Quem é quem na Bíblia?
Autor: Paul Gardner
Senhor e senhor: Os nomes e o Nome
O Antigo Testamento usa dois substantivos para “Deus”: um expressa “o Deus único e transcendente” (Heb. “El”: Is 40:18) e o outro “Deus na plenitude dos seus atributos divinos” (Heb. “Elohim”). De qualquer maneira, contudo, “Deus é um nome genérico para definir um certo Ser”, assim como o termo “homem” (Heb. Adam 1sh). O vocábulo “Senhor” tem dois significados: traduz o hebraico “Adonai”, que significa “soberano” (Is 6:1; cf. v. 5), e descreve uma certa qualidade do Ser divino, ou seja, Ele reina e governa como um “diretor executivo”, absoluto em sua supremacia sobre as pessoas e os eventos. Por outro lado, Senhor (em algumas versões com letras maiúsculas — SENHOR) traduz o nome próprio Yahweh. É como se Deus fosse seu sobrenome. Senhor representa sua posição ou status na ordem das coisas e “Yahweh” é seu nome pessoal ou próprio. À medida que o relacionamento entre o grande Deus e o seu povo desenvolvia-se, Ele esperava ser reconhecido como Yahweh.
Yahweh e SENHOR
Mesmo no próprio texto do Antigo Testamento, claramente percebemos as hesitações quanto ao uso do nome divino. No Salmo 14:2 aparece o termo “o Senhor” e no 53:2 utiliza-se o nome “Deus”! Geralmente isso é entendido como uma tendência dos escribas de evitar o uso do vocábulo “Yahweh”, considerado muito sagrado. Entre os testamentos, quando o judaísmo cresceu, esse processo se fortaleceu; quando os sinais massoréticos (sinais de vocalização) foram acrescentados aos textos hebraicos (século V d.C. em diante), tornou-se impossível, mesmo por acidente, pronunciar esse nome, pois as consoantes YHWH receberam as vogais apropriadas para serem pronunciar-se “Adonai”. Desta maneira, os leitores nas sinagogas, por exemplo, quando chegavam ao nome de Deus, na verdade substituíam o termo por “Senhor”; os tradutores da Bíblia em geral seguiram esta prática e distinguiram Yahweh (SENHOR) de Adonai (Senhor). Para acrescentar mais um elemento nesta questão complicada, se tentarmos pronunciar as consoantes YHWH com as vogais da palavra Adonai (em hebraico), surgirá algo semelhante a “Jeová” — um termo que na verdade nunca existiu!
Nomes compostos
Yahweh (“SENHOR”) é largamente utilizado em combinações com os nomes de Deus e outros termos divinos. Em Gênesis 2:4-3:23 encontramos “o SENHOR Deus” 20 vezes. “Deus” aqui é o plural “Elohim”, ou seja, Deus na plenitude de seus atributos eternos. Desta maneira, a composição significa “Yahweh em toda sua plenitude como Deus”. Isaías 50:7-9 e muitas outras referências falam sobre “o Senhor Deus”, que no hebraico é “Adonai Yahweh” e quer dizer Yahweh em sua soberania. O salmo 50:1 tem uma composição tripla: “O Senhor Deus Todo-poderoso”, “El Elohim Yahweh”, e significa Yahweh, o único Deus transcendente e pleno de divindade. A composição tripla em Isaías 1:24: “O Senhor, o SENHOR dos Exércitos, o Poderoso”, às vezes simplesmente usada como “o SENHOR dos Exércitos”, é abundante em todo o Antigo Testamento. É bem provável que “dos exércitos” tenha um significado de substantivo usado como aposto junto com Yahweh, “Yahweh, que é Exército”. Certamente este é o seu significado conforme aparece nos profetas: Yahweh, que não simplesmente possui, mas Ele próprio é a fonte de todo poder concebível. Embora a maioria das versões traduza como “SENHOR Poderoso”, a expressão “o SENHOR Onipotente”, levemente mais enfática, seria preferível.
Desenhando o mapa
Emergindo das páginas da Bíblia, percebemos um padrão distinto concernente ao nome divino.
