante. Com o aperfeiçoamento da guerra, o censo é vital nas decisões administrativas. Antes da carnificina, arregimentam-se estatísticas de canhões, tanques e navios, aviões, metralhadoras e fuzis. Enumeram-se homens por cabeça, no serviço preparatório dos massacres e, em seguida, anotam-se feridos e mutilados. Isso, nas vanguardas de sangue, porque, na retaguarda, o inventário dos grandes e pequenos negócios é talvez mais ativo. Há corridas de armamentos e bancos, valorização e desvalorização de bens móveis e imóveis, câmbio claro e câmbio escuro, concorrência leal e desleal, mercado honesto e clandestino, tudo de acordo com as estatísticas prévias que autorizam providências administrativas que regem o mecanismo da troca.
Nós sabemos que não condenas o ato de contar. Aconselhaste-nos nesse sentido, recomendando que ninguém deve abalançar-se a qualquer construção, antes de contas rigorosas, a fim de que a obra não permaneça inacabada. Entretanto, estamos entediados de tanto recenseamento para a morte, porque, em verdade, nunca esteve a casa dos homens tão rica e tão pobre, tão faiscante de esplendores e tão mergulhada nas trevas, tão venturosa e tão infeliz, quanto agora.
Desejávamos, Mestre, arrolar as edificações da fé, os serviços da esperança, os valores da caridade, contudo, somos ainda muito poucos no setor de interesse pelos sonhos reveladores e pelas vozes do Céu. Apesar disso, sabemos que os homens, fanatizados pela estatística das formas perecíveis, examinam os gráficos, de olhos preocupados, movimentando-se entre tabelas e números, mas erguem corações ao alto, amargurados e tristes, torturados pela sede de infinito…
Quem sabe, Senhor, poderias voltar, consolidando a tua glória, como o fizeste há quase vinte séculos? Entretanto, não nos atrevemos ao convite direto. As estalagens do mundo estão ainda repletas de gente negociando bens transitórios e melhorando o inventário das posses exteriores. Os governos estão empenhados em orçamentos e tributos. Os crentes pousam olhos apressados em teu Evangelho de Redenção e repetem fórmulas verbais, como os judeus de outro tempo, que mastigavam a Lei sem digeri-la. Quase certo que não encontrarias lugar entre as criaturas. E não desejamos que regresses de novo para nascer num estábulo, trabalhar à beira das águas, ministrar a revelação em casas e barcos de empréstimo e morrer flagelado na cruz. Trabalharemos para que a tua glória brilhe entre os homens, para que a tua luz se faça nas consciências, porque, em verdade, Senhor, que adiantaria o teu retorno se a estatística das coisas santas não nos oferece a menor garantia de vitória próxima? como insistir pela tua volta pessoal e direta se na esfera dos homens ainda não existe lugar onde possas nascer, trabalhar e morrer?
(.Humberto de Campos)
Essa é a 9ª lição do livro “Antologia Mediúnica do Natal”, editado pela FEB em 1966.
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