As bases
Êxodo 6:2-3 é uma linha divisória do nosso mapa. Neste ponto, Deus disse a Moisés: “Mas pelo meu nome, o SENHOR, não lhes fui conhecido”. O livro de Gênesis está repleto de referências ao “SENHOR”, e alguns tentam resolver o problema propondo que existem duas correntes diferentes de tradições em nossas Bíblias: de acordo com uma delas, o nome divino era conhecido desde os tempos remotos (Gn 4:26); de acordo com a outra corrente, o nome só foi revelado nos dias de Moisés. A solução, entretanto, é mais simples e nasce a partir de uma leitura mais cuidadosa de Gênesis. Em Êxodo 6:2-3 a ênfase é a revelação do caráter de Deus. “Apareci (me revelei) a Abraão...como (no caráter de) o Deus Todo-poderoso (El Shaddai), mas (no caráter expresso) pelo meu nome, o SENHOR (Yahweh), não lhes fui conhecido...”. Isto é precisamente o que encontramos em Gênesis: o Nome é conhecido como uma designação de Deus, mas onde quer que haja uma revelação do caráter divino existe uma substituição de Yahweh por El Shaddai ou algum dos outros títulos patriarcais (veja a seguir). Gênesis 17:1 é um exemplo desses: “Apareceu-lhe o SENHOR e lhe disse: Eu sou o Deus Todo-poderoso (El Shaddai)”.
Moisés, então, teve o privilégio de apresentar o significado do nome divino, Yahweh, para Israel, e o fundamento foi estabelecido em Êxodo 3:13-15. Ele era um homem cheio de escusas. Não desejava retornar ao Egito e tentou esquivar-se de todas as maneiras. Sua segunda desculpa foi a ignorância. Visualizou que, quando chegasse ao Egito, seria confrontado com a pergunta: “Qual é o nome do Deus que enviou você?” O próprio Moisés não perguntou “ao Deus dos pais” qual era seu nome, mas sabia que de alguma maneira os hebreus lhe fariam esta pergunta. Será que a interrogação: “Qual é o seu nome?” poderia significar: “Que revelação você traz do nosso Deus?”. O nome de uma pessoa na Bíblia muitas vezes é uma expressão de seu caráter (1Sm 25:25!). Porventura, Moisés sabia que os hebreus guardavam um nome secreto para seu Deus, o qual eles precisavam conhecer, se desejassem ser ouvidos? Sua escusa é tão fascinante quanto misteriosa; mas, de qualquer maneira, é uma súplica por informação, à qual Deus respondeu: “EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós”. “Eu sou” é a primeira pessoa do verbo “ser” e “Yahweh” é a terceira do singular. Deus refere-se a si mesmo como “Eu Sou”; nós olhamos para Ele e dizemos: “Ele é”. Alguns eruditos entendem o verbo aqui como a forma “causativa” no hebraico: “Eu faço acontecer/Ele faz acontecer” e, como veremos, isso deve estar correto e não altera o sentido básico do nome. No hebraico, o verbo “ser”, embora expresse também existência (Eu sou/Eu existo), com mais freqüência expressa uma presença ativa: Eu sou/Eu estou ativamente presente. Em si mesma, essa ideia não nos diz muito sobre o possuidor do nome, mas em Êxodo a ideia está ligada primeiro à revelação de Deus a Moisés (Ex 3:4) e depois à atividade pessoal do Senhor, que conduz seu povo para fora do Egito (Ex 5:12). É por meio desta “presença ativa” nos eventos do Êxodo que o SENHOR revela quem e o que Ele é. Por esta razão, mesmo que a expressão signifique “Eu faço acontecer”, a situação essencial não é alterada, pois ainda são eventos do Êxodo imediatamente “ocasionados”, nos quais a revelação de Deus dada a Moisés em palavras claras é confirmada na ação. Numa palavra, portanto, Yahweh é o Redentor (Ex 6:6-7).
Antecedentes: o Deus de Abraão, Isaque e Jacó
Abraão, Isaque e Jacó certamente chamaram Deus de “El”, e adicionaram outra palavra descritiva para formar um nome composto. Assim, aprendemos sobre “El Elyon” (“Deus Altíssimo”: Gn 14:18); “El Roi” (“o Deus que me vê”: Gn 16:13); “El Shaddai”(“Deus Todo-poderoso”: Gn 17:1; Gn 28:3; Gn 35:11; Gn 43:14; Gn 48:3; cf. 49:25); “El Olam” (“o Deus Eterno”: Gn 21:33); “El Betel” (“o Deus de Betel”: Gn 31:13); e “El, Elohe Israel” (“Deus, o Deus de Israel: Gn 33:20). Esses, porém, não são “muitos deuses e muitos senhores”. O Deus que se revelou em Betel, por exemplo, anunciou a si mesmo como Yahweh, o Deus dos antepassados (Gn 28:13), chamado de Yahweh (v. 16) e Elohim (vv. 17,20) e, em Gênesis 48:3, identificado como “El Shaddai”. Existem muitas outras identificações cruzadas semelhantes.
Fundamentalmente, os patriarcas receberam o conhecimento de Deus por meio da revelação. Às vezes era por meio de uma palavra direta do SENHOR (Gn 16:13; Gn 17:1; Gn 31:13); em outras ocasiões, o conhecimento de Deus era adquirido por meio da experiência: quando Abraão se encontrou com Melquisedeque, imediatamente reconheceu o “Deus Altíssimo” como Yahweh (Gn 14:22); ou quando Abraão foi chamado por Abimeleque, rei de Gerar, para estabelecer uma aliança perpétua com ele, parece que a experiência abriu os olhos do patriarca para a natureza imutável de seu Deus (Gn 21:31-33). O texto de Êxodo 6:2, entretanto, certamente está certo em destacar El Shaddai como a revelação preeminente de Yahweh para os patriarcas. Infelizmente o significado de “Shaddai” permanece incerto; entretanto, onde as traduções falham, o uso prático proporciona tudo o que precisamos (veja Abraão). As referências dadas acima revelam El Shaddai como o Deus que faz as promessas (especialmente a concessão de terra e descendentes, centrais na aliança patriarcal), o Deus que intervém nas situações onde as forças humanas estão exauridas (cf. Gn 17:1 — “Abraão tinha noventa e nove anos de idade”) e age com poder e um propósito transformador (Gn
5. — não mais... Abrão, mas Abraão”). É o Deus que é capaz, quando nós somos incapazes. Era desta maneira que os patriarcas conheciam Yahweh. O nome divino não tinha ainda, em si mesmo, nenhum significado para eles. Porventura houve uma preparação mais adequada da revelação vindoura do que esta rica teologia em torno de El Shaddai?
Revelação posterior
A seção acima, intitulada “Antecedentes”, explorou os fundamentos mosaicos apenas para afirmar que no Êxodo, por meio de palavras e obras, Yahweh revelou-se como o Redentor. Agora, avançaremos sobre esta base.
O título “Redentor” (Ex 6:6) é extremamente importante e estava destinado a tornar-se o elemento principal no conhecimento que Israel tinha do Senhor (Sl 74:2; Sl 106:10; Sl 107:2; Is 41:14; Is 43:14; Is 44:6; Is 47:4-49;7, 26; 54:5-8; 59:20; 63:16; etc.). Basicamente, a palavra tem o sentido de relacionamento e de pagamento de um preço. O “remidor” (heb. go”el) era o parente mais próximo que tinha o direito de se levantar em favor de um parente desamparado, assumia todas as suas necessidades sobre si, como se fossem dele próprio, e pagava, dos seus próprios recursos, qualquer despesa que fosse requerida pela situação. O vigor e o dinamismo deste termo são ilustrados pelo seu uso da expressão “vingador do sangue” (Dt 19:6-12; etc.); sua dimensão de pagar um preço é vista em Levítico 25:25;27:13-31; Sl 49:7-8; Is 43:1-3; etc.; sua generosidade é vista na história de Boaz e Rute (Rt 2:20; Rt 3:9-12, 13;4:1-4,6,8,14). No livro de Êxodo, o Parente próximo divino infligiu aos inimigos de seu povo a morte que causaram injustamente (cf. Dt 19:16-19), apontou o preço de sangue da redenção deles (Ex 12:3), identificou-se com suas necessidades (Ex 3:7-8), guiou-os pelo caminho (13 21:22), alimentou-os no deserto (16; 17), levou-os sobre asas de águia para si mesmo (19:4); resumindo, tomou sobre si todo o trabalho da salvação, desde o começo até o final e fez isto por amor daqueles a quem se aliou como o Parente mais próximo.
Tudo isso é resumido na descrição recorrente “Yahweh, que te tirou da terra do Egito” (Ex 20:2; etc.), e é a revelação fundamental de Deus no Antigo Testamento.
O Êxodo e a Bíblia
Conforme vimos, há uma progressão através de Gênesis e Êxodo, à medida que a revelação de Yahweh como El Shaddai preparou o caminho para a revelação plena do nome divino, por meio de Moisés. Conforme veremos mais claramente, o clímax da revelação mosaica foi a Páscoa; de maneira que, em Êxodo, duas grandes verdades são reunidas: a revelação do nome divino e a provisão do Cordeiro de Deus. É precisamente neste ponto que o Novo Testamento também começa. Cada um dos três primeiros evangelhos move-se através dessas preliminares essenciais e coloca o foco no batismo do Senhor Jesus. Em Mateus 3:13-17, quando Cristo se aproximou do Batista nas águas do rio Jordão, a primeira reação de João foi reverter seus papéis: “Eu preciso ser batizado por ti, e vens tu a mim?” Até aquele momento, o Batista não sabia que o Senhor Jesus era o Messias (Jo 1:31-33); suas palavras eram apenas um elogio ao caráter do primo — ou seja, ali estava um ser humano que não precisava submeter-se ao batismo de arrependimento. O Senhor Jesus, entretanto, o corrigiu: “Pois assim nos convém cumprir toda a justiça” — quer dizer, “Somente desta maneira cumpriremos toda a vontade justa de Deus”. De que maneira? Por meio do Justo aceitando o batismo do arrependimento, a fim de se identificar voluntariamente com os pecadores e ser “contado entre os transgressores” (Is 53:12).
Foi neste ponto que o céu (de acordo com a vívida expressão de Marcos) foi aberto (Mc 1:10; cf. 15:
38) como se o próprio Deus não pudesse mais se conter, mas tivesse de, naquele momento de identificação com o homem pecador em sua carência, não apenas autenticar a identidade de Jesus como seu único Filho e revesti-lo com o Espírito Santo, mas revelar pela primeira vez o significado pleno do nome divino — a Santa Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Foi em conseqüência do que viu e ouviu naquele momento que João Batista, mais tarde, apontou Jesus como o “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, “o Filho de Deus” (Jo 1:35).
Duas verdades importantes decorrem disto: uma quando observamos o passado e a outra quando contemplamos o futuro. Quando olhamos para trás, para o Antigo Testamento, vemos que o Deus revelado ali como Yahweh, o SENHOR, não é o “Deus Pai”, mas sim a Trindade incógnita. O que foi concedido a Moisés para declarar aos israelitas era uma verdade eterna (Ex 3:15): Yahweh é o Redentor; mas esta não é toda a verdade: o pleno significado do nome e a obra completa da redenção pertencem ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Nenhuma pesquisa, por mais exaustiva que seja, descobriria no Antigo Testamento que Yahweh é a Trindade. Com certeza, Ele não é um único “Um”, mas uma unidade diversificada; é o “Yahweh dos Exércitos” em quem podemos ver a Palavra ativa (Sl 33:6), o Espírito Santo vivo (Is 63:10-14), o Anjo da graça (Gn 16:7) e muitos outros aspectos da natureza divina. Assim, quando Moisés juntou todas as partes e componentes do Tabernáculo, ele “veio a ser um todo” (Ex 36:13), ou seja, uma unidade de muitas facetas, uma diversidade de itens transformados numa unidade. Lemos em Deuteronômio 6:4: “Ouve, ó Israel: O SENHOR nosso Deus é o único SENHOR”: todos os “exércitos” da infinita natureza divina formavam uma unidade. O Novo Testamento, entretanto, como um projetista que acerta o foco de uma figura — faz um ajuste final na revelação progressiva do SENHOR e descobrimos que a diversidade essencial, na unidade do Deus eterno, são as figuras do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Quando olhamos para frente, no NT, descobrimos que, assim como no AT a natureza divina apresentou-se como Yahweh, há um ponto especial onde a Trindade é revelada e encontra-se conosco: Jesus Cristo é o SENHOR. O nome divino, Yahweh, foi transferido para a tradução do Antigo Testamento em grego como “Senhor” (Kurios) e é exatamente este termo que o Novo Testamento usa, acima de todos os outros, para designar Jesus. Ele é “o Senhor (kurios) Jesus” — Aquele que a palavra do Novo Testamento deve evitar, se não tenciona atribuir a Ele sua estatura plena e dignidade, como o Deus eterno. É neste espírito que Filipenses 2:9-11 faz eco com Isaías 45:22-25 e traz toda a Bíblia a uma unidade na revelação de Deus, na pessoa do nosso Senhor Jesus Cristo.
Quem é o SENHOR?
A pergunta feita pelo Faraó, com visível desprezo (Ex 5:2), agora é repetida com reverência e uma mente inquiridora. Tentamos desenhar uma mapa da maneira pela qual a Bíblia desenvolve o significado do nome divino. Podemos agora estabelecer uma definição mais precisa?
“O SENHOR fez os céus” (Sl 96:5)
Em Gênesis 1:1-2:3 o nome Deus (Elohim) é usado para Criador. Significativamente, apenas na história do início da humanidade sobre a Terra (Gn 2:4ss; veja Jardim do Éden e Criação) o nome Yahweh é usado, ou seja, “O SENHOR Deus”, pois já temos mencionado que “Yahweh” é um nome relacional, isto é, o Deus que ainda se revelaria como o Redentor, o Parente mais próximo. Como, porém, o relato do Antigo Testamento olha para trás, afirma que este Criador era de fato o SENHOR.
No Antigo Testamento, há uma “Criação Quadrilateral”:
(a): O SENHOR originou todas as coisas: o céu, a terra e a humanidade (Is 40:26; Is 45:12-18). O Salmo 33:6-9 (“pela palavra do SENHOR”) significa que toda a obra da criação procedeu diretamente dele e foi uma expressão de sua vontade.
(b): O SENHOR mantém todas as coisas em existência. Isaías 40:28; ías 42:5; Amós 4:13, todos esses textos usam o particípio do verbo “criar”, a fim de esclarecer que a obra do Criador não foi somente uma ação terminada no passado, mas é também uma operação contínua (cf. Jo 5:17). Isto se aplica aos aspectos físicos da criação, que incluem o componente humano (Is 42:5), as forças invisíveis (Am 4:13) e, de fato, até mesmo cada evento na História (Is 41:20), a qual, com toda a sua complexidade de momentos de paz e conflitos, está constantemente nas mãos criadoras de Deus (Is 45:7).
(c): O SENHOR controla todas as coisas em operação. Esta ideia é apresentada dramaticamente em Isaías 54:16 — a manufatura e a utilização das armas de destruição estão sob seu controle, como Criador. É típico da Bíblia marginalizar a segunda causa desta maneira: reconhece o trabalho do ferreiro e do assolador, mas dirige o olhar através deles para o soberano Criador, que está por trás de tudo. Em todos os eventos, diante de todas as pessoas, é com Ele que nos entenderemos; nossa obrigação é viver pela fé nele, não por meio da astúcia com a qual manipulamos o sistema e puxamos os cordões que movimentam as causas secundárias.
(d): O SENHOR dirige todas as coisas para seu destino determinado na futura criação de novo céu e nova terra, com seu novo povo purificado (Is 4:2-6; Is 65:17-25).
“Santo, Santo, Santo é o SENHOR” (Is 6:3)
O Salmo 145 oferece uma das mais ricas coletâneas de atributos divinos em toda a Bíblia e atinge seu clímax (v. 21) com a expressão “seu santo nome”. Este adjetivo (santo) é usado para descrever seu nome mais do que todos os outros (“glorioso”, Sl 72:19; “agradável”, Sl 135:3) juntos. Desde que “nome” é uma expressão do caráter, isto quer dizer que o SENHOR é Santo no âmago da essência de seu ser.
Como a palavra “santo” denota “separação”, o Senhor está “separado” da nossa esfera e pertence a outra. Gênesis 38:21, de maneira curiosa, ilustra perfeitamente esta ideia: “prostituta cultual” literalmente é “mulher santa”. A garota em questão tinha-se separado para o serviço do deus a quem servia e pertencia à esfera de realidade dele; era “separada”. Devemos, é claro, desconsiderar o fato de que, na Bíblia, o serviço que ela oferecia era profano e concentrar-nos na posição que ocupava, no mundo ao qual passou a pertencer, e não no que fazia. Da mesma maneira, o SENHOR pertence à sua própria e única esfera de realidade: ele é Santo. Isaías, porém, estabelece esta santidade no verdadeiro contexto bíblico: a santidade moral que exclui, expõe e condena os pecadores (Is 6:4-5).
A canção dos serafins: “Santo, santo, santo” usa o método hebraico da repetição para expressar um superlativo (2Rs 25:15, “ouro...prata”; literalmente é “ouro, ouro...prata, prata”, isto é, “o mais puro ouro...a mais fina prata”) ou uma ideia abrangente (Dt 16:20 “justiça, e só a justiça”, literalmente “justiça, justiça”). A expressão tripla de Isaías 6:3 é o único lugar no Antigo Testamento em que uma qualidade é “exaltada pelo poder de três”, para expressar sua natureza super-superlativa. Nada mais descreve o caráter divino único da santidade moral de forma tão distinta e satisfatória.
É claro, porém, que, quando se nota que em Isaías 6 o SENHOR é revelado numa pureza moral tão absoluta que nenhum pecador pode resistir à sua presença ou unirse ao seu louvor, um terceiro fator experimentado pelo profeta não pode ser omitido: foi da própria presença do SENHOR que um serafim voou para ser o ministro da expiação, da purificação e da reconciliação (Is 6:7). O Santo é também o Salvador.
“O SENHOR vosso Deus fez aliança conosco” (Dt 5:2)
“Aliança” significa promessa e em particular refere-se à relação de pactos realizados, que começaram com Noé e passaram por Abraão e Moisés (veja Aliança).
Noé pertencia a uma raça de homens ímpios (Gn 6:5) que entristeceram ao SENHOR (v. 6) e mereceram a morte (v. 7). “Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor” (v. 8). Conforme é argumentado no artigo sobre Noé, o significado desta tradução perfeitamente exata pode ser colocada ao contrário: “A graça achou Noé”. Numa atitude de favor não merecido, o Senhor escolheu este pecador perdido para a salvação e, quando o Dilúvio merecido chegou, o Senhor prometeu “estabelecer a aliança” (v. 18). Assim, a aliança com Noé é uma promessa de Deus, motivada pela graça que concede livramento do juízo divino. Quando Noé saiu da arca, como o homem da aliança, instintivamente voltou-se para o Senhor, numa dedicação agradecida (Gn 8:20), expressa na oferta de um holocausto, ao qual o SENHOR respondeu com a declaração da lei, para que Noé sempre obedecesse (Gn 9:1-7).
Quando chegamos ao pacto com Abraão, estes mesmos [três] aspectos estão presentes: Aliança, Lei e Sacrifício. Em Gênesis 15:1-7, ele recebeu a promessa do pacto em sua primeira definição: descendentes inumeráveis e a possessão de uma terra. Seguindo o comando do SENHOR, preparou o sacrifício da aliança (Gn 15:8-17) e o SENHOR, como o promotor do pacto, passou entre as carcaças dos animais e tomou sobre si mesmo (cf Jr 34:18-20) todas as responsabilidades e penalidades da aliança. “Naquele mesmo dia”, diz Gênesis 15:18 (literalmente), “fez o Senhor uma aliança com Abrão”. A inauguração, entretanto, foi seguida pela confirmação e ampliação: em Gênesis 17:1-2, o SENHOR apareceu novamente, impôs sobre Abrão a lei geral da vida patriarcal (v. 1) e reafirmou a aliança; em Gênesis 17:2 o verbo é diferente de Gênesis 15:18, a fim de significar literalmente: “Firmarei a minha aliança entre mim e ti” — o pacto como o elemento progressivo do relacionamento. Depois disto, a promessa é elaborada em termos de transformação pessoal (Gn 17:3-5), multiplicação da família (v. 6), benefícios espirituais (v. 7) e possessão territorial (v. 8).
O tratamento do SENHOR com Abraão marcou um desenvolvimento da ideia da aliança, pois agora o sacrifício não é simplesmente a resposta do homem do pacto, como no caso de Noé, mas o fundamento sobre o qual a aliança é estabelecida. O Pacto Mosaico complementa esta seqüência.
Primeiro, a função do sacrifício dentro da aliança é explicada. No final da longa provação no Egito, a SENHOR anunciou que traria o seu juízo (Ex 12:12). Passaria pela terra ferindo “todos os primogênitos”, mas iria passar “por cima” de toda casa que estivesse marcada com o sangue do cordeiro, pois “vendo o sangue, passarei por cima de vós” (v. 13). De alguma forma, aquele sangue satisfez sua exigência e fez com que a ira fosse substituída pela paz. Portanto, aquelas pessoas que se abrigaram sob a marca do sangue (Ex 12:22-23) estariam seguras. Os eventos da noite da Páscoa não somente deixaram essas verdades de um Deus satisfeito e um povo seguro bem claras, mas também explicaram o poder do sangue para assegurar essas bênçãos. Quando o
v. 30 diz que “não havia casa em que não houvesse um morto”, é claro que se refere às residências dos egípcios; entretanto, na verdade, na casa dos israelitas também houve morte: a do cordeiro pascoal, a fim de proporcionar os elementos para a cerimônia da Páscoa (Ex 12:8-11). Esta é a pista: cada cordeiro fora escolhido quase matematicamente, para representar o número e satisfazer as necessidades de Israel — o povo foi contado individualmente (Ex 12:3-4a): “conforme o que cada um puder comer, fareis a conta para o cordeiro” (Ex 12:4b). Israel, o primogênito do SENHOR (Ex 4:22-23), foi salvo, porque o cordeiro morreu em seu lugar.
Este, então, é o lugar do sacrifício na aliança divina: o SENHOR dá ao seu povo a paz com Ele e o livra de sua ira por meio do sangue do cordeiro substituto. Em segundo lugar, entretanto, a Aliança Mosaica elabora a lei do SENHOR e explica sua função. Israel saiu do Egito como o povo redimido do SENHOR e foi guiado pelo coluna de nuvem e de fogo (Ex 13:21-22) ao monte Sinai. Ali, o SENHOR primeiro revelou a si mesmo como o Redentor (“Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito”: Ex 20:2), e, então, porque era seu povo livre “da casa da servidão”, deu-lhe sua Lei (Ex 20:3-17). Em outras palavras, no Antigo Testamento, a Lei é a conseqüência da graça; não é uma escada de méritos pela qual alguém pode subir para alcançar o favor divino, mas, sim, um padrão de obediência expresso por aqueles que foram salvos.
Em uma palavra, portanto, o SENHOR, Yahweh, é aquele Deus que, em toda a sua soberania como Criador e em sua santidade, promete numa aliança solene que tomará um povo para si e cumpre a promessa por meio do sangue do cordeiro pascoal. Porque ele é o Criador, sua aliança tem um propósito universal (Gn 9:12) e todas as nações seriam abençoadas (Gn 12:2-3; Gn 22:18); porque Ele, o único Deus verdadeiro, dá suas leis àqueles que salva, para que respondam em amor, oferendo-lhe obediência. J.A.M